Engasga-gatos, gororobas e requentados I

14/08/2012 at 10:41

Sem paciência, tempo ou estímulo para escrever cousas novas, por outro lado ando precisando catar e trazer pra cá, organizadamente, textos meus dispersos por aí em sites dos outros, muitos escritos sob encomenda.

Vão passar a aparecer por aqui. Há coisas bastante antigas, do tempo de listas de discussão, que eventualmente alguém resolveu transformar em post; há posts mesmo do tempo em que eu não tinha blog; e há posts bem atuais e recentes, escritos para terceiros. Assim mesmo: como left-overs in the fridge, heated on the microwave oven.

Abaixo, um ensaio meu sobre sem dúvida a mais bela mulher do cinema atual, e como este se presta a depreciar sua beleza sadeanamente.

O Corpo Supliciado de Monica Bellucci

Isso não é um comentário sobre Irreversível, grande filme de Gaspar Noé, imperdível – mas apenas para os que têm estômago de personagem sadiano. É sim, um comentário sobre um uso recorrente do corpo da atriz Monica Bellucci que se repete com mais intensidade nesse filme.Podemos dizer que Belucci é o único mito feminino em atividade, hoje, no cinema – no sentido barthesiano do termo. Refiro-me ao ensaio O Rosto de Garbo, de Mitologias. Nele, Barthes mostra como Garbo, ou antes, o uso fotográfico da ambivalência sexual (e ao mesmo tempo total assexualidade) do rosto de Garbo, marca o trânsito do cinema mudo para o falado, do P&B para cores – da pudicícia a um cinema “realista”, e de um cinema ingênuo e para o povão, para um cinema mais artístico, mesmo em Hollywood.Que Garbo era lésbica isso é fato notório. E que era uma mulher de rara beleza, e para a época, de rara atração sexual, também. Mas seu rosto é sempre frio, e há uma tentativa constante de apagar qualquer traço de atrativo sexual, e de ambiguizá-lo. É um rosto feminino, sem dúvida, mas que ainda fica, ou é forçado a ficar, a meio caminho entre o masculino e feminino, não porque em ambos, mas porque em nenhum – como o de um anjo.Em Bellucci, não se trata mais do rosto, mas do corpo. É um corpo voluptuoso, altamente desejável, belíssimo em cada parte (e de uma beleza generosa, farta de carnes, para alguém que foi modelo de passarela). Mas é gélido também. Contudo, não é esse o ponto.

A beleza de Belucci parece ser sempre um meio de atingir a degradação para retomá-la depois: ela pode ser sempre destruída, que sempre poderá ser reconstituída inteira no momento seguinte.

A primeira vez em que aconteceu foi Malena, do Tornatore. Ela é uma personagem linda, sedutora, voluptuosa – mas que só aparece nua realmente na cena em que as outras mulheres do vilarejo cortam seus cabelos, a espancam, esfregam na lama, etc. para, poucas cenas depois, ela retornar de novo exuberante.

Ai, o uso ainda é discreto, pois são mulheres que a agridem, e tem um fundo moral isso.

Em Irreversível, é um homem, e um homem perverso: gosta de homens, de mulheres e de travestis, freqüenta clubes de orgias, sadomaso, etc. E é um estupro! Não há fundo moral, nem para ele, nem para ela – Irreversível não é uma fábula moral (a não ser para o personagem de Cassell, para quem se põe o drama). E seu corpo aqui é muito mais agredido, vilipendiado, e com fim único sexual. De fato, a personagem não sente prazer na cena. Mas a sensação que temos é que Belucci, o mito, goza de que seu corpo sirva para representar uma mulher estuprada, mulher que, contudo não goza disso. É uma ambigüidade: ela goza como atriz/mito, justo por não gozar como personagem (em Malena, o mesmo, mas mais discretamente).

Nesse sentido, podemos compará-la a uma personagem sadiana: como a Justine de Sade, seu corpo se presta a ser eternamente castrado, estropiado, porque no dia seguinte ela sempre estará intacta novamente – prestes e pronta para outro espancamento.

É nesse sentido, e só nesse sentido, que Irreversível é um filme sadiano (digo isso porque muita gente já o comparou com o incomparável Salò, de Pasolini). No mais, como disse, é uma fábula moral, um thriler, ou um filme trágico/metafísico no sentido nietzscheano. Mas Belucci permite que seu corpo, como uma santa-mártir, sirva para ser habitado por tipos que sofrerão conseqüências duplamente sadianas: serem destroçados, e sempre reconstituídos perfeitamente após o destroço – e os atos sempre com fins sexuais.

Aí vemos como em Matrix ela está extremamente subutilizada: numa cena que se passa num clube sadomaso fake, ela não é vilipendiada uma só vez – mas seu corpo mítico, seu rosto mítico (como o de Garbo), parece pedir “espanca-me ou te devoro” (tal como Garbo, anos antes de dizer a frase, sempre parecia dizer “Eu quero estar sozinha…”).