Hotel da Bahia: uma didática da Ponte

01/03/2010 at 19:09

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É interessante notar que os preocupadíssimos com o fim (?) do Hotel da Bahia são os mesmos que se opõe a Ponte Salvador-Itaparica (não é o caso de Paulo Souto, sem dúvida nisso um estadista). Postura tipicamente medioclassista: preocupa-se com certa situação social – mas se coloca contra os mecanismos para resolvê-la. Exemplo clássico: 11 em cada 10 medioclassistas são a favor da distribuição de renda no país – destes, 9 são no entanto contra o Bolsa-Família…

Antes que alguém faça uma hiperinterpretação rasteira, eu não estou dizendo que o Hotel da Bahia fechou “porque não tem Ponte”. Nem estou dizendo que “só a Ponte salva”. Estou frisando um fato evidente: o Centro Expandido (nem falo só do Centro Antigo) de Salvador virou uma cidade-dormitório. E já se fala nisso como “efeito Salvador”, no mesmo sentido que as grandes avenidas vazias são conhecidas como “efeito Los Angeles”. “Efeito Salvador”: uma capital cosmopolita de 3milhões de habitantes ter uma vida laboral de cidade de interior pobre – toda sua população trabalha fora de seu Centro.

Este processo é longo: dos anos 40 aos anos 70, Salvador se industrializou. Tinha fábrica textil (a Luís Tarquínio), poço de petróleo, siderúrgicas e fábricas de chocolate no subúrbio ferroviário, especificamente em Plataforma. Que indústria Salvador abriga hoje? Nenhuma! Todas se deslocaram para o norte, especialmente para Camaçari e agora para Feira de Santana. Este é o principal motivo de o Centro Econômico de Salvador estar hoje na sua entrada norte. E se nada for feito, vai piorar.

Não basta ocupar com habitação o Comércio e o Pelourinho – se não houver atividade produtiva geradora de renda robusta (turismo portanto não conta) para todas as classes sociais no Centro Expandido, ele vai virar um enorme museu residencial.

Claro, se pode alegar que certas áreas do Centro continuam vivas ou foram revitalizadas. No limite, a Praça Castro Alves, especialmente através do Espaço Glauber Rocha Unibanco de Cinema. Aliás, a Castro Alves deve receber o Hotel Fasano, de alto luxo, no também tombado Prédio do Jornal A Tarde. Isto é: há sim saída para o Hotel da Bahia.

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Milton Santos, em seu clássico obrigatório O Centro Da Cidade do Salvador, de 50 anos atrás, já alertava para duas falácias que até hoje se alardeiam. Uma, é a idéia de conservação patrimonial e sua relação com a especulação imobiliária.

O geógrafo negão aponta um fato ímpar: em Salvador, conservação patrimonial e especulação imobiliária funcionam não como limitadores um do outro (o que seria normal e esperado e ocorre em outras cidades do país). Antes, como vetores que se somam: os tombamentos são tão rígidos (porque não se pode mudar o assoalho do Pelourinho, por exemplo?) que esvaziam os prédios agraciados; e a especulação, ao invés de reaproveitá-los de alguma forma, vai buscar outras áreas mais distantes.

É verdade que isso tem mudado, desde a gestão municipal de Antonio Imbassahy, e mais recentemente com o Programa de Tombamento do Patrimônio Modernista pelo IPAC e com o Escritório de Referência do Centro Antigo.

Outra falácia que o gênio negro de Macaúbas lembra é a idéia de que Salvador tem uma alta densidade demográfica. Tem, só que é mal distribuída. Num mesmo bairro há prédios superlotados lado a lado a prédios vazios. No limite, a Liberdade é insuportavelmente cheia – e no Comércio não mora ninguém. Insistir nesta falácia quantitativa (e ignorar uma avaliação qualitativa da densidade demográfica) também interessa a especulação imobiliária desregrada.

Digo desregrada porque a especulação é em si inevitável – o que não é inevitável é seu desregulamento. E – lição de Diógenes Rebouças! – se bem usada, com firme condução pelo aparato estatal democrático, ela pode ser benéfica. E gerar obras-primas. Como o Hotel da Bahia, por exemplo.

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Dizem os contra-Ponte (o trocadilho é por sua conta, leitor) que a Ponte traria a violência de Itaparica atual para o Centro de Salvador – e que pioraria a de lá. Que traria a falência de lá.

Ao que parece, é justo o contrário: não haver ligação direta com o Recôncavo e não haver vetor de retraimento da cidade para seu Centro (com expansão econômica deste) é que pode alastrar essas pragas. Tendo isso, é provável que elas sanem ou diminuam. Esse bucolismo conservacionista, ao tentar barrar a especulação imobiliária, só a piora – bem na dialética que Milton Santos mostrou em sua obra-prima meio século atrás.

Tem que se entender a divisão de Salvador entre antes e depois do Rio Vermelho como uma cisão entre as duas regiões metropolitanas de Salvador. Ao norte, uma industrial, recente, rica, mas urbanisticamente caótica (salvo as orlas marítimas de Mata de São João, Lauro de Freitas e Camaçari), e com uma classe média jeca; ao Sul e a Oeste, cidades antigas, com um patrimônio cultural imaterial transmitido de geração em geração. O “umbigo do mundo”, diria Milton Santos. Porém estagnadas e empobrecidas. Cidades que são a própria imagem da aristocracia decadente: erudita, popularmente engajada, e sem um tostão no bolso. (Sobre isso, brilhante texto de Ubiratan Castro, o Bira Gordo, no final deste post)

A Ponte para Itaparica pode não só re-ligar Salvador ao Recôncavo, mas o Passado ao Futuro; Camaçari a Cachoeira. Especialmente, religar uma Capital Cosmopolita consigo mesma.

Se o fim do Hotel da Bahia pode nos ensinar alguma coisa, que seja também isso. Não terá sido em vão – e mestre Diógenes certamente agradeceria de algum boteco no reformado (e bauhaus!) Largo Dois de Julho.