Detroit, Toronto, Bogotá, Salvador
Outras considerações a partir das eleições municipais de Salvador
Em geografia urbana, é comum atribuir a certas patologias o nome de uma dada metrópole que, se não as criou, ao menos as sofreu de um modo mais particular que outras. Assim, fala-se de Efeito Los Angeles quando se trata do espraiamento urbano ao longo de grandes rodovias urbanas (mais do que meras avenidas); Efeito Bilbao, quando um único prédio (no caso, a sede do Museu Gugenheim, por Frank Gehry) modifica (e danifica) visualmente todo um centro antigo (nesse aspecto, podemos dizer que Oscar Niemeyer elevou o Efeito Bilbao à máxima potência); mais recentemente, Efeito Detroit quando a derrocada econômica põe a perder todo um patrimônio material (seus lendários prédios Art-Decor, paradigmáticos da Era Diesel-Punk tanto quanto a Paris de Hausmann é do Vapor-Punk) e imaterial (as quase três gerações da música negra norte-americana que passaram pelos estúdios MoTown, não sem grandes efeitos políticos e sociais).
Milton Santos por vezes aventou um (ou mais) Efeitos Salvador: “caso raro de metrópole que não só perdeu industria para seus subúrbios não-históricos, como se tornou mera cidade dormitório deste”. Se isso é atribuível a construção do Centro Administrativo da Bahia (CAB) na Avenida Luís Vianna Filho (Paralela) e a implantação do Pólo Petroquímico de Camaçari do modo que foi feito (duas atitudes do carlismo, embora planejadas na Avant Gard: o Pólo por Rômulo de Almeida não esvaziaria a capital de suas indústrias e o CAB sob Roberto Santos, e por Sergio Bernardes, seria no Cabula, bem mais próximo do Centro Antigo, e não retiraria deste os órgãos propriamente políticos como a Assembléia Legislativa do Estado), suas condições arqueológicas vêm de antes, como mostra o próprio Preto-Doutor em sua tese de doutoramento: das poucas metrópoles do mundo que nunca teve cinturão verde (o CAB no Cabula seria um caminho para passar a ter, já que este sempre foi um bairro de chácaras), seus víveres chegando de barco através do Recôncavo; os enormes espaços conventuais e terrenos eclesiásticos que são o embrião da atual especulação imobiliária da Reconvexa, junto com suas fazendas urbanas. Mesmo o esvaziamento de seu Centro Antigo (no caso do então Maciel de Cima, hoje Pelourinho) e o preterimento da diversificação de seus usos (leia-se: fazer do Comércio um bairro também residencial) já ocorriam sob o excelente (e pedestre!) governo de Octávio Mangabeira.
Também não se venha atribuir ao Efeito Salvador problemas que não são dele: por exemplo, a afirmação analfabeto-arquitetônica de que o Palácio Tomé de Souza, de Lelé, é uma “ferida modernista numa praça renascentista”; bem ao contrário, é uma marca a mais nesse palimpsesto que é a Praça Municipal, com um prédio de cada século, de cada estilo; mais ainda, a Prefeitura de Lelé consegue tornar cívica esta praça com sua escadaria quase barroca, e criar outra, com ares interioranos, na sombra de sua estrutura que não toca no chão e serve de enorme marquise para crianças brincarem embaixo; de resto, único vetor sério de voltar a usar o Centro Antigo para sua função originalmente projetada, a de sede de governo.
Aliás, Salvador foi pródiga em que sua implantação modernista mantivesse as soluções históricas (artificialização de cumeadas, a que as Passarelas de Lelé são uma resposta ainda mais ousadas) e incorporasse a sintaxe arquitetônica funcionalista e organicista soluções coloniais sem fazer uma arquitetura neo-colonial (penso nos comongóis de Diógenes Rebouças e no seu escoramento de prédio sobre as encostas inclusive permitindo apartamentos subsolo com vista para os vales, o aproveitamento da ventilação vertical no Centro Médico da Graça de Assis Reis, etc.) Se o Efeito Salvador é uma antecipação piorada de várias patologias metropolitanas (Toronto, Detroit, Los Angeles, Bogotá, you name it), ao menos do Bilbao escapamos…
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De todas as patologias urbanas que acometem essa Síndrome de Lisboa Revisitada, a menos levada em conta talvez seja a de Toronto. O Efeito Toronto pode ser descrito basicamente como uma cidade cosmopolita, urbana e criativa, consegue eleger sucessivamente prefeitos suburbanos e carrocêntricos; e explica-se por uma consequência do efeito Los Angeles: por mais que a população de dentro do Centro Expandido desta capital canadense seja intensamente metropolitana, ela não forma sozinha metade do eleitorado, que se espraia em subúrbios americanos e tende assim a votar contra a diversidade, a intensidade urbana e a desmotorização.
Claro que isto é sintoma da posição ambígua do próprio Canadá: se Vancouver, no extremo oeste, se parece com a Austrália (no mau sentido) tanto ao ponto de ter bizarra lei obrigando uso de capacete por quem estiver pedalando uma bicicleta, na outra costa está Montreal, cidade que consegue ter qualidade urbana escandinava com criatividade latina – uma rara, mesmo milagrosa, combinação. Toronto, no meio do caminho entre ambas, vive seu dilema: nem colônia americana, nem Common-Wealth inglês, nem europeismo francófono, cada um desses vetores sem dúvida presentes anulando o outro.
Aí o engodo em que Nelson Pelegrino caiu ao fazer um comício em Cajazeiras: bairro profundamente isolado de Salvador, pavilhonista que por acidente rompeu com isso e se tornou comercialmente punjante, tende a votar contra a cidade. Não votar à direita, ou à esquerda – o problema não é ideológico, ou econômico, mas geográfico, e isso não é reversível por um, nem vários, comícios.
Contudo, não se pense que o Efeito Toronto é anti-pedestre: o prefeito Bob Ford, que acha que ciclista tem mais é que morrer mesmo, defende os pedestres – desde que não seja um ataque aos carros. Assim, a bicicleta, costumeiramente um vetor de intensificação pedestre, é desprezada lá porque esta itensificação vem da desintensificação dos automóveis. É um uso dos pedestres contra si mesmo em nome de protegê-los – meio como uma direita populista usa o proletariado contra si mesmo a título de protegê-los. Isso não é estranho a Salvador: pense-se nas enormes aléias da Praça do Campo Grande, em que há placas proibindo usar bicicleta em nome de proteger os pedestres – placas tão sem sentido que, felizmente, nunca são observadas, e este verdadeiro parque na fronteira entre o Centro Nobre e o Centro Pobre da capital baiana pulula de crianças aprendendo a pedalar, skates e patins.
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O dito aumento de violência urbana em Salvador recentemente não se liga apenas ao aumento de crimes propriamente ditos – passa antes por uma violência difusa, uma grosseria constante, e uma apropriação ilegítima do espaço público, mormente através de imposições sonoras. Neste aspecto, Salvador nos lembra a Bogotá anteriormente a Antanas Mockus e Henrique Peñalosa: seus problemas são antes superestruturais do que infraestruturais, e desta forma não adianta melhorar o acesso infraestrutural, se não se operar diretamente na superestrutura, de modo digamos pedagógico e psicoterapéutico. Aliás, Bogotá dá exemplo disso: sem um Mockus antes fazendo basicamente intervenções morais, as mudanças infraestuturais de Peñalosa seriam impossíveis.
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Não foi outro mérito da primeira eleição de Jacques Wagner a governador do estado da Bahia, e os primeiros e subsequentes anos da entrada do estado na lógica da Reforma Cultural Brasileira: estes fatos nos inocularam, naquele momento, de um cosmopolitismo renovado, e mais do que tolerância, um interesse mesmo pela diferença.
Não é dizer que da reeleição de João Henrique à recente eleição de ACM, O Neto, para a prefeitura da capital tenham anulado estes efeitos. Em vez disso, por contraste entre a degradação infraestutural que a cidade sofreu com João Henrique e a falta de polidez e sofisticação que leva a eleição de Grampinho, a Reforma Cultural Bahiana ganha peso. Se Salvador está uma cidade imunda e grosseira, também é ela que pode sediar um seminário de dois dias para discutir gestão de orquestras sinfônicas em nível nacional – para ficarmos em um só exemplo.
Ou, usando de uma metáfora, o fato de as cordas e os camarotes terem aumentado não faz com que o carnaval e a pipoca deixem de existir, embora os torne mais conflitantes e violentos.
Tanto isso é verdade que o novo semi-prefeito, auto-proclamado primeiro gestor municipal do Axé-System (ele não usou este termo porque o diabo não diz seu verdadeiro nome jamais), não pode ignorar o que direita chama, equivocamente, de “classe artística” (a Reforma Cultura gera uma tamanha diversidade que dificilmente estaremos todos sob um mesmo nome – o que não deixa de ter a ver com o fato de que o Consumitariado é na verdade a ascensão selvagem da classe inominável). Não só ele não ignora, como prefere cooptar-nos – estamos falando de cooptar algo como o BaianaSystem, que desde seu discurso até suas práticas se opõe ferozmente ao Axé-System.
Claro, por um lado esse encontro do Secretário Municipal de Cultura & Um Monte De Coisas foi articulada por Pitty Canela – que se vem do Anti-Axé, tornou-se Axé-System de sinal trocado, cooptada antes mesmo de a cooptação existir, exploração 2.0. Mas, por outro, gente que era do Axé veio para o lado de cá. E é sinal de vitória quando um adversário recém-empoderado prefere nos ter próximos do que nos ter contra, embora essa vitória nos abra grandes possibilidades de derrota.
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A contradição entre ter uma cidade degradada, no entanto culturalmente punjante, é apenas aparente. Se é verdade que a perda do contato público pedestre diminui os encontros fortuitos geradores de criatividade, por outro lado só isso nada garante: Curitiba, que tantos encontros pedestres provoca, é a capital mundial do tédio. Há um fator raramente levado em conta: o conflito.
Cidades de excelentíssima qualidade de vida costumam ser culturalmente anódinas justamente porque, com a melhoria de sua condição urbana, extirparam o conflito. San Francisco é hoje uma cidade gentrificada, em que o Castros de bairro gay passa a bairro chic e as bichas querem ter filhos e casar; New Orleans, pobre, violenta, multi-religiosa, e um tanto ignorante, é libertina e libertária como poucas. Aí talvez resida o segredo de Montreal: qualidade urbana escandinava, mas com lógica migratória americana, herdou o melhor dos dois lados – boa pedestrabilidade, sem dirimir o conflito (e aí vai um elogio a Hausmann: ao invés de ter excluído os pobres, o prefeito de Paris sob Napoleão III talvez tenha criado a visibilidade dos mesmos – as Comunas de Almereyda e Elisé Resclus seriam impossíveis sem a reforma do Barão).
Claro que Salvador pode recuperar muito de sua qualidade sem reduzir conflito, e aliás potencializando a capacidade do conflito gerar criatividade. Contudo, a direita tende justamente a diminuir o conflito, a criatividade e a festividade nem que seja na porrada – talvez aqui não na porrada, mas mercantilizando uma Alegria como Dívida (dos camarotes e blocos de corda) para extirpar a Alegria como Dádiva (da pipoca). No entanto, aí o capital cai num paradoxo: os camarotes e blocos precisam mais da pipoca do que a pipoca precisaria deles (e a crise criativa de Axé-System não tem saída sem os frutos da Reforma Cultural, mas a Reforma e o Anti-Axé podem seguir em frente muito bem sem o Axé-System).
Lembremos ainda que os frutos da Reforma Cultural sairam da área propriamente artistica e foram dar em coisas como a Bicicletada (Massa Crítica) de Salvador, o Movimento Desocupa, os Canteiros Coletivos e outras pequenas multidões que intervem mais ou menos diretamente nas questões do Direito a Cidade. Não são entidades apenas “de esquerda”: o SOS Barra tendia ao voto no PFL neste último pleito, mas não quer dizer um apoio automático (nem analfabetismo urbanístico) a quaquer tentativa de cooptação pelo novo prefeito, e mesmo o Desocupa se gerou candidatos a vereadores eleitos a esquerda (como Gilmar Santiago), gerou ao menos um candidato (derrotado) ligado a nova Vice-Prefeita: Waldir Santos.
Quer dizer: mal-grado a entropia inercial em que João Henrique lançou Salvador, e talvez por causa disso mesmo, ACM Neto herda uma cidade bem mais complexa, e assim mais ingovernável do que ele supõe, e no melhor sentido do termo.
Lucas,
Cidades possuem o que eu chamaria de comum urbano — que não exclui as diferenças, ao contrário, só pode sê-lo justamente por existir uma diversidade de corpos, intensivamente diferentes, (bem ou mal) se encontrando e produzindo polifonia (cacofonia, sinfonia etc); mas há uma zona primordial de compartilhamento, uma área primeira de sintonia e sintonização. É, pois, o comum — e se é como um, é porque é sem sê-lo, uma vez que se a diferença intensiva própria das multiplcidades fosse absoluta, estaríamos diante de um mar de bolhas de vácuo, a superstição suprema, afinal.
A direita e a esquerda possuem uma relação problemática com esse comum. Primeiro porque direito e esquerda — não compreendidas aqui pelo aspecto ideológico, mas pelo conjunto de práticas que as constitui realmente — remetem ao Estado e o Estado é posterior e inimigo da Cidade, vivendo com ela uma relação problemática: a Cidade complica o funcionamento do Estado, enquanto aquele tenta traduzi-la explicando-a (sem sucesso, como sabemos).
A tendência é que a esquerda tenda a ser favorável, em sua essência, à afirmação do comum urbano, até pela sua propensão antagonista ao Estado, mas não necessariamente. Uma prefeitura de esquerda pode ser um desastre, sobretudo pela estratégia que essa esquerda adote para lidar com o Estado e como isso pode refletir na maneira que ela lida com a Cidade — seja da sua posição, digamos, do governo federal ou mesmo de quando ocupa prefeituras (quando ela não é ocupada, respectivamente pelo Estado e pela Prefeitura).
Ainda que projeto de direita bom, seja projeto de direita que dê errado, é fato que uma direita — as we know — que defenda o microempreendedorismo apreenda, mesmo por vias tortas e intenções menos retas ainda, o comum urbano de uma maneira menos imprecisa do que uma esquerda burocrática — e pavilhonista, p.ex. Ainda assim, não me parece o caso de Grampinho nem de boa parte da direita brasileira.
Kassab aqui e JH aí realizaram desgovernos, o que são desastres momentâneos, mas abrem caminhos — que Haddad aproveitou aqui, mas Peregrino não soube, nem saberia, se aproveitar aí. O jovem ACM terá esse enorme ônus para arcar. E embora tudo em política seja possível, imagino que não será tarefa fácil. Na outra mão, Haddad não terá vida fácil em São Paulo. A reação grassa e o acordo tácito da elite com Dilma, uma breve lua de mel, começa a se desfazer — talvez com Lula na Presidência, Haddad tivesse mais dificuldades para se eleger prefeito de São Paulo do que com Dilma, mas, ao mesmo tempo, ele teria uma situação política (embora não eleitoral) mais fácil.
De todo modo, aqui, Dilma — que queria não querendo Haddad — buscará garantir a fidelidade do jovem prefeito — que lhe é muito superior em tantas coisas — ao tom monocórdico e moderno-burocratizante de seu governo em nível federal por meio da dívida imensa de São Paulo com a União. Uma dívida insustentável que torna Haddad refém de Dilma, incapaz de dar um sentido histórico à imagem e à forma vazia do “gestor” — como ele sonha e Dilma sabe que ele sonha ao mesmo tempo que abomina. Como fica a Cidade nisso tudo é outra questão. Até agora, Haddad foi ambivalente na escolha das secretarias, até pela correlação desfavorável dentro e fora de São Paulo (embora pudesse ter feito melhor) e foi feliz na escolha de engenheiros e arquitetos para as subprefeituras, escolhidos para o lugar dos milicos (ou, antes deles, dos apadrinhados) com os quais Kassab as povoou — o que não quer dizer muito, afinal, é preciso saber qual projeto urbanístico Haddad lançará mão e quais arquitetos e engenheiros são esses. A sua saída, no entanto, é fácil na medida que parece impossível.