O Som das Sextas – XXVI

12/11/2010 at 0:40

O Axé(-Music) do Pós-Axé(-System)

No amplíssimo processo de fazer as pazes entre o Axé e o Rock, não se imaginava que chegariamos a um ponto em que o Axé-Music voltaria a ter, em si, legitimidade estética – e no entanto hoje parece que este destino era óbvio: livre do Axé-Sistem elitizante e pra-paulista-ver, o Axé-Music poderia reatar seus laços com o povão, voltar a falar do zéfini da grana, do bolso quase nú, do andar de buzú, Sêo Cobrador não me leve a mal vou passar por debaixo da borboleta.

Este processo dificilmente viria dos artistas consagrados do Axezão. Estes, por um lado, acharam saída na sofisticação musical (Ivete Sangalo, Daniela Mercury, etc), paulatinamente perdendo a pecha de Axé; os outros, de menor calibre e menos inventividade, só agora, tardiamente, tentam se reformular, como a Banda Eva que vai sair sem corda terça-feira na avenida.

Esta renovação poderia vir, por um lado, das raízes mais profundas do samba-reggae. Isto é: da Ladeira do Taboão, de mestre Antônio Anunciação, Prego, Tonho Matéria. Isto é: do que foi a Banda Reflexus, e daquilo que Margareth Menezes, praticamente sozinha, manteve vivo com Os Mascarados e depois com o Movimento Afro-Pop Brasileiro. Quer dizer: com o que, de dentro do Axé-System, lhe fazia resistência interna.

Estou falando de Jauperi – ou simplesmente Jau.

Na prática, Jau não apenas se opõe a sair em bloco de corda e abadá, como o seu cordão Afrodisíaco desfila preferencialmente no Pelourinho. E se ainda havia algo preservado de cantiga na Timbalada e no Olodum, é com Jau que o Axé volta a ser plenamente canção.

Evidentemente, este som “sofisticado & elegante” teve de ter alguém a lhe abrir os caminhos antes: o Cortejo Afro – lembrando que esta negritude heráldica, nas avessas da branquelice quero-mais-é-beijar-na-boca, estava já no Ilê Ayê e antes nos Filhos de Gandhy; tem seus primeiros traços no prefeito Theodoro Sampaio (que preservou a feição em presépio de Salvador), Milton Santos, Mãe Senhora. Na aristocracia negra, yorubá enfim – nas antípodas de certa burguesia branca que prefere as platitudes da Pituba a riqueza barroca das montanhas e escarpas do Centro Antigo.

* * *

Reinserir certo esnobismo nagô no Axé foi um dos antídotos ao Axezão abadazeiro, certamente. Mas era preciso também o vetor contrário: recolocar a xibietagem, a xinbungagem, a molequeira banto, fon, jêje, dentro da cultura de classe média. Voltar a falar da cidade e suas mazelas, com deboche e sem pesar.

Embora este processo tenha se dado com o resgate feito pelo Retrofoguetes do uso da guitarrinha bahiana e de primórdios como a Banda Mel, foi o Baiana System que arrombou a porta de vez, e meteu fóbica na avenida sem abadá pra assistir, estourou dinamite e samba-reggae no beat. Fez da Revolution a Rebolation, sem embromation.

Apesar de toda a sua excelência estética, e estratégia política, o Baiana System tem, e deve permanecer tendo, uma seriedade que não permite o riso – “é pra dançar, mas não sai do chão”, diz o profeta Russo Passapusso. Era preciso ir além.

Este além viria, como todos os seus precursores, da relação entre música erudita (o seu vocalista foi da Escola de Música da UFBA) e do rock`n roll ex-xiita-camisa-preta: o Suinga. Sem nenhuma vergonha, são capazes de misturar na mesma música “Minha Inha”, do Chicretão, com “Aquela Dança“, do Rónei Jorge & Os Ladrões De Bicicleta; param no meio da canção, se erraram, e gritam “Êah!”, como maloqueiros trazeiristas de buzú. E filmam clip na Estação da Lapa.

Mais do que isso, assumindo de todo a breguice originária do fricote e do tititi, da dança da galinha e de Nossa Senhora da Sacola Venha nos Valer, relembram involuntariamente que é com um pernambucano – Chacrinha! – que o Axé-Music invadiu o resto do país – e distribuem picolé de cajá (da Capelinha de São Caetano, é claro!) ao fim do show, com nego se lambuzando e se acotovelando pra chupar um.

Em vários aspectos, o estilo do Suinga é muito próximo do que faz a carioca Do Amor, com duas diferenças: a autenticidade (“mancha de dendê não sai…”) e o rigor na qualidade da produção (herdado do Axé-System e da resistência a este). No Rio de Janeiro, por melhor que os projetos sejam, acabam virando uma “banda de amigos” cujo acesso a divulgação é amplo (e é este acesso fácil a mídia que acaba dando pouca exigência executiva às novidades que vêem da Cidade Maravilhosa). Por exemplo, a Orquestra Imperial (RJ)  falta uma seriedade e um compromisso que se vê na Bomba do Hemetério (PE), na Rumpilezz (BA) ou em Móveis Coloniais de Acajú (DF). Talvez a exceção que comprova a regra seja Pedro Luís, um cara que pesquisa de Bumba-Boi do Maranhão a moda de gaita da fronteira platina: seu Monobloco consegue manter o clima de “encontro de amigos”, bem fluminense, mas com rigores de execução elevadamente bahianos e pernambucanos.

Não há concessões: o Suinga faz axé-music, assumido e escancarado (coisa que a Bahia não tem a tempos, já que o Axé-System tem vergonha de si próprio desde 2005, e com razão) – tal qual o Mombojó foi o único pós-MangueBeat a lembrar que o MangueBeat excluiu o mais pernambucano de todos os gêneros, o Brega, e a reincorporá-lo integralmente, inclusive tocando em puteiros das margens do Beberibe, se necessário for.