ou Plínio, O Ignorante

01/08/2011 at 22:33

Primeiro conto meu publicado, quando levou menção honrosa ainda em 2006 pela Editora Guemanisse. Escrito sob o des-Governo César Borges (2001), meses depois da greve das Polícias Civil e Militar, e sob o escândalo dos grampos na Secretaria de Segurança Pública, hoje me soa como uma sátira involuntária a esse período de apogeu e ao mesmo tempo decrepitude do carlismo. Mas na verdade foi apenas um dos primeiros efeitos de começar a ler Jorge-Luís Borges.

Ignobilis Oraculae: Gamones

Ou

Plínio, O Ignorante

“Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas…

(…)

(mas) Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?”

Ricardo Reis, O Jogo de Xadrez dos Persas

Só recentemente veio a baila a história de Plínio II, dito O Ignorante, governador persa da Dalmácia durante a primeira dinastia círica, e muito curiosa é sua história – e mais curioso ainda é o modo que esta se perdeu e ficou perdida, e como se perdeu se tão edificante; ou mesmo, talvez, como se verá, sua própria existência surpreenda, de estapafúrdia.

Chega-nos num excerto perdido de um relato, quiçá um diário, do desconhecido historiador romano Crasso Lucano Junos. O pouco que se sabe dele é que foi discípulo de Tito Lívio, do que se infere, talvez muito erradamente, que tenha colaborado com este na escritura do Tratado de História. Tito Lívio não refere ao nome de Lucano Junos, nem tampouco o faz Marco Aurélio, que também o teria consultado. Por falta de melhor versão, ficcional ou verídica, confirmo o fato, embora, e talvez justamente porquê, tenha severas dúvidas.

Em toda a história do pensamento ocidental, Plínio II jamais foi citado: um hiato há entre Plínio I, O Glorioso, e Crício IX, O Impiedoso, na historiografia da antiga Pérsia. A única exceção a isso é uma carta de Maquiavel ao Dodge de Veneza, em que comenta o seu O Príncipe. Nela, adverte ao Dodge que não proíba o jogo de cartas na cidade, apesar do surrupio de impostos a que tal fato levaria, a custo de que uma proibição de um jogo pode levar a uma rebelião, e antes é preferível um estado sem impostos, do que impostos sem estado; é então que conta, resumidamente, uma parte da história de Plínio, O Ignorante, visando efeito parabólico. Graças devemos a Maquiavel: não fosse ele, e Veneza teria, certamente, afundado. Não se sabe a fonte donde Maquiavel retirou a fábula, mas tudo indica que não refere ele a Lucano Junos, já que estes apócrifos só ora foram encontrados numa esvaziada catacumba de Herculano.

Segue, então, o trecho, traduzido, em primeira mão, do latim:

“… Assume, então, o governo da Dalmácia, Plínio II, filho de Tropilo V, neto de Crício III, sob a descendência dos Ciros, recebendo, depois, a alcunha de O Ignorante.

Plínio nunca foi uma criança brilhante: no livro dos Avestos nunca avançou um capítulo; o paradoxo maniqueu nunca lhe tocou as tensões do semblante, não por distância, mas por incompetência. Entre Ormuz e Arumã, sem dificuldade preferiria uma fatia de melão da Índia ou estourar cabeça de cobaias com pedras de granito.

Achava, desde sempre, o xadrez um jogo além de sua capacidade, e, pelo hábito de rechaçar o que não podia decifrar, considerava-o maligno e, talvez, uma ameaça a seu governo. Para ele, só as simplicidades repetíveis, como as damas, ou o total absurdo randômico, como a loteria, faziam sentido. Por isso, um dos seus primeiros atos como governador foi proibir o jogo de xadrez dentro das fronteiras da Dalmácia: a pena, para quem descumprisse a ordem, seria a de uma morte semelhante ao último xeque que recebeu em vida, elevado a última potência. Por exemplo: uma mulher poderia ser atropelada por uma manada de cavalos, ou um homem morto pelos filhos do seu último adversário; havia mesmo a possibilidade de que um marido fosse morto por sua mulher, esta servindo de arma, coberta de barro, e caminhando de ponta-cabeça. Felizmente, relato não há de tão insólitas execuções.

A população rapidamente ficou em polvorosa: uma rebelião sem precedentes nem descendentes se instalou naquelas terras. Durante semanas, multidões, de 16 seres cada uma, rumavam em direção ao palácio real, trajando os hábitos mais bizarros, para protestarem. Cavalos eram travestidos de rainhas, camponeses aprendiam a ler e invadiam os monastérios zoroástricos; sumos-sacerdotes abandonavam seus sanctuns e iam lavrar os solos áridos, e mesmo multidões de bárbaros mercenários assírios eram contratados para carregarem casas inteiras em direção a capital, com seus donos bradando em cima dos telhados. Tal era a balbúrdia, que a loteria, mesmo sendo permitida, deixou de existir enquanto durou aquela proibição, por falta de quem nela apostasse.

Em questão de dois meses lunares de ingovernabilidade, Plínio retirou o decreto. Em seu lugar, implementou outro, em que o jogo tornava-se liberado desde que a rainha não mais fosse uma peça útil. A Plínio, que não chegara a se casar e não deixara descendentes, o que mais incomodava no enxadrismo era o poder que a dama era capaz de exercer; e o rei, tão crucial, mal podia combater com um peão. Pela nova regra, era o rei que tinha uso ilimitado das casas, das direções e dos ataques. A pena para estes novos criminosos era a mesma que para os antigos, as quais não chegaram a ocorrer.

Fato é que ninguém obedeceu à nova lei, embora ninguém tenha sido flagrado em delito. Formou-se uma espécie de sociedade secreta em que todos, mulheres, jovens, camponeses, grãos-mestres, participavam, e todos sabiam que todos os moradores da Dalmácia participavam a exceção d’O Ignorante, em cujos subterrâneos se jogava o xadrez tal como Dário, O Grande, o havia trazido da Mongólia. Mesmo o alto clero pessoal d’O Ignorante participava de tão conspícua máfia, sob as narinas do governador, sem nunca serem notados.

A esta altura, conspirações de corte surgiam que visavam a queda de Plínio II. Diariamente, sessões solenes de rolagem de dados, restritas mesmo ao imperador, eram concorridas para que, entregues ao Absurdo, ao Nada, ao Total, os zaratustrianos fossem iluminados sobre o que fazer diante de tais ditames. A Plínio já não cheirava bem o exclusivismo do uso dos sacros poliedros, uma das coisas que o levou a fazer o que se segue.

Houvera tido notícia de que os geômetras do visinho reino de Ukbar* haviam conseguido a impossível proeza geométrica de, alongando o tabuleiro de xadrez de um quadrado para um retângulo áureo, alongarem suas casas para a forma de triângulos isósceles, passando a jogarem o famigerado jogo nesta forma. As pedras se descolavam de pico a pico de cada triângulo, conforme antes deslocavam-se de quadrinho a quadrinho. Curiosamente, o mesmo não conseguia ser feito num tabuleiro de damas, muito embora a forma de ambos fosse a mesma, e um tabuleiro de damas pudesse facilmente ser usado para o jogo de xadrez. Plínio, que havia, por motivos idênticos às outras proibições citadas, debelado o estudo da geometria e suas ciências irmãs (Astronomia, Matemática, Astrologia), mesmo assim importou, a altos custos estatais, o novo jogo das terras da Orbis Tertius. Incorporou a ele, ainda, o jogo de dados.

O escândalo não poderia ser maior: como impor revelador randomismo à pura matemática estética das torres semoventes, dos cavalos bailarinos, dos humildes oito-peões? Vitupério maior era usar o oráculo para mero divertimento**. Mais tarde soube-se que a afronta de Plínio não chegou a tais altitudes. Em verdade, Plínio cria que o novo jogo podia servir, a um só tempo, de oráculo e entretenimento lógico – óbvio paradoxo! Pretendia ele invadir a Trácia Transcarpática, e o tabuleiro, com seus triangulares picos, era o mapa fadesco e destinatário dos acontecimentos vindouros. Não era Plínio II letrado nas artes místicas das leituras de oráculos, mas, ao modo dos gregos (embora não soubesse disso, ou mesmo que os gregos assim agiam), pensava que, tanto menos se soubesse do uso dos oráculos, melhor eles funcionavam. Movia as peças apenas quando e como os dados rolados permitiam, e assim ia sabendo e planejando sua tresloucada invasão d’além Cárpatos.

Foi precisamente nesta invasão, malgrado dele mal sucedida, que Plínio desapareceu, soterrado por uma avalanche de pedras marmóreas polidas, circulares e chatas – contaram-se, na época, dezesseis ao todo.”

(Nota do Tradutor: *Até o presente momento, nenhum texto historiográfico apresentou sequer longínquos relatos sobre a civilização de Ukbar, contudo tenha aparecido, numa edição do início do século XX da Encyclopaedia Britânica, uma página avulsa a respeito. Esta pagina aparecia apenas em alguns exemplares dela, no volume 22, mas não em todos, podendo ser uma fraude. Relatos há que textos sagrados da Rosa-Cruz tratariam do desaparecimento de tal povo, conjuntamente com o afundamento da Atlântida – apesar de Platão, na sua Atlântida, sequer mencionar Ukbar. Caso o presente relato seja confirmado como verdadeiro, indícios sérios para o fim da controvérsia começam a ser cunhados.

**O jogo de Plínio II, O Ignorante da Dalmácia, assemelha-se ao nosso atual gamão – o leitor deve ter notado que as regras e o modus jogandi, se se difere um pouco do atual jogo, é pelo menos tão ininteligível quanto. Evidentemente, entre os idos prováveis de 500 a. C. e os dias de hoje, o gamão não havia aparecido até fins do século XVII. Contudo, com a narrativa de Crasso Lucano, a história da jogatina poderá ser profundamente alterada, e ficção há necessária a ser escrita para dar conta do sumiço do jogo ao longo de tantos e tão diversos tempos, bem como de seu repentino reaparecimento.)

Particularmente, a linguagem seca, direta e diretiva do latim tirou um pouco o sabor da história, embora lhe dê saber. O materialismo romano tenta dar veracidade ao contado, porém, neste caso, dados os episódios virtualmente improváveis, mais lhes confere inexistência. Bom seria que os próprios persas houvessem se dedicado à arte da narrativa, e não meramente ao cálculo burocrático, que é arte menor, pois teríamos um gosto mais ficcional, caso a história se provasse verídica, ou melhor noção de sua absurda conjectura, caso não.