Reforma ou Revolução?

20/03/2010 at 11:19

Alguns já devem ter notado que, desde o Carnaval deste ano, tenho evitado o termo Pós-Axezismo e optado por Reforma Cultural, quando quero me referir às mudanças e melhorias no cenário cultural bahiano de 2005 pra cá. Por quase 2 anos se falou por aqui em “verdadeira Revolução” no modus operandi da economia cultural no estado da Bahia – e a fala é válida no sentido de frisar que as mudanças foram grandes, rápidas, positivas e impossíveis de se prever mesmo quando já tinha iniciado seu curso (sabemos hoje, retrospectivamente).

Ocorre que o ano de 2009 foi claramente um ponto de inflexão (mas não de corte) neste processo. Pedro Pondé, o primeiro articulador teórico-prático do fim da dicotomia (falsa!) axé-music X rock, saiu de O Círculo, e a Formidável Família Musical começa a deixar de lado sua temática de idealismo pra-frentex, em direção a uma dúvida subjetiva menos doce (em tempo: Damm me informa ontem que a Formidável não acabou. O que houve é que o Instituto Nacional de Marcas e Patentes não aceita registro de nome de produto com adjetivo – Formidável, no caso). O Bar Marquês fechou, e em 2010 o Teatro Castro Alves e a Boomerangue entram em reforma.

Por outro lado, o reconhecimento nacional acontece com as inúmeras premiações de albuns de autores bahianos (Ronei Jorge, Vivendo do Ócio e Retrofoguetes, notadamente, mas há outros), e o Caderno Especial da Revista Bravo!; além do que a mudança se espalhou pela cidade. O Circuito SalaDeArte abriu com sucesso no Itaigara (e diga-se, está de fato tirando o bairro mais encubado do mundo de dentro do armário. Quando da pré-estreia de A Single Man vi dois adolescentes, de uns 16 anos, homens ambos, sentados num dos bancos do Shopping Paseo Itaigara beijando-se em plena luz do dia, e ninguém, nem traseuntes nem seguranças, fizeram cara feia – alô alô Iguatemi: deixa de ser feirense!); o Theatro XVIII reabriu. O Escritório de Referência do Centro Antigo leva prêmio pela Caixa Econômica Federal, extinguindo de vez com a lenda de que “O Pelourinho está abandonado”.

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Contudo, o Carnaval deixou patente o fato de que a Prefeitura de Salvador ignora tais mudanças, que acontecem a um palmo de seu nariz. Ou não ignora, e faz força contra, reacionariamente. Se a oferta de trios sem corda, sem axé e sem abadá pelo Governo do Estado melhorou, a firula reinou nos axezeiros. Trios levando 30min ou mais parados em frente de cada camarote e atrasando todo o desfile, e a Prefeitura (cuja responsabilidade é gerir e regular a festa) fingia que não via. No limite, Carlinhos Brown saiu com quase 3 horas de atraso e, puto da vida!, disse que não mais toca no Carnaval de Salvador enquanto isso não acabar.

E não foi só firula. O que se notou, e se comentou mesmo entre turistas axezeiros, é como fora da corda a folia é mais confortável e segura do que dentro do bloco. Joaquim Nery, o especulador-mor do axé-sistem, usou desse argumento oligofrênico no Debate sobre o Carnaval em 2007 no Teatro Vila Velha – e todos riram da cara dele. Afinal, é supor um grande masoquismo nos paulistas que pagam mil reais para, segundo ele, ficar no aperto. Pois bem: sua sentença se tornou realidade – para desespero de Nery.

Talvez o principal efeito dos Programas Carnaval Pipoca e Ouro Negro, do governo estadual, não seja aliviar e mudar a lógica financeira do axé-sistem, e sim acirrar suas contradições. De modo que estamos num limite: ou o poder público municipal une forças e embarca na mudança, ou será atropelado.

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Raras vezes se lembra que a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia só pôde realizar mudanças rápidas e drásticas, como fez, porque o Ministério da Cultura na gestão de Gilberto Gil criou novos marcos regulatórios; e que estas mudanças depederam também de que os municípios da Bahia mudassem sua forma de gerir a Cultura. Trata-se portanto de uma reforma institucional em três esferas de governo, com claras atribuições a cada um (no caso de Salvador, a Prefeitura segue no medievo).

Quando falamos em Reforma Cultural, falamos no sentido que se diz “reforma agrária” ou “reformas de base” (do governo Jango) – isto é: mudança de paradigma financeiro  da relação entre Estado e Capital (ou Estado e Sociedade). Mas também no sentido que se diz “reforma psiquiátrica” – isto é: abolição não apenas dos muros dos manicômios (e, no nosso caso, das cordas e abadás de bloco), e sim principalmente da mentalidade e da lógica que os geram (a idéia de que loucos, e foliões, são em si perigosos e violentos). Até porque pode haver hospitais pisquiátricos numa sociedade sem manicômios; e pode haver abadá e cordas de bloco num carnaval mais democrático e menos cerceador.

O Carnaval aí tomado como metonímia da dominação política tirânica, e da mediocrização estética – a que muita gente opôs resistência e com sucesso, inclusive Aninha Franco nos tempos do bom-combate – a que a Bahia foi submetida por 20, talvez 40 anos seguidos. E é neste sentido que vale a pena voltar a falar de anti-axezismo, e não mais em pós-axé. Pós-axé é um termo válido no sentido de que a dominação estética hegemônica está superada, e que o dialogo e a diversidade foi retomado, sem ressentimentos e sem vinganças; e o anti-axé como oposicão sistemática, através do pós-axé (incluindo o neo-pagode do Parangolé por exemplo), ao axé-sistem: ao seu funcionamento financeiro, logístico, político e geográfico.

A idéia de Reforma Cultural tem outra vantagem em comparação com Revolução: transmite a idéia de democracia e de work-in-progress; Revoluções parecem concluídas (por vezes para voltarem ao ponto de que partiram – não é isso que significa em astronomia?), e Reformas são sempre inacabadas e em marcha. Além de que, Reforma Cultural permite aproximação com a urgente Reforma Urbana brasileira, e de Salvador em específico – que nada tem a ver com Canais do Imbuí e outras maquiagens, nem com derrubada da Igreja da Sé (ou do Estádio Octávio Mangabeira, a Fonte Nova). Tem a ver com mudança radical no financiamento e regulação do uso do solo e da ocupação urbana, com consequências sobre o direito às cidades: menos playground e automóveis, mais transportes coletivos, bicicletas, calçadas e praças públicas. Menos gente em LeParcs e Cajazeiras, e mais gente no Comércio e na Lapinha. Tem, portanto, muito mais a ver com Ponte para Itaparica.

Ou o Carnaval, e a Cultura, acontecem no vácuo (e não, precisamente, em uma cidade; e mais precisamente ainda, em seu centro)?!

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Provavelmente estas conjecturas só sejam possíveis porque venho, desde antes de me graduar, da Reforma Psiquiátrica. Nela, nunca militei, mas atuei na clínica e na gestão, construindo políticas públicas (como o hoje, tenho orgulho de dizer, bem-sucedido Programa de Saúde Mental do PLANSERV). Na Reforma Cultural o contrário: milito, e por isso não posso nem devo ocupar lugares de gestão e planejamento (embora possa e deva contribuir com eles enquanto crítico cultural).

Nem estar plenamente favorável a políticas com que concorde (toda política é interessada a um sujeito oculto, senão obscuro). Claro que entre o Cultura no UTI e a SECULT, fico com a segunda. Ocorre que o termo Reforma Cultural me permite um distânciamento crítico pessoal que, entendo, estava me faltando.

Afinal, se houve uma inflexão no Pós-Axezismo em 2009, ela também incide neste Último Baile dos Guermantes. E, ou a gente embarca nela, ou a barca da História nos atropela.