Pra não dizer que não se cantaram canções

14/08/2009 at 23:40

A canção pura em flor.

formidavel

Críticos da hiper-sexualização da axé-music, a Formidável Família Musical formulou a mais sutil e eficiente arma do pós-axezismo: canções de amor. Do amor feliz, realizado, e tão inocente que parece desgenitalizado. O amor de roubar flores, colorido e com cheiro-de-amor. Canções de amor dançantes, esfuziantes – às vezes feitas puramente de onomatopéia, trinadas na bela voz em falsete de Damm, a quem tive o prazer de entrevistar (que não foi maior por ter sido via e-mail). Filhos pródigos exilados no Rio de Janeiro, voltam a casa em shows em Vitória da Conquista, Salvador e Feira de Santana. Leia a seguir.

Vou lhe dizer no que acredito. Se na época de nossos pais a canção tinha como um dos seus sentidos mais importantes um tipo de  referência à um ideal coletivo de transformação do país, hoje me parece que ela está transformada, cantando uma história segmentada e porque não dizer alienada.

LUCAS JERZY PORTELA: Não sei bem se alienada. Pensando em canções como Depois de Ver (de O Círculo) e NuCuTurismo (Clube da Malandragem), que fazem incidir uma mudança política (o fim do carlo-axezismo) na subjetividade dos ouvintes (geralmente adolescentes) – não seriam canções tão politizadas quanto um Atrás da Porta (de Chico Buarque)?
DAMM: Não acredito que são politizadas. Vejo muito mais como uma canção do indivíduo segmentado, que chegou a si mesmo depois de negar, ou superar as instituições , estas sim politizadas. Acho super pós-moderno O Circulo. Tenho certeza que a força da canção está associada a sua capacidade quanto veículo de mensagem, independente de abordar temas sociológicos ou semióticos.

Certo, sem dúvida. A canção, eu diria, é a música que se canta junto, e só na voz – e não a feita pra dançar. Um lugar de construção social da subjetividade em conjunto (amigos) ou aos pares (amores). A Formidável celebra em suas canções especialmente isso: amores e amigos, de modo leve. Como pensa isso?
Acho que a canção pode ser pra dançar, para refletir, para tudo. A canção tem muito valor. A Formidável é a minha expressão do que seria um neo-idealismo. Aproveito a forma simples da canção, a sua capacidade de carregar a mensagem ao grande público, o seu apelo popular, para tentar criar um outro paradigma, este agora embasado no positivismo, na noção de que devemos esperar o melhor, tentar construir esta harmonia que tanto se reclama mas pouco se faz para construir. Mas especialmente no que diz respeito aos símbolos é que percebo o momento da canção em Salvador. Salvador hoje é um centro urbano saturado de símbolos e conceitos herméticos que não poderiam passar despercebidos pelos “arteiros”.

Aí já não entendo. A Formidável não tem quase nenhuma citação imagética da Bahia (não falo da bahia turística). O Círculo, o Clube e mesmo o Retrofoguetes tem. Como a Formidável se encaixa nisso?
A Formidável Família Musical é uma citação do estado de espírito da Bahia. A Família Musical que construi, não segue o conceito de uma banda tradicional. São vários membros, rastafaris, rockeiros, morenos, loiros, pardos, religiosos, ateus. Nossa referência é bem isso ai. O sincretismo dos gêneros, a tolerância e o bem estar com a vida. Paralelamente a isso acho que o público baiano tem mais informação disponível hoje do que na minha adolescencia por exemplo… Isso ajudou tanto a fomentar a produção cultural quanto a estabelecer novos patamares de apreciação artística. Em contrapartida existe hoje um público muito maior capaz dessa leitura. Acho que isso explica também a retomada cultural ocorrida em Salvador. O pós-axezismo… Que na verdade compreendo como as pazes do “Axé-tradicional” com a canção que culminou com o sucesso da músicas soteropolitana em âmbito nacional em larga escala e gêneros, vide Ivete, Pitty, o pessoal do rock mais pesado, Blues, Gospel, Orquestra Juvenil…

A Retomada é hoje quase um mito – isto é: para os que tem olhos de enxergá-la. Os que tem olhos incluem ex-axezistas recentes, como Ivete Sangalo (que hoje apoia a Orkestra Rumpilezz e o Neojibá). E há rockeiros reacionários que não enxergam esta mudança. Concordo com você que a mudança é mais um reestabelecimento de diálogo entre o axé-music de origem e um rock capaz de gerar público sem ser pop. Mas, como mito, o Pós-axezismo tem várias versões narrativas. Conte a sua. (especialmente porque você se exilou no Rio de Janeiro exatamente quando o Pós-axezismo ganhou força. A última vez que te vi foi no 1º Retrofolia, que considero o marco-zero da Retomada).
A respeito da Retomada, como já havias dito antes acredito que a retomada na verdade pode ser simbolizada pelo esgotamento do discurso inócuo do axé tradicional, beijo na boca, dancinhas e etc, que na verdade foi o que vendeu o axé nos anos 80 e 90, acontecendo concomitantemente a uma dilatação do olhar soteropolitano sobre o resto do país. Acho que o Axé soube abrir suas portas para o pop, o rock, a musica latina… O Axé mateve a tradição sincrética. Hoje ele não existe. As bandas de pop, rock, blues, jazz, tudo isso que “surge” como novo e alternativo em Salvador creio que só ocorra devido este olhar para fora, devido a chegada de informação e desenvolvimento gradual da audiência soteropolitana. Acho isso super natural. Aconteceu comigo.
Ate os 18 anos eu só queria saber de rock, blues. Um contra cultura, nossa cultura. Depois do tempo que morei fora, na Inglaterra (1 ano) e na França (2 anos e meio), onde me pediam para tocar Djavan, Jobim, coisas brasileiríssimas… Assim pude lançar um outro tipo de olhar sobre a nossa música, enfim me apaixonei, e enfim achei o meu caminho. Foi importante sair, experimentar e aglutinar estas informações musicais para poder ir adiante. Acho que foi assim com o axé tambem. É natural. E, quando alardea-se o fim da canção, me soa estranho e até estúpido, alguma coisa como Fukuyama decretando o fim da história… Ela (a canção) se transforma, em diferentes momentos, por diversas questões. E que bom que é assim. Que bom que somos diferentes.

Fale mais sobre esta relação entre o Fim da História e a Morte da Canção. Ambos são mitos neoliberais/pós-modernos? A canção é um formato que nasceu aqui e nos estados-unidos com e no Modernismo. Vivemos hoje aquilo que os arquitetos têm chamado de Neo-modernismo?
Acho esta uma discussão realmente muito profunda. Vou tentar sintetizar o meu pensamento. Acho que o Fim da Historia de Fukuyama reflete a decepção do indivíduo em relação às espectativas geradas no período modernista. Tanto se falou de maravilhosos horizontes e hoje o que temos? O Comunismo acabou. O capitalismo prevalesceu. E isso fez o mundo melhor? Com certeza não. Acho que Fukuyama assim como Chico Buarque se precipitaram. Ou servem a outros senhores. Pra mim, ao dizer que a história acabou se diz que o mundo é dos americanos. E sabemos que não o é. Pra mim, Chico Buarque dizer que a canção acabou é dizer que só ele e sua turma a fez. Acho precipitado, curiosamente infantil e muito decepcionante.
Criamos neste periodo de modernidade símbolos e signos para tudo. Símbolos estes que de certa forma aleijam o conceito do que representam. O que quero dizer é que é natural depois do axezismo uma mistura de conceitos musicais, por mais rasa e mundana que seja. Isso é pós-moderno. Hoje não há mais axé, nem rock, nem nada. Existe a canção que vende em escala (a popular) e arte. Ivete é Axé ou pop? Cidade Negra é Reggae ou Pop? Formidável é rock ou Pop? Orkestra Rumpilezz é jazz ou Pop? Estes generos hoje só servem como referenciação ao nicho de mercado. Tem apenas propósitos de Marketing (no uso correto da palavra). E ela vende por causa destes signos, estas referencias aleijadas que temos da realidade hoje de nossa sociedade global. Mas esta é só a minha impressão. Tento fazer isso com a Formidável, mas de uma outra forma. Usar o formato canção para divulgar aquela velha mensagem de um ideal coletivo embora muito mais embasado numa visão holística (a coisa do bem e da harmonia) do que na fábula política. Acho que a canção continuará viva por bastante tempo ainda.

A Formidável e O Círculo pegam em cheio um público colegial, adolescente. Público que aliás sai no Cheiro de Amor (bloco de abadá de axé-music, mas light) – dentro daquele diálogo retomado de que falamos. O Clube da Malandragem e o Retrofoguetes pegam um público já mais maduro. Eu morro de inveja por não ter adolescido ao som da Formidável e de O Círculo. Como você pensa esta relação: adolescência colegial da Salvador pós-axé & a Formidável?
Acredito que o adolescente é esta transição do que “me disseram” para “o que eu experimentei ate aqui”. Acho isso a cara do Círculo e da musica deles. Acho que Formidável Família Musical não é apenas para adolescentes. Temos muitos fãs crianças e adultos e idosos. Ainda bem.

Me ocorreu agora que o Cheiro de Amor tinha, no auge, as mais flower e mais belas canções do axé-clássico. Tipo: “Sim / é um jardim / mui delirante / com mil e um lances de brilho e de cor” ou “Amor amor amor / tem cheiro de amor pelo país / deixa bater o coração e diz / a gente quer é ser feliz feliz feliz“. Que relação você vê entre isso e a Formidável? O Cheiro de Amor dessas músicas fazia canção?
Com certeza. Em toda a sua simplicidade e eficiencia.

Uma vez, no Baile Esquema Novo, comentei que a Formidável não faz rock, nem folk, mas jingle. É exagero dizer isso, mas creio que há uma verdade aí: a Formidável faz sobretudo canção. É a canção em estado puro. É primeiro canção, e secundariamente é folk. Diferente de O Círculo, que é primeiro MPB ou rock, pra secundariamente ser canção. O que acha disso?
Acho que FFM é música, às vezes pop, às vezes blues, às vezes trova, é bastante sixties… Acho que tem apelo comercial, acho que esta facilidade que tem em se comunicar com a audiência é que traz esta sensação jingle comentada por Fróes. Canção é desde o começo, não pode ser de outra forma. Formidável sim, é canção. Canção em suas diversas leituras. E vem muito mais por aí. A cada novo membro, a cada nova experiência…Tenho viajado bastante e trazido muitos membros para a Família e de certa forma eles me influenciam na hora de compor. Se no inicio  o Idealismo Kantiano fruia nas letras e no ideal da FFM, pode -se dizer que estou num momento mais “expressionista” agora. Numa tentativa de criar algo “Tim Burton” na minha música. Um momento verdadeiramente mais Nietzscheano. Gosto dos porquês na canção. Pra mim não poderia ser de outra forma.