O Welfarismo-de-Si

21/06/2015 at 19:19

Esta semana, o xingamento em rede nacional de rádio que Ricardo Boechat fez contra o pastor televisivo Silas Malafraude foi o fato político mais importante e libertador da década no Brasil. No entanto, sua riqueza maior está na reação de certa esquerda que se declara anti-dilmista, que se supõe feminista ou mesmo queer, mas que julgou “machista” um homem mandar outro que lhe enche o saco ir “procurar uma rola”; ou por outra, que achou boa a fala do jornalista apesar do “vá procurar uma rola!”, uma vez que ele apontou o problema fiscal das igrejas neopentecostais, etc.

Erram todos: a fala de Boechat tem como seu núcleo duro, um verdadeiro haikai, aforisma wittgensteiniano (é terapêutico porque ajuda a mosca a sair da garrafa – ou, no caso desta esquerda burocrática, a perceber que a garrafa existe), ou mesmo um koan justamente o “Vai procurar uma rola!. Se o grande reformador do zen, Hakuim Ekaku, aproximando-o das práticas populares, vernáculas e cotidianas do Japão do século XVII, fosse brasileiro seguramente teria dito “vá procurar uma rola!” – da mesma forma que perguntava “mas você ainda carrega na mente a moça que deixei de carregar no colo meia hora atrás?”.

Mais do que com revolta, Boechat agiu com impiedade compassiva, conceito budista radical que retira o amor do seu lugar idealizado e atribui caráter subversivo ao mesmo, não muito diferente do que – vejam só! – Jesus Cristo fez no episódio dos vendilhões do templo, ou quando diz que tudo o que for morno é digno de ser regurgitado. Assim como o “vai procurar uma rola” de Boechat não é só radicalmente feminista (afinal, o que pode ser ruim em chupar uma pica…?!) e queer (para que tenha efeito tal vitupério, ele teve de fazer uma rotação performática em que ele era ao mesmo tempo homem e mulher, hetero bi e viado – tudo ao mesmo tempo)É antropófago como Oswald (e Pagu indignada no palanque, e Rita Lee, e os Mutantes) seria, ao que esse veganismo mental da esquerda torce o nariz com nojo se há sangue.


Ocorre que certa esquerda burocrática não reconhece nada disso. Para esta, xingar Malafaia é errado, embora ele xingue literalmente deus & o diabo na terra do sol – porque, afinal, o real problema das igrejas neopentecostais é de corrupção financeira (fico a imaginar que o sujeito que diz isso imagina que Ricardo Boechat é detetive da Polícia Federal, e não radialista ou formador de opinião).
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Ou então argumenta que tal frase não seria apoiada por gente como eu se fosse proferida, digamos, por Jair Bolsonaro (ignorando o fato de que poderia ter sido proferida por este crápula contra, digamos, Jean Willis, mas não o foi! – e se o fosse, Jean não se ofenderia e responderia: “vou sim, adoro!”; ou ainda que Jean é que poderia dizer isso a Bolsonaro, “vai chupar uma pica!”, e soaria tão libertador quanto Boechat recomendando o mesmo a Silas Malafaia). Em todo caso, xingamento na voz de brucutús e trogloditas desaparece na paisagem; só um lord consegue xingar com efeito, porque não perde sua heráldica de nobreza, e foi o caso de Boechat, que nisso agiu como um verdadeiro aristocrata.
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Ou ainda a idéia de que se democracia é o direito de dizer toda e qualquer coisa (e eu defendo que Malafaia fale as sandices que bem entende – sou contra a criminalização da homofobia porque não existe porrete do bem e, como se vê por estas reações incautas ao brado libertário de Boechat, mor das vezes homofobia é uma mistificação no sentido marxiano do termo), então ninguém pode criticar Malafaia ou quem quer que seja. Ora, minha senhora: democracia é o regime em que todos estão expostos sistematicamente a crítica e ao ridículo (inclusive é o que faz das Monarquias Constitucionais altamente democráticas: até os reis podem virar bufões) – não é o regime em que a imbecilidade tem o mesmo valor que a verdade (sim, a verdade dos fatos existe!), mas sim que qualquer fala pode levar o falador a ser enxovalhado. Inclusive sendo mandado procurar uma rola. Um regime em que ninguém possa falar nada que venha a ofender ninguém é a ditadura  medioclassista dos bons-modos (que não se confunde com cavalheirismo, polidez ou civilidade) – uma opressão de claustro conventual, com direito a cinto de castidade.
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Uma relação democrática não pode se basear numa abdicação das potências (embora passe por uma recusa ao poder), mesmo sob a justificativa bem-intencionada do “respeito a opinião alheia”. Uma ova! Democracia é embate permanente da tirania das vontades (eis seu paradoxo!) que implica não respeitar escolha nenhuma nem ninguém – admitir que somos todos claudicantes e meio idiotas que precisam por isso levar na cara tanto sistematicamente quanto aleatoreamente. Note-se que essa esquerda anti-dilmista (que só o é de última hora e não como nós de primeira hora, que chamamos essa maluca de Geisel de Calçola desde 2010), embora critique a Presidanta por seu welfarismo de um lado (um estado intromissor, excesso de governismo) e neoliberalismo do outro (isto é, desgoverno), é ela mesma subjetivamente neoliberal (no sentido que supõe que o desgoverno-de-si, o liberou geral irresponsável, é uma boa) e welfarista (já que não é capaz de atos de liberdade se eles não forem antes direitos ratificados pelo Outro).
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Uma esquerda que acha que tudo bem protestar, mas só com ata consensual registrada em cartório, sem vandalismo, e sem mandar ninguém “ir procurar uma rola”. Em uma palavra, uma esquerda boi-de-coice – quando tudo que precisamos hoje são bois-de-cambão, mesmo que de direita.
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Como disse acima, esta questão é menos pública, objetiva, do que íntima, subjetiva – é dizer: a geração que agora vai saindo da adolescência, que é a que fez o Junho de 2013, é aquela que não viveu jamais nenhum dos conflitos herdados da Ditadura Militar. Se a minha geração lembra-se da primeira eleição direta para Presidente da República, esta  de agora só viveu governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula; desconhece, salvo por narrativas, o que foi o carlismo; não vivenciou sequer a decana crise hiperinflacionária brasileira, tendo nascido já sob a vigência de moeda única e estável.
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Todas estas ausências de dificuldade se coadunam com outras: é a geração que chega a universidade com as cotas raciais e extinção do exame vestibular já estabelecidos; que iniciam a vida sexual com as mulheres bem mais sexualmente liberadas por um lado, e por outro com as práticas homossexuais muito mais largamente aceitas nas grandes cidades; em que uso de maconha em espaços públicos e estatais (como o Museu de Arte Moderna da Bahia) não gera constrangimento policial para quase mais ninguém, seja de que classe social for (mesmo os habitantes da favela da Gamboa de Baixo fumam na prainha ao lado de PMs fardados).
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São ganhos importantes, mas é uma geração que não teve de lutar por nada disso, e aí ou encontra causas desfocadas (ateismo militante e feminismo facebookiano), ou supõe que novos ganhos tenham de ser ratificados pelo Outro ou pelos outros (quando a única forma de construir a liberdade é a revelia do Outro e dos outros, por vezes contra o Outro e os outros, pra não dizer a revelia e contra si mesmo) – por exemplo, na admiração pelo modelo uruguaio de descriminalização da canabis, que nada mais é que uma estatização do acesso a drogas legalizadas (e por isso mesmo não liberalizadas).
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Uma geração que acha massa a subversão subjetiva e o empoderamento do sujeito sobre si, mas só o suficiente para não se romper com nada e tornar a ordem burguesa mais confortável. Chamo isso de socialdemocracia-de-si. Claro que certas medidas reformistas e conciliatórias podem ser parte de um processo de emancipação, revolta, subversão e apropiação – tanto Henri Lefebvre quanto Lenin apontaram isso -; mas mor das vezes, e é este o caso, são apenas uma forma do sujeito se tornar um pouco mais livre sem te de se implicar no custo dessa liberdade (“você pode escolher a cor do carro que quiser, desde que seja preta”, dizia Ford – e eu completo: desde que seja carro): se o neoliberalismo-de-si gera dívida e sabota a dádiva por um calote e uma moratória insustentáveis, o welfarismo-de-si é uma hipoteca do desejo, pagando-se em pequenas quantias com juros diluídos; num, um aqui-agora que não é alegria, no outro um esperancismo distópico (ou pseudo-utópico, de uma utopia que apenas repete o mesmo, só que melhorado) de subúrbio norte-americano.
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Pessoalmente experimentei isso, quem lê este blog pôde acompanhar em ensaios aqui registrados no último ano uma história de amor erótico pessoal que tinha tudo para ser subversiva. E que o foi, desde que não passasse da superfície (sem no entanto chegar a pele): ele saiu da condição de pseudo-playboy pegador-de-mulher para alguém capaz de se apaixonar por um homem e depois por uma mulher, etc. Mas isto só o suficiente para que, assim que possível, a heteronormatividade voltasse pela culatra: ao invés de garanhão, noivo com intenção de ser papai. Não se trata de que eu esperava uma ruptura para viver um amor exclusivo comigo (isso seria tão heteronormativo quanto, mas de sinal trocado), mas sim uma sustentação radical das contradições desejantes, custasse o que custasse, doesse a quem doesse, não apenas não resvalando pra ordenação burguesa das vontades, mas fazendo vade-retro nelas.
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Pode-se colocar sempre na conta da inexperiência e da pouca idade. Mas já tive relações com pessoas ainda mais novas e interioranas que não recaiam nisso; ao contrário, metiam o pé na porta, cheios de atitude ao ponto de me constranger e emparedar. Mas era alguém da geração que derrubou o carlismo – não da minha que resistiu contra, nem da atual, que recebeu de mão-beijada e termidoriza as revoluções subjetivas.
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A senha para a saída deste estado de coisas medíocre e sem atitude está justamente na loucura positiva da fala radiofônica de Boechat, que coroa uma sequência de pirações como Luciana Gimenez ter sido a única a constranger Marco Feliciano, ou o psicótico aproveitador Inri Cristo ter tido uma postura teologicamente mais correta e aberta que toda a Sé desde que Santo Agostinho foi Arcebispo em Hipona. Contra este excesso de realismo que nada tem a ver nem com a realidade nem com o real (ao contrário: é totalmente imaginário!), é preciso ficarmos surrealistas ao limite da cruedade e da falta de decoro.

Na esteira aberta pelo “vai procurar uma rola”, os próximos lances passam necessariamente por alguém dentro, digamos, das Câmaras Federais dizer claramente que o problema de Dilma Roussef é psicodinâmico e não político: que se trata de uma frígida que não goza nem que se lhe estoure o tampão, e que sapatão encruada não tem condição de governar nem a própria buceta que dirá o país (a enfase é no encruada: não gosto de sapatão, mas muitas botam pra fuder!, não comem reggae, como se diz em baianês moderno). Talvez a única forma de ela ouvir seja quando lhe denunciam o sintoma: foi assim com sua recente e repentina magreza, embora ela apenas tenha substituído o sintoma da gorduchice por certa anorexia que sequer tem a dignidade de romper com os padrões aceitáveis das revistas femininas de moda.

É preciso construir um feminismo que incorpore o conceito de mal-comida e de mulé-ruim. Mulé-ruim nada tem a ver com ser mulher: já tive namorado mulé-ruim. É possível ser homem heterossexual e ao mesmo tempo mal-comida. Rediviver a selvageria libertária do Orkut pré-2006 que, a esta altura se estivesse funcionando ainda, teria já uma comunidade chamada “PASTOR MALAFAIA NUM CANAVIAL DE ROLA” (assim em caps lock mesmo), com mais de 10mil participantes, em que se discutiria de tudo, menos religião e sexualidade.

Assim como é preciso que a Viadagem Institucional incorpore o conceito de viadinho – que é uma condição moral de falta de coragem. Viadinho nada tem a ver com ser viado, ao contrário: viadinho é a incapacidade de ser viado. Quando Ricardo Boechat diz para Silas Malafaia “ir procurar uma rola”, é isso que ele está dizendo: “Deixe de ser viadinho mulé-ruim, sua mal-comida!, e vire viado de uma vez – como eu, que sou hetero, virei agora só pra te colocar em seu devido lugar!”.

Quem não entendeu isso não se deu conta de 10 mil anos, como diz Goethe: está na ignorância através dos dias e dos tempos.