Artefatos Vitorianos para Uso das Cidades – III

09/04/2011 at 18:06

O cavalo mecânico e o rinoceronte motorizado 

Em boa medida, a estética da Bélle Epóque consiste em imitar industrialmente a natureza, substituindo-a parcialmente sem eliminá-la. É neste sentido que Samuel Beckett viria a dizer que Marcel Proust é um “Naturalista radical”: ao invés de animalizar seus personagens, os reduz a uma condição biológica ainda inferior – a realidade botânica de vegetais e fungos. Gostaríamos no entanto de subverter Beckett, e dizer que Proust é o apogeu solitário de um estilo que não ocorreu na literatura alhures – a Art-Nouveau, rigorosamente arquitetônica – que concentra em si todas as outras emulações da natureza no fim do século XIX: o Naturalismo e sua animalização; o sensualismo odorífero do Decadentismo; a sonoridade mística do Simbolismo. Não por acaso o urbanismo Art-Nouveau acabou recebendo o apelido de Ecletista. 

Se já mostramos antes como a tecnologia vitoriana imitou e tornou portátil a vegetação,  veremos agora como ela trata de substituir os animais que, em quantidade, atrapalham a existência das metrópoles. Note-se que a popularização da sombrinha não adveio da diminuição das árvores em centros urbanos – ao contrario, ela é coetânea da reconstrução da Floresta da Tijuca no Rio de Janeiro e da fundação do Bois de Boulogne em Paris. 

 

Com a bicicleta e os automóveis, coletivos e individuais, a explosão é diferente: sua presença não apenas diminui a necessidade de tração eqüina e bovina, como é incitada justamente para isto. 

Anteriormente à mecânica das rodas autopropulsoras, as cidades eram basicamente movidas a cavalo. O sujeito ia de um bairro a outro montado no seu pangaré ou alazão, conforme a classe social; as residências requeriam que se dispusesse de estábulos para guardar carroças, carruagens, e alimentar suas máquinas biológicas (o que faziam com que se morasse em chácaras arrabaldes, sendo os centros antigos das capitais atuais, com raras exceções – Salvador sendo uma delas – lugares de comércio e de burocracia apenas); as praças precisavam ser dotadas de tocos para se prender a alimária (de todo similares a bicicletários, e não por acaso) e de coxos para refrescarem-se.  E, com ruas estreitas, a urbe tendia a ficar empesteada de estrume – com seus conseqüentes alagamentos e epidemias – e do fedor do pelo suado e muitas vezes molhado dos quadrúpedes. 

Se a reforma hausmaniana implicava em alargar as ruas, implicava também que elas não fossem mal-ocupadas ao ponto de mesmo largas terem a sensação de estreiteza: nelas deveria caber gente, transporte coletivo, e árvores; além do que implicava em também haver áreas de uso comum: desde praças aos quintais e pátios internos dos prédios de apartamento – as lavanderias coletivas substituindo os estabulos. E a preparação das cosmópoles européias para o 1900 implicava em também torná-las densas. Ademais, o fim do trabalho escravo e servil tornava impeditivo as horas gastas a cuidar de um meio de transporte (as carruagens) que se usava, ao cabo, tão pouco – o que leva a surge o fiacre de praça, antecessor do taxi. O cavalo, ao menos o de uso individual e privado, tinha seus dias contado. 

A substituição se deu por dois vetores. O primeiro deles é dar uma função coletiva ao poluente motor de tração biológica sobre quatro patas: os primeiros ônibus e bondes são de tração eqüina e muar (como Machado de Assis nos retrata em bela e delirante passagem do jovem Bentinho Santiago em Dom Casmurro). O outro, um pouco mais tardio, era de que se pudesse dispor de cavalos cuja aquisição fosse barata, a durabilidade imprevistamente longa, a manutenção quase inexistente, e o tamanho reduzidamente menor, e que não dependesse de beber água e expelir estrumes: populariza-se a bicicleta. Quando esta nasceu, como um brinquedo versalhiano rococó (nisso não difere das sombrinhas e chapéus, que então eram ornamento, mas ganharão funcionalidade com o advento da metrópole industrial) e sem pedais, era um “cavalo autômato”; a introdução da catraca, e sua construção em metal fundido e não mais em madeira, lhe deu uma viabilidade industrial exponencialmente maior. A cavalgadura de raça era o transporte urbano do jovem burguês dos anos de 1830, tal qual a bicicleta o seria do proletariado dos anos de 1890. 

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O automóvel e seu motor a explosão já são uma invenção mais sutil em sua imitação da natureza – ou, para dizer melhor, uma invenção sem a mesma delicadeza que as bicicletas e os bondes (que se tornariam elétricos ou de tração mecânica continua posteriormente – e também nisso são irmãos da bicicleta, inclusive por sua capacidade de convívio com outras formas de transporte e de pacificar as vias). 

Embora herdeiro direto das carruagens e carroças muares, o automóvel acaba por ter mais identidade com o carro-de-boi agrário: uma potência de força descomunal, que raras vezes se realiza de fato, aliada a uma dificuldade peculiar de manejo, aumento de riscos e produção de barulho. Coisa raras vezes notada é que o ônibus puxado por cavalos causava menos acidentes do que o a motor porque havia três animais, e não apenas o motorista, atentos a pista: os cavalos, bem treinados e com olhar dirigido pelo guião de olhos, reagiam a despeito do condutor se houvesse pedestres na via ou mesmo buracos ou outros incidentes. Os bois de parelha não reagem assim (e podem facilmente desembestar), tanto que não basta uma parelha: é necessário a de cambão para puxar, e a de coice para frear. Soltos dos arreios, os bois de carro continuam a andar em dupla (como os bois de engenho nunca deixam de andar em círculo), diferente dos cavalos e jumentos que são capazes de governar seu próprio comportamento apesar de treinados, e mesmo por causa disso – no que se assemelham a cães (sendo animais plenamente domésticos, enquanto cabras e bovinos são animais semi-domésticos). 

Neste sentido, o automóvel não promove, no seu surgimento, uma cidade mais limpa e segura com a redução e aperfeiçoamento do uso de animais; ao contrario, como um ente selvático e de barbárie em meio a civilização, tende a causar-lhe rebote. Trata-se de um rinoceronte motorizado – sobre o qual o homem tem menos, e não mais, controle, diferentemente da bicicleta que acaba sendo a realização mecânica do mito do sagitário. 

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A transferência parcial da propulsão animal para a propulsão humana que a industrialização nos permitiu, tanto com o advento da bicicleta quanto do acirramento e qualificação do uso pedestre das cidades, implica em novos dispositivos infraestruturais axiais. Onde antes o coxo de água para a alimária, é o cidadão humano que passa a ter sede e têmporas afogueadas – por um lado resolvido por leques e lenços, por outro com o advento do fornecimento de água potável e corrente por tubulação tanto privadamente, com os toucadores, quanto publicamente, com as fontes de praça. 

É verdade que poços, bicas e chafarizes existem desde que, com a Renascença, o burgo medieval europeu incorporou as técnicas hindu-arábicas de convívio comercial. Sua função era, no entanto, diferente: recolha de água para o domicílio em baldes, e uso comum entre animais e homens. Havia alguma função decorativa, em geral como frontões algo eclesiásticos dispostos em paredes e escarpas. Também em sacristias havia pias com torneiras e em conventos os pequenos chafarizes de jardim. E no Antigo Regime, quase todos os nobres dispunham de pia e jarra para seu lavabo matinal. 

Fonte modernista, Jardins Suspensos de Yerba Buena, San Francisco, California

 Ocorre que no século XIX estes dispositivos se ampliam e universalizam. Um convidado inesperado chega em casa e ainda no átrio de ante-sala (a divisão do domicílio em cômodos sociais e de serviço também é uma aquisição hausmaniana) lhe é oferecido toalha e água de lavanda paras as têmporas e mãos – isso ainda na era do uso individual do cavalo. Surgem com o encanamento hidráulico (coetâneo da iluminação pública a gás) os pequenos toaletes sem banheira ou chuveiro em corredores de casas, dispondo apenas de mictórios, sentinas e pia com torneira. Os chafarizes ganham praças públicas em dimensões monumentais, servindo como forma de garantir estabilidade microclimática externa (tal como os persas faziam internamente a seus prédios), mas também para qualquer um refrescar rosto, colo, pescoço, pés e mãos ao longo de uma caminhada num centro urbano. Aparecem os primeiros bebedouros públicos e, correlatos distantes, as instancias de férias termais e hidrominerais, e os banhos de mar. 

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O cavalo-mecânico e o rinoceronte-motorizado (tanto quanto o bonde, o metrô, o trem, o navio a vapor e o avião) são filhos da mesma Idade Industrial, com causas idênticas tendo porém efeitos díspares e opostos. Paira um certo idealismo atual de que um dia a sociedade do automóvel será superada por uma sociedade da bicicleta. Tenho minhas dúvidas: trata-se muito mais de caminhos que se bifurcaram lá atrás (em uma, a potência civilizatória do homem aumenta; em outra, ela é subjulgada pela barbárie da máquina e da natureza bruta) – e qualquer retificação de um para seguir o outro implicará numa marcha-a-ré momentânea, muito mais provável e urgente é verdade na via congestionada de carros-de-boi fumacentos do que na outra em que potros-centauros galopam ludicamente uns com os outros.