Taylor-food

10/12/2011 at 22:18

(O título desta crônica ensaística é intensionalmente ambíguo: Taylor, sabemos, é o sobrenome do homem que radicalizou a fetichização fordista com sua “especialização flexível”, mas é também o termo em inglês para alfaiate – isto é: para o artesanato que ascende ao estado de arte aristocrática, duplamente oposto ao industrialismo burguês, como se nota. O curioso é que Taylor tem tal sobrenome provavelmente porque um seu antepassado fora um alfaiate famoso – como se o industrialismo máximo, que nunca é ótimo, pudesse nascer de dentro do industrialismo ótimo, que nunca é máximo).

Recentemente, ao explicar a um conhecido de outra cidade, pelo twitter, porque bicicleta não se compra pela internet a não ser que seja uma grande marca como Dahon, e da necessidade de ir antes a uma bicicletaria e conversar longamente com um mecânico, dei-me conta mais consistentemente de algo que circula na ascenção a masculinidade adulta: o bom mecânico é mais do que um mecânico eficiente – é alguém em que se confia como um cirurgião, cuja relação corpórea é íntima como a de um alfaiate (que conhece o bom tecido pelo som, como um mecânico a sua máquina). Vale para bicicleta e vale para carro.

Para exemplificar tal, citei minha relação com Nem. Nem não tem nome, é Nem mesmo – qualquer um na Favela da Polêmica, sopé de Campinas de Brotas, Salvador, sabe quem é Nem. Honestíssimo, todos garantirão. E de um mau-humor proverbial. “Diga, abençoado!” (com um tom de quem está a me chamar, na verdade, de “amaldiçoado”), se ligo para agendar serviço. Seu esmero é sem par: indigna-se que eu use uma Fuji CrossTown Ladies cujo câmbio da coroa maior do pedal não se sustenta sozinho, e eu tenho de sempre mantê-lo forçado com o punho. E não se aquieta até dar um jeito: torções milimétricas de eixo aqui, empenos minúsculos da alavanca alí. É, para ele, uma questão de honra – e nada me cobra.

Conheci-o por acaso, quando o câmbio de uma bicicleta velha e peba que eu tinha travou. Perto de onde trabalho fui perguntando onde havia um mecânico e cheguei na sua biboca – um forno sem ventilação numa viela cheia de entulhos. De lá pra cá, minha confiança nele só aumenta. E é mutua. A confiança, ouso dizer transferencial, que se conquista para-com um bom mecânico nada tem a ver com seu saber técnico (embora este seja importante) ou qualidades morais (ele pode ser levemente mau-caráter e totalmente enrolado) – e sim com uma suposição de saber. E, como com um alfaiate, esta relação se faz quase num cortejamento não-sexual, e cordial, entre cavalheiros. Um serviço não-cobrado, retribuído com ingressos para um espetáculo; uma garrafa de vinho, retribuída com peças avulsas gratuitamente.

* * *

Há uma piada não-dita sobre chefes de cozinha: só são gays aqueles que não parecem. Marcio Leite, titular recente do Madame (Mme) Champanharia, Rio Vermelho, (aonde não ia há quase ano, mas de que sempre gostei), franzino, com ar de hobbit, apesar dos incrivelmente lisos cabelos e  olhos cinza-azulados (uma Liz Taylor às avessas: se esta tinha olhos de cassis, blueberry, mirtilo, os dele são como a parte de dentro de uma jaboticaba já murxando e tornando-se ácida, levemente passada e alcoólica) que lhe confere aspecto alto-feérico, não foge a isso. Após experimentar seu excelente mousse de chocolate (rigoroso: apenas claras em neve e chocolate em barra derretido) em camadas do Chocolate AMMA, interpelei-o pela janela da cozinha:

– Você é casado, né?

– Sou.

– Que pena…

– Mas pode vir que eu cozinho pra você…! – entre risos.

E não apenas da boca pra fora. Neste mesmo dia havia insistido que eu preferisse uma criação mais autoral sua: uma tábua de chocolates AMMA com especiárias. Negaceei, mas num outro dia encarei. E foi o que eu chamo de grata decepção (ou melhor: desta vez, um sucesso infeliz). Chamei-o até o balcão e comentei longamente o prato: tinha total domínio lexical na escolha das especiarias, contudo sem amálgama sintática o prato não passava de um rascunho de boas idéias, poem-a-cléf em que os versos não se relacionam entre si; o que gerava ainda um problema pragmático: nenhum talher dá conta de tanto pó e pedaço irregular de chocolate, e ao mesmo tempo como toda boa culinária tem origem campesina, deveríamos pegar de mão e mascar, por exemplo, pau de canela – só que nenhuma das clientes neo-high-society do Mme (Madame) se sentiria a vontade de fazer isso, mesmo se incentivada explicita e verbalmente a tal.

– O que você sugere então? – perguntou a mim.

– Que as especiarias não estejam soltas, e sim em algum molho: iogurt ou creme de leite Villa Rial é uma hipótese, mesmo levemente confitado em manteiga é outra.

– Tem razão.

– Outra hipótese é evitar o Chocolate AMMA, que corta mal e é melhor para cozinhar, e optar pelo Bahia Superior, que tem um caráter mais de snack, em barrinhas pequenas, e é mais aromático por conter açúcar mascavo.

– Ainda não conheço, preciso experimentar.

Para-além de ser um autor buscando a clínica de sua obra que só um crítico pode dar, essa disposição de ouvir, mudar, de servir como um valete-de-chambre, ao mesmo tempo sem subalternidade – numa igualdade desigual entre cavalheiros – faz dele um alfaiate culinário. E não se pense que é só nos doces (o que por si já seria muito: é supinamente mais difícil bons chefs nas sobremesas, que tendem a ser infantilizantes e seguramente aqui não é o caso).

Outro dia experimentava uma tapas sua de polvo refogado com um gorgonzola tão jóvem que parecia um queijo brie (a rigor, uma variação do galego e popularesco pulpo a la feira) – eu que não gosto de gorgonzola nem em pizza, e tenho restrições a polvo salvo o ao cipoeiro da Barraca de Jajá na Praia de Jaguaribe quando o Asa-de-Águia não chamava apenas Asa e era proto-axé de qualidade 20 anos atrás. A primeira mordida dei distraído, esquecido inclusive do que compunha o petisco. Surpresa imediata: o polvo, mais firme mas mais macio do que de costume (por estar refogado e sequinho, e não cozido meramente), contrastava com o queijo mofado que parecia desabrochar – um vestido de seda pura com sinto de couro, um satori palatino, um paradoxo heracliteano na copa-e-cozinha se realizava entre a minha língua e meu céu da boca.

Aquela sintaxe que faltava enquanto sobrava semântica na tábua de chocolate com especiarias, aqui estava inteira, hexâmetro de redondilha, quase poema de Lorca.

* * *

O bom alfaiate só o é com bom tecido (lembro de Nem reclamando todo dia de um freio V-brake original de fábrica da Dahon Curve, e só parou quando troquei o jogo completo – não comprei sequer na sua mão – para que ele pudesse regulá-lo com mais facilidade e tranquilidade). Pode inclusive recusar-se a fazer uma camisa se considera que a cambraia, comprada pelo próprio cliente sem o consultar, não é digna de sua tesoura.

Nesse sentido, Dom Diego Badaró é um tecelão. Os chocolates da AMMA não são tão bons para serem degustados puros, diferentes do Bahia Superior e do (ainda não comercial) da Fábrica de Ibicaraí, aberta pelo Governo do Estado da Bahia e entregue para ser gerida por uma cooperativa de agricultura familiar da região grapiúna. Por outro lado, os chocolates da AMMA são talvez os primeiros feitos no Brasil com o intuito de serem ingredientes de cozinha: eles são o tecido que faz roupa de bom corte, o veludo, a seda, o linho.

Dom Diego cuida desde o plantio, retomando a produção das fazendas de sua heráldica família, cujo sobrenome comparece até mesmo em personagens de Jorge Amado, até a confecção fabril. E com isso ele finalmente leva Ilhéus a fazer o que Rômulo Almeida preconizava no Governo Antonio Balbino: ao invés de exportar o cacau bruto para fábricas de larga escala (a Garoto em Vitória, a Nestlé no Rio de Janeiro) ou de luxo (Bélgica e Suíça), produzir chocolate lá mesmo, agregando valor e dando estabilidade economica a esta frágil agro-indústria. Com isso, a AMMA é sim peça chave na retomada da Avant-Gard Bahiana que em boa medida representa o fim do Carlismo e a ascensão de Jacques Wagner ao governo. Não por acaso é a partir do modelo de Badaró que o Governo viria a financiar o Bahia Superior e investir diretamente na Agricultura Familiar de Ibicaraí – rompendo inclusive com a lógica latifundiária do cacauísmo (com a qual Dom Diego rompe por outras vias: como o terroir em seus chocolates é tão importante quanto no bom vinho, a produção é em pequenas glebas e cepas com caraterísticas locais específicas). O que não deixa de ter relação com sua capital: entre as indústria que Salvador perdeu em seu processo de suburbanização que Milton Santos já denunciava, está a fábrica de chocolate da família Adler – a Chadler, no bairro de Paripe.

Veludo Negro, nas mãos de um Yves Saint-Laurent

Audaz, criou dos poucos chocolates do mundo feitos 100% de grãos de cacau: nenhuma manteiga, nenhum açúcar. O AMMA 100% é intragável! Tão amargo que chega a ser salgado, só serviria para cozinhar pratos principais: nem entradas nem sobremesas – e no entanto, é uma obra-prima. Parafraseando e.e.cummings no seu célebre Prefácio ao livro “is 5”, o AMMA 100% Cacau não disputa apenas com outros chocolates célebres, mas com os poemas das Elegias de Duíno, de Rainer Maria Rilke, a Sinfonia Titã, de Gustav Mahler, e a esculturas monumentais de Victor Brecheret. Disputa também com o acidente geomórfico do Raso da Catarina. Tem cheiro de tiroteio indígena em épico de Adonias Filho, e se a obra de Pierre Verger sobre a diáspora negra no Atlântico entre a Bahia e Benguela fosse comestível, seria o AMMA 100%. Seu sabor segue rimbombando na boca horas depois da ingestão, como um verso decassílabo heróico.

Dom Diego fez assim um “chocolate de tese”, no sentido em que se diz “romance de tese”. E se as referências que me ocorrem são de alguma forma expressionistas (é dizer: art-decor), não é acidente: se o chocolate é o alimento art-nouveu por excelência (é o café portátil, de bolso), e a derivação natural da forma vegetal-funcional da Art-Nouveau é o inorgânico in-funcional do Decor, é isso que Diego Badaró realizou em sua obra-prima até agora: um chocolate de formas rombudas, e opressivas, ainda que redondas, cuja maestria está no que causa de desagrado e desagravo ao paladar. Como uma castanha do pará, ele é tão rico em nutrientes e sabor quanto tóxico nos mesmos. O Marquês Alfonse Donatien-François, que tanto gostava de chocolates justo por esta ambiguidade “pharmacon de Platão segundo Derrida” de ser tanto uma restauração para a libertinagem quanto um veneno para realizar os crimes desta, se encantaria.

(Questionarão alguns como eu, que agora aderi a Anti-Literatura, posso estar tão burguês e elitista novamente. Lembro-lhes que Roland Barthes percebe que tanto Fourrier quanto Sade vêem na sala de jantar das altas classes a única real forma de socialismo, e de suspensão da opressão do Estado em direção ao Direito do Comum – e Hakim Bey concordaria.)