Teorética & Práxis do Anti-Jornalismo – nº1

25/01/2011 at 13:02

Jornalismo, Des-jornalismo, Anti-Jornalismo e Imprensa

Especialmente desde a crise do mensalão, e graças ao esgoto em que mergulharam a Revista Veja e o jornal Folha de São Paulo, ataques e rejeições do cidadão mais ou menos crítico-reflexivo à empresas de imprensa de ampla envergadura, à mídia plutocrática e ao que chamam de PIG (Partido da Imprensa Golpista) têm sido comuns.

Estes ataques são contudo até agora ingênuos, no momento em que diferem a Imprensa, de um lado, como vilã, e o Jornalismo do outro como algo bom que vem  sendo corrompido e desvirtuado por aquela. Ou ainda que o Jornalismo seja uma entidade ambivalente, com uma queda para o mal, mas que nele certos Jornalistas bravamente se salvam.

Recorro a Franco Baságlia, o grande teorético-práxico da Reforma Psiquiátrica Italiana e da Luta Anti-Manicomial mundial. E aqui cabe uma distinção: Reforma é o que o Estado faz se e quando pressionado pela subversão social; a Reforma Cultural Bahiana, por exemplo, é a resposta do Estado ao Anti-Axezismo. Basaglia atuou nas duas frentes: como servidor do Estado atendendo a uma demanda social, e como cidadão causador desta demanda.

Basaglia lembrava incessantemente que o Manicômio não era o real inimigo. Óbvio que a reforma sanitária aplicada a saúde mental precisava passar pela desconstrução do manicômio, a diminuição da frequência e tempo de internações (e nisso não difere do resto da Reforma Sanitária, que evita hospitalizações), disposição de serviços substitutivos abertos e territoriais, etc. Mas o inimigo real era o discurso que sustentava o Manicômio – isto é, a Psiquiatria enquanto prática e profissão (e Basaglia ele próprio era psiquiatra clínico e nunca deixou de medicar…).

O discurso de que há doidos de um lado, e sãos do outro, justificava e justificaria o manicômio ainda que não houvesse mais segregação, muros e internações integrais: diversos serviços de saúde mental territorial poderiam continuar sendo mentalmente manicomializantes, como aliás é a política de saúde mental da França e alguns (mas não todos nem a maioria) dos Centros de Atenção Psicossocial no Brasil.

O mesmo vale para o ataque a Imprensa. O fato de existir a Globo e a lógica familiar meio mafiosa das empresas de mídia no Brasil são apenas a pior forma do Jornalismo – contudo, é o Jornalismo o real inimigo: o discurso-prática que justifica e se usa da idéia de que há informação de um lado, e gente a ser informada de outro, e que não pode o cidadão cuidar de sua própria informação sozinho ou comunitariamente.

Dito de modo gramsciano: o Jornalismo, enquanto instituição, e não a mera Imprensa, é a instrumentalização da alienação do sujeito em relação a produção dos bens de que necessita – neste caso, as notícias.

* * *

Roberto Tikanori, baluarte & arcabuz da heróica Reforma Psiquiátrica de Santos (SP – anterior, diga-se, ao advento institucional do SUS e a Constituinte de 1988: isto é, realizada ainda sob os coturnos da Ditadura Militar), costumava dizer a reporteres que o interpelavam sobre esta Reforma se o que ele estava fazendo era Anti-Psiquiatria. Respondia ele:

“Não, estamos finalmente fazendo Psiquiatria; Anti-Psiquiatria era o que se fazia antes, no manicômio, trancafiando gente e cronificando patologias”.

É corriqueiro que haja entre os Anti-Manicomiais certo elogio da Psiquiatria Clássica – “alí sim havia uma compreensão do homem para além de sua loucura”. Jaques Lacan e Jean Delay (criador dos neurolépticos, sem o que seria impossível acabar com o manicômio) rasgam seda para Henry Ey e até mesmo para o criador do Asilo Mental, Pinel; Basaglia era clinicamente um kraepliniano; Laing & Cooper, na Inglaterra, são herdeiros diletos da escola suiça de Biswanger e Eugene Bleuler; no Brasil, Nise da Silveira é uma ex-aluna do gênio mulato bahiano Juliano Moreira.

Há nisso similaridade com o que fazem hoje alguns Jornalistas que militam em prol da Reforma Midiática hoje: “Precisamos voltar a fazer jornalismo de verdade!, investigativo!, a moda antiga!”. O que Psiquiatras Anti-Manicomiais e Jornalistas Anti-Imprensa não percebem é que eles são vítimas do horizonte de classe (para usarmos um termo caro a Lenin, e engeliano de origem) de sua própria formação. Com isso, não consegue perceber que aquilo que lhes causa horror na Psiquiatria de Manicômio (“aquilo é que era porca anti-psiquiatria”) e o Jornalismo de Jornal atual não é nem Anti-Psiquiatria nem Anti-Jornalismo – mas Des-Jornalismo e Des-Psiquiatria. Não percebem que a Psiquiatria clássica, de fato admirável, levaria ao manicômio, e o Jornalismo velho de guerra levaria ao seu próprio empobrecimento subserviente a indústria da notícia – da mesma forma que as manufaturas têxteis, admiráveis em sua divisão social do trabalho não-alienante, levariam a indústria taylor-fordista 50 anos depois.

Há, contudo, uma positividade nesta admiração do passado de suas práticas discursivas: a Reforma Psiquiátrica não teria acontecido sem um retorno aos mestres do início do século XX, pelo que eles têm de saber não-alienado, diferente do psiquiatra biologicista atual que se resumiu a um alienado passador sintomatológico de remédios; a Reforma Midiática não ocorrerá sem o retorno aos métodos investigativos e a devoção sacerdotal dos grandes jornalistas dos anos 1950.

Contudo, se restringir a isso seria uma mera questão de métodos – e temos visto até aqui que a diferença é de princípios: Jornalismo é apenas Des-Jornalismo feito com rigor e ética, mas Des-Jornalismo ainda: ambos fetichizam a notícia, transformando-a em mercadoria. O Anti-Jornalismo consiste em usar o rigor metodológico do Jornalismo, dando um passo adiante.

Até porque não existe machar-a-ré da História: a economia solidária e o cooperativismo, tão em voga hoje, seguem o modelo das antigas guildas e manufaturas pré-industriais, mas de um outro lugar e modo – sem o que cairiam num passadismo igualmente romântico: superar o Capitalismo não é retornar ao Feudalismo, senão usar alguns recursos feudais (e tambéma alguns do próprio capital) para irmos além de ambos.