Teorética & Práxis do Anti-Jornalismo – nº3

25/02/2011 at 13:08

Imparcialidade, Neutralidade e Abstinência

Vivendo cotidianamente a contradição fundamental do Jornalismo – transformar Fato em Notícia, através da alienação do leitor e da extração de mais-valia Versus manter-se fiel a uma Verdade, dita objetiva e universal -, o sujeito que pratica esta prática-discursiva busca solucioná-la com um mito: o da (Im)Parcialidade.

É verdade que alguns jornalistas, mormente os ligados a escola americana do pós-guerra chamada de New Journalism (que aproxima o jornalismo da literatura – o que na prática quer dizer: só é funciona quando é ficcional), rejeitam em bloco a Imparcialidade, negando-a de todo e assumindo-se Parciais. Não deixa de ser uma solução mais inteligente do que cair no mito sem refletir, mas continua a ser pouco engenhosa – algo muito similar ao ateismo que se contenta em “negar que exista um Deus”, sem se dar conta que toda negação implica numa afirmação prévia (quando a CartaCapital assume sua Parcialidade, ela admite que possa existir, ainda que no plano do mito – do, em psicanálise, “Ao menos um” – a Imparcialidade), e não busca entender a quem interessa a existência de ambos os mitos (ateísmo e teísmo igualmente). É diferente por exemplo do ateísmo de Freud, para quem a existência ou não de um deus é irrelevante – uma vez que a idéia sempre será apenas um resquício arqueológico mais ou menos infectado e inflamado do Complexo de Édipo.

Assim, assumir que o modo com que se lê um Fato e produz-se Notícia é de saida inviesado não resolve o dilema – afinal a extração de mais-valia e a alienação do leitor se mantem, agora com transparência e honestidade (o que já é moralmente elogiável), lhe conferindo aparência de Neutralidade. Mas, como se vê, não se modifica com isso nem os modos de produção (infraestrutura) nem a ideologia (superestrutura) que garantem o surgimento e a permanência do Jornalismo enquanto discurso e prática.

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Assim, assumir-se Parcial é uma inflexão, um “trânsito em zig-zag” no dizer de Mario Praz (sobre como o Realismo não rompe com o Romantismo ou com a ordem burguesa, sendo apenas uma crítica interna a ambos), sem ser um corte, uma ruptura ainda que mental e de paradigma intelectual, com o Jornalismo.

Em outros termos: a CartaCapital faz jornalismo honesto, de maior qualidade, e “à moda antiga” – mas Jornalismo ainda. Está-se longe de ser Anti-Jornalismo aquilo, por mais que ela mire, atire e acerte na cabeça do Des-Jornalismo atual (o que, claro, a torna uma aliada tática preferencial, mas segue sendo uma adversária estratégica).

Já dissemos antes que a prática do Anti-Jornalismo implica em sobretudo não buscar insidiosamente Fatos como sintomas, nem dele extrair Notícias como diagnósticos; antes, seria através da associação livre e da atençnao flutuante que um Anti-Jornalista produziria seus textos: mais como testemunha passiva, do que como repórter ativo (até porque um Anti-Jornalista não tem a quem se reportar senão a si mesmo. Ele não tem nenhum tipo de servidão voluntária para com o Outro, nem imperativos superegóicos de “fidelidade”, embora tente seguir esta ética do ponto de vista do desejo).

(O Anti-Jornalismo implica em, embora leve em consideração o que seus leitores lhe dizem e dialogue com estes, não estar sequer a serviço destes. Aliás, a própria divisão hierárquica Autor-Leitor deveria desaparecer – mais ou menos como diz Roland Barthes sobre Proust: “o maior escritor do mundo, entre o Romance, a Biografia e a Historiografia Política, não tem nenhum leitor: apenas amigos”. Amigos, aí bem entendido, no sentido de convivas e concidadãos).

Ora, tanto a atenção flutuante quanto a associação livre, técnicas da clínica psicanalítica que podem ser aplicadas a qualquer outra coisa (e não significam falta de método ou de rigor), só podem existir se há Abstinência. Abstinência é a solução freudiana para o dilema Parcialidade X Imparcialidade. Não existe psicanalista Neutro, e isto não é um defeito: sem desejo da parte do psicanalista, nenhuma análise pode acontecer. Porém, uma análise acontece apesar do psicanalista desejar, e não por causa deste desejo – só que não acontece sem este.

Toma-se aí o desejo do psicanalista como, em termos de categoria lógica, uma contingência – enquanto no Jornalismo, se toma a (Im)Parcialidade como uma necessidade imperiosa e paradoxalmente impossível: uma contradição do desejo.

A diferença entre Abstinência e a assunção da Parcialidade como faz a CartaCapital está no seguinte: na Parcialidade, se diz “Afirmo isso porque desejo”; na Abstinência se diz: “Afirmo isso apesar de desejar, e poderia afirmar o contrário, frustrando meu desejo que aliás é sempre insatisfeito”. Sim, porque a CartaCapital, ao tomar partido de uma parte, intenta fortalecer esta parte. Não que no Anti-Jornalismo isso não pudesse acontecer, e eventualmente até deve – entretanto, não deveria ser a regra.

Dito de outra forma, a Imparcialidade é como alguém que, por risco de se embebedar, rejeita sempre a bebida; a assunçnao da Parcialidade, é tomar a bebida por hábito. O sujeito Abstinente, diante do embate entre seu desejo e a realidade diz: “Gosto muito de cerveja, mas hoje vou me abster”.

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A Abstinência permite assim ver qualidades mesmo em adversários totais (eu, anti-carlista, já manifestei alguns elogios a momentos de domínio carlista na Bahia), e dizer sem pudores os defeitos de quem se apoia – para ficarmos em um só exemplo.

Curiosamente, é da diferença entre Abstinência e Imparcialidade que se pode entender porque um Anti-Jornalismo não emergiu, como teorética-práxis, de dentro do Jornalismo – diferente da Anti-Psiquiatria, levada a cabo por Psiquiatras. Os Psiquiatras, embora não sendo psicanalistas e rejeitando eventualmente, estavam familiarizados com suas práticas, e sabiam do limite de sua investigação fenomenológica – isto é: de onde ela falhava, e começava a só ser possível chegar através da associação livre e da atenção flutuante. Os Jornalistas, não: embora no Brasil chegue-se ao cúmulo da cordialidade buarqueana de estes chamarem seus patrões de colegas, isto não é mais do que um nível paroxístico de sua alienação de classe, intrínseca a profissão.

A Abstinência requer que o sujeito reflita e critique politicamente suas próprias opções, todas elas: seus gostos, sua profissão, sua identidade. Franco Baságlia, Lang & Cooper, e outros, tiveram um momento de Abstinência e puderam questionar a própria validade do ser-psiquiatra; até agora nenhum Jornalista foi capaz de questionar a necessidade mesma da existência do Jornalismo. Seguem embebidos no Narcisismo da profissão – narcisismo mesquinho e “de pequenas diferenças”; enquanto a prática da Abstinência requer, como dizia Lacan, “vocação pra santo: isto é, para fazer-se de dejeto e rebotalho”. A alienação dos Jornalistas no luxo de uma classe que frequentam, mas na qual nunca tomarão parte, não lhes permite ver o extraordinário de riqueza que há em fazer-se lixo.