Dom, dádiva e dívida

21/05/2012 at 10:21

Já de muito tempo tem me causado náusea estas festinhas de música eletrônica em locais ermos e isolados. Não se trata de negar a importância que a e-music teve, por exemplo, na Bahia durante a resistência ao Axé-System (eram os únicos ambientes que todas as tribos frequentavam, rompendo com a dicotomia falsa axé-music X rock) e nos primeiros anos da Reforma Cultural (aí muito na figura de Ramiro Musoto). Bem ao contrário, parece que, Axé-System sendo desconstruído e o rock abraçando outras vertentes (inclusive, e finalmente!, o pagodão), a e-music tornou-se uma ideologia burguesa, um neo-neoclassicismo fugere urbem, eivado de veganismo – esse tratamento que os maconheiros do campus de São Lázaro dão ao Vale do Capão (na Chapada Diamantina) como se fosse uma disneylândia de um socialismo macunaímico.

Após assistir ao recente filme brasileiro Paraísos Artificiais, um filme que mean more than it says, isso ficou mais claro para mim. Filme aliás ao qual eu quero contrapor ao ultra-urbano, e no entanto bem menos burguesóide, Shame.

A burguesia gauche compra sua liberdade de plástico, num neo-bucolismo vegano

Tomemos o grande ícone destas festas de música eletrônica em meios de mato e praias desertas na Bahia atual: Universo Paralelo (e seu nome é já um sintoma). Ocorre no Reveillon e no Carnaval. Seus frequentadores em geral dizem não suportar o carnaval de Salvador porque está “privatizado e elitizado” (o que, convenhamos, é meia verdade: a pipoca sempre existiu, existe e existirá, com ou sem políticas públicas para ela – “o carnaval quem faz é o folião”, diria o BaianaSystem, no “quem tá embaixo quer mais espaço / se esgueirando feito ninja / no meio da multidão”). Como solução pessoal para isso, negam não o carnaval elitizado do Axé-System (para isso, bastavam eles radicalizarem a urbanidade do carnaval e sairem na pipoca), mas justamente negam a negação desta elitização (a pipoca ela mesma): como se elitizar ainda mais, fugindo da cidade para uma natureza idealizada, fosse solução.

Assim, esse Universo Paralelo só o é em espelho convexo: amplia e deforma O Mesmo, sem jamais criar O Outro. Seus frequentadores, que sem dúvida se acham de esquerda (talvez PSOListas), estão à direita do Camarote Salvador (cujos frequentadores bem ou mal, para acessá-lo, precisam passar pelo meio do povão). É um horror à cidade não pelo que ela tem de capitalista, mas pelo que ela tem de ecossistema libertário e libertino. Os Universos Paralelos são uma tentativa de comprar a liberdade como dívida, e tomá-la como dádiva (benesse de classe) e não como exercício (conflituoso e no comum).

(Se falo dádiva, mister atinar para que estou subvertendo o termo de Marcel Mauss: não se trata do dar gratuito que espera reciprocidade idem, mas sim da idéia de que “caiu do céu”. Essa liberdade, ao mesmo tempo comprada e ganha como direito, é artificial – uma vez que a verdadeira se dá como um exercício custoso, mas sem preço, e conflituoso de si mesmo. Este é o dom, bastante humano e sempre em construção, work-in-progress da superação-de-si no que no “mundo de vocês” – diria Jean Genet – se chamaria de lutas).

Pra resumir: os e-music confundem Axé-System (uma infraestrutura) com Axé-Music (superestrutura), e atacam meramente sua estética, repetindo e acirrando seus modos de produção, sua ética. Se têm horror ao Carnaval de Salvador não é horror aos camarotes e blocos de corda, mas certo nojo do povão, do suor da negrada, do pagodão baixaria, do Ilê Ayê subindo o Curuzu, dos muitos beijos rizomáticos dos Filhos de Gandhy perdidos na avenida, da água mineral do Candeal e do empurra-empurra na Timbalada. Universo que é Paralelo porque corre lado a lado, e jamais contra, o Axé-System – ele mesmo um Axé-System vegano e de sinal trocado.

Inclusive, se a música eletrônica representou na Bahia sob o carlo-axezismo um espaço múltiplo, onde viados saiam do gueto e heteros entravam nele, hoje se tornou profundamente heteronormativo (o que, convenhamos, pipoca nenhuma nunca o é). É aí, principalmente, que Shame lhe é oposto: é certo que seu personagem principal é uma emulação pequeno-burguesa da libertinagem heterossexual – no entanto, como libertino, não vê problemas nos prazeres com o mesmo sexo, se calhar.

E se em Shame a liberdade também gera dívida, ela não é meramente comprada nem ganha: é tratada como exercício radical de si, impagável por não ser precificável (não se converte totalmente em mercadoria, enquanto em Paraísos Artificiais ela é um fetiche). E, certamente, esta dívida nunca é moral (o que não se pode dizer da mauvaise-conscience bourgeois dos que vão a Península de Moreré por mera urbanofobia motorcrática e carrocêntrica, num pseudo-ecologismo de avatar marinista): nem mesmo diante das sucessivas tentativas de suicídio de sua irmã, o personagem principal de Shame se sente culpado, embora abrace sua responsabilidade subjetiva (de novo, o oposto da película brasileira: onde todos são culpados sem ninguém ser responsável).

Para concluir, me volto ao velho adágio medieval, forjado pela burguesia quando ela era uma força de distribuição de renda (e não de concentração da mesma): só a cidade é capaz de libertar – a natureza, o campo, nos retira potência, nos aprisiona.

(O tema de como esse hippiesmo anti-urbano era, já na sua raiz, um reacionarismo burguês usado pelo aparato industrial-cultural capitalista fora anteriormente muito bem trabalhado por Ang Lee em seu Taking Woodstock. Lee é um mestre do conservadorismo, no mesmo sentido em que Jacques Le Gof ou José Lins do Rego: a leitura de que os sistemas anteriores ao capitalismo pleno eram, em certa medida, mais dignos para todos. Assim, em Riding With The Devil, Ang Lee nos mostra como a abolição da escravatura nos Estados Unidos foi um artifício para tornar os estados do sul colônias de exploração dos estados do norte; ou em IceStorm como a chamada Revolução Sexual foi meramente um acting-out neurótico da burguesia de subúrbio. Em Taking Woodstock ele vai além: se algo de bom havia nos hippies setentistas era justamente seu retorno a um ideário do século XIX, da Bélle Epóque e do decadentismo – do uso de mescalina à cartolas e estamparias indianas – isto é, no que a contra-cultura involuntariamente tinha de intensamente urbano; sua busca por um “mundo melhor”, vegetariano e no meio do mato mas com showzaço de rock, isto sim era contra-revolucionário. Eis algo que a esquerda não deveria desprezar: o comum do comunismo passará por um retorno, sim, das formas comerciais urbanas anteriores ao capitalismo – Jane Jacobs bem sabia disso, no seu rasgado elogio às cidades vivas porque levemente desorganizadas e por isso intensas).