As Plumas

25/07/2016 at 10:00

Um dos meus dois contos, ambos já premiados e publicados, escritos ao modo dos Diálogos com Leucó, obra-testamento de Césare Pavese (encontrada na cabeceira de sua cama quando se suicidou). Este, um diálogo entre Ossanha e Oxum a respeito dos amores de Oxóssi e sua bissexualidade; o outro, que pretendo postar em breve, um diálogo entre Simão Pedro e Judas Iscariotes enquanto arrumam a mesa para a Última Céia  no Montes das Oliveiras, chama-se Os Galos, a respeito do tema da traição voluntária ou involuntária. Intento escrever um terceiro, Órbitas, um diálogo entre o satélite de Júpiter, Ganymédes, e a estrela Antinoo, sobre o amor de e por homens mais velhos e urbanos com meninos campesinos.

As Plumas                                                                                        

para Emílio Rodrigué, Mestre Didi e Pierre Verger

Dois deuses seduziram o Caçador Solitário, com algum sucesso: o tiveram, se deitaram com ele, amaram e foram amados; dois deuses: um homem, uma mulher; um, senhor das brisas, dos insetos e das folhas; outra, das águas doces e límpidas. Ambos os deuses perderam-no brevemente, que não pode ser de ninguém; ao tentar mudá-lo, contê-lo, foram o deus e a deusa contidos, mudados, por ele.

(Oxóssi, uma Diana homem – homem feminino, é verdade, lá onde Diana é um Oxóssi mulher, uma mulher máscula: a corça, o alce campeiro).

 

Oxum

Tudo o que lembro dele é que era belo, e meigo de um modo displicente; que cheirava a homem sadio, levemente suado de um suor que não fedia; e que dançava, como embriagado de espíritos. Eu era triste e todo meu corpo um rio de lágrimas – ele se banhou em meu corpo, curando sua ressaca.

 

Ossain

Guardo ainda hoje seu travesseiro de arrudas e alecrins secos – já não cheiram nem têm a maciez de sua pele, contudo me lembram dele cochilando, exausto e contente, sorriso de criança sem mãe, enquanto eu cozinhava suas caças: caitutus, faisões, inhame-de-umbú…

 

Oxum

Aluá, e cânhamo…!

 

Ossain

Gostava de aluá, que bebia contido como um reizinho de seu próprio reino no qual se julgava o único súdito (todos nós estávamos a pedir exílio para dentro de seus domínios, porém só nos era dado visitá-los, passear por eles, nunca tomar-lhe parte. Seu pequeno reino era o Mundo). De cânhamo não gostava, só uma vez o tragou a pedido, e de outra dei-lhe sem que o soubesse: era bêbado que ficava mais belo, dançando como os pássaros.

 

Oxum

Eu não precisava de tais expedientes. É certo que ébrio de sentidos, incapaz de ser certeiro com suas flechas, ficava magnífico – no entanto, minha beleza e minhas puras águas bastavam para inebriá-lo.

 

Ossain

Eis que te enganas! Foi muito senhor de si que ele comigo se deitou, com sua flecha em riste, seu arco em punho. Foi porque quis, porque me desejou.

 

Oxum

No entanto, nunca nos amou, nunca amou a nada nem a ninguém – só a si mesmo e a suas matas, impenetrável na sua liberdade.

 

Ossain

A ti, ele amava, confessou-me trôpego um dia. Quando te emprenhou, apenas fingia não saber, posto que te conhecia: tu querias ser dona de si e de teu ventre; ele, soberano, o consentiu. E no berço de lírios depôs suas armas.

 

Oxum

O fruto do meu ventre, tão logo começou a andar, seguiu o rastro do pai.

 

Ossain

Coberto de teus ouros, e é a teu leito de rainha que tua criança sempre volta. Já para mim, o arqueiro também retorna: dorme nos meus galhos, se protegendo das onças e guepardos; rouba-me bagas e drupas (cajás, cajaranas, abios, ingás); bebe a água fresca de meus cipós. Às vezes, até, conversa longamente comigo sobre os pesares do mundo, as colheitas, o tempo de suas chuvas.

 

Oxum

E não te ama?

 

Ossain

Ama, é certo, meu amor por ele; como ama vosso filho mais que a vós (talvez até o desposasse, travestido de fêmea como anda). É por isso que o embriago: é vendo-o dormir ou bailar, e não deitando-me com ele, que mais me encanto; é por isso que se deixa talvez embebedar: ele quer ser mais amado, sendo ao mesmo tempo mais livre.

 

Oxum

Não mais o vi, nunca mais. Em sonhos, tenho a impressão de que se lava nas cascatas de meus cabelos enquanto pastoreia uma vara de queixadas e porcos do mato.

 

Ossain

A mim também vem em sonho – redemoinha minhas folhas caídas, e sei que foi ele por no dia seguinte tudo estar florido, com abelhas fazendo o mel que ele tanto cobiça e despreza. Espera, ouve! Ouve?

 

Oxum

Um farfalhar, sim. O que é?

 

Ossain

Um tropel de veados, uns tamanduás em fuga – até tatus cavando tocas, urgentes, nas minhas raízes. É ele que lá vem!

 

Oxum

É ele?! Tem certeza?!

 

Ossain

Jamais me enganaria com esta alfazema, esta lavanda, estes assovios no ar. É ele…

 

Oxum

E finalmente, estou acordada! Que saudades: desta vez o verei.

 

Ossain

Acordado, ele não nos chega. Tem seus ardis, sua timidez de moleque ao roubar mangas. Durmamos…

 

Oxum

Não quero! E nem conseguiria. Sinto sua falta, preciso dele em meu seio de mina.

 

Ossain

Anda, toma um gole de aruá; fuma este cânhamo. É preciso sonharmos para que pareça ser nosso.