Bocas do Inferno & Cús de Judas
Sempre me soou como higienismo burguês certo nojinho ao pagodão, francamente ignorante de que mesmo sua dita “pobreza lírica” remonta a libertinagem de Gregório de Mattos, Castro Alves (o único poeta romântico brasileiro que fodia) e ao samba-duro do Recôncavo (esse povo não sabe nem o que é poesia fescenina). Reputo um erro do Anti-Axé, mormente capitaneado então por um rock bahiano mau-humorado, ter empurrado o Pagodão nascente para o colo do Axé-System – em vez de ver nele toda a potência subversiva que o rock tivera, e deveria então ter mas não tinha mais ou ainda. E concordo com Letieres Leite quando afirma inúmeras vezes que o pagodão é ritmicamente criativo e complexo, e que apesar de sua pobreza harmônica pode ter riqueza melódica (ouçam os cantes a palo-seco de Ragatoni, sustentando sem titubear compassos sincopados por mais de 3min sem auxílio sequer de instrumentos de percussão). Mais ainda: vejo no resgate do pagodão que o Baile Esquema Novo, o Suinga e o Baiana System fazem, uma virada crucial para a Reforma Cultural do Estado, democratizando radicalmente as estéticas.
Isto posto, via na Lei Anti-Baixaria (que apenas impede que o estado e entes públicos contratem autores de canções caluniosas às mulheres) a possibilidade de acirrar um dos mecanismos acertados da Reforma Cultural: garantir que a verba estatal se pulverize, e estimule a diversidade de produção e consumo, forçando um incremento da qualidade estética inclusive em setores que não recebem esta verba, uma vez que passam a ter concorrência real (capitalismo puro e simples, do bom!). E se o pagodão não compactou, nem foi compatuado pelo, Axé-System na sua estética, o foi na sua lucratividade (curioso no entanto é ver que o Jornalismo que hoje vibra com a Lei Anti-Baixaria tem 2 anos que sugeriu que o Secretário Estadual de Cultura fizesse edital pra pagodão…)
Mas, ora, nem uma Lei Anti-Baixaria é garantia de pulverizar a grana pública (quem disse que o Prefeito de Xorroxó, ao deixar de contratar A Bronkka não vai contratar Claudia Leite? – cabe lembrar Letieres Leite de novo: pagodão foi uma forma de distribuição de renda para a periferia, apesar da espoliação a que o Axé-System o submetia), nem é esta a única ou melhor forma de garantir isso. Estamos com um Sistema Estadual de Cultura funcionando relativamente a contento, com linhas claras de transferência de recursos entre Governo Estadual e Municípios, e um Conselho Estadual de Cultura (apesar de ainda formado por notáveis, e sem eleição como na época de Paulo Souto – enquanto o de Comunicação, bem mais novo e controverso, já teve eleição) que consegue fazer bem as vezes de “controle social do estado”.
O que vai garantir que a verba de cultura dos municípios seja bem destinada (e aí que se destine a Baixaria de qualidade, qual é o problema? Alguém se oporia ao clássico A Mini Saia, do Gonzagão?!) é essa capacidade da sociedade controlar o estado, e não o contrário. Fortalecer a gestão das Secretarias Municipais de Cultura, capacitar os conselheiros nos Conselhos Municipais, etc. Vale lembrar pela bucentésima caralhésima vez: Salvador, cidade mais antiga das Américas em funcionamento, capital do estado, não tem nem Secretaria de Cultura nem Conselho de Cultura – é esta a contradição diária nossa: um Estado que avançou muito na democratização e eficácia da área, com uma prefeitura de capital que a ignora.
Mas a deputada (que as meninas da Avenida Carlos Gomes não se ofendam) Luiza Maia prefere cair na facilidade legiferante de tradição ibérica. Alguém devia explicar pra esta senhora que legislar não é nem só fazer leis nem fiscalizar o poder executivo. Política se faz na microfísica, e ela faria melhor figura se virasse mascate viajante pelo sertãozão de meu deus, de Conselho Municipal de Cultura em Conselho Municipal de Cultura explicando seu ponto de vista, mas também ouvindo o desses pequenos conselheiros; fazendo piquete em prefeiturinha que não dá posse a estes (cabe em Salvador, que nem Conselho de Cidade empossado tem). Enfim, com rizoma criar multidão – logo eu, anti-deleuziano, tendo de explicar isso!
Isto contudo não é reflexo de uma idiossincrasia da deputada, e sim de seu Partido – o dos Trabalhadores. O PT nunca teve um projeto para a Cultura, e caia sempre no rame-rame de que o Estado deveria avaliar esteticamente o que investir (além da idéia de que a Cultura é algo que o povo consome ou não consome, e não algo que o povo faz também). Isso acabou com Gilberto Gil e depois com Juca Ferreira, que tropicalizaram a questão: o importante era pulverizar, democratizar, fazer cada um autor e fruidor dessa obra em conjunto que somos todos – se alguém tem de dar pítaco estético, que seja a sociedade (os críticos e os outros), não o Governo.
Só que agora o rebote piorou: se o PT não sabia o que fazer com a Cultura num país de pobre (e pobre não compra livro nem vai a ópera – na cabeça deles…), tanto pior com a Classe C que eles tanto se orgulham de terem criado ou ao menos adotado. É intolerável para o Partido dos Trabalhadores que esta nova pequena-burguesia não se comporte como tal, e também é intolerável que se comporte exatamente como tal (daí a posição ambivalente dos PTistas com os evangélicos: eles querem que os ex-pobres deixem de desejar, só que não tanto assim Pastor!). Onde já se viu ex-pobre fazer suruba? Orgia é um previlégio da aristocracia que os burgueses do PT, ao invés de querer universalizar, querem extirpar de todo. É um maoismo invidioso isso.
Eu acho que tem um pano de fundo de produção cultural, indústria do axé e periferia que esse texto, e outros que já li sobre o assunto, colocam bem, e mostram como a Lei Anti-Baixaria presta pouca atenção a esses processos, não os compreende (ou não os quer compreender). É tentador dispensar a Lei como confusão programática da esquerda com a cultura, mas…
Mas… Aí eu lembro que esse texto, assim como outros que li sobre o assunto, são textos masculinos. São vozes masculinas criticando como, mal ou bem, alguns grupos de mulheres, mal ou bem organizados, de esquerda ou nem tanto, feministas ou nem tanto (e não sou eu quem vai fazer esse juízo sobre o feminismo delas), obtiveram algo que interpretam, elas, estas mulheres, como conquistas na disputa, no espaço público, pelo próprio corpo. São homens dizendo a essas mulheres como devem ou não devem conduzir a própria luta.
E esse texto em particular ainda usa um argumento que as mulheres, e as mulheres feministas, conhecem bem: chamar a autora do outro argumento de puta. Chamar a mulher que usa o próprio corpo, a própria voz, que se coloca no espaço público diante dos outros e das outras de forma diferente do que os outros (principalmente os outros homens) de puta.
Sério, ninguém vê nenhum problema nisso? Todo mundo só vê um trocadilho espirituoso?
Não discordo que essa Lei, sendo expressão de mulheres, certamente/provavelmente não é de mulheres da periferia. Dificilmente estão falando as mulheres que vivem dentro, ou ao menos mais de perto, desses espaços e processos de produção de cultura onde nasce o pagode (e onde também nascem o funk, o tecnobrega, o arrocha etc.). Muito provavelmente são as mulheres que não querem ouvir “esse tipo” de música não só por identificar nelas o machismo, mas também uma manifestação de cultura “Inferior” que não deveria estar chegando a seus apartamentos do centro e da orla de Salvador.
Mas cadê, então, as vozes dessas mulheres, que são com certeza quem pode dar o melhor testemunho sobre se e como essa música interfere nas suas vidas e vice-versa? Porque não está na voz dos homens que estão dominando o debate.
Essa deputada é bem mais sintomática do que filhadaputática. A mesma sociedade que comprou a briga da revolução sexual e do progresso anticatólicista da diversidade – aos trancos e barrancos e, mais das vezes, por puro modismo, claro, mas comprou -, hoje se vê quase lá, a um passo da realidade pela qual lutou tanto e com a qual ironicamente não se identifica.
O exemplar pudor de nossas ragazzas quando comentam como “os comerciais de cerveja se utilizam da imagem da mulher para propósitos torpes”, ou dos casos recentes de proibição de produções publicitárias em veículos midiáticos; não me deixam mentir. Apenas para citar um, o caso do comercial da Gisele Bündchen. Um jeito novo de ser velho. O Chico César, nem faz tempo, já havia manifestado em carta aberta que de sua mesa não sairíam incentivos para bandas de “forró de plástico”. É um caso diferente, mas nem tanto.
É assim que acontece o progresso? Não sei. Talvez tudo isso faça parte do processo.
Com relação a editais, um exemplo legal – o coletivo de cinema mais promissor do nordeste tentou um edital na SeCULT do Ceará: http://traumaeditalsecult.blogspot.com.br/
A questão da propaganda de cerveja é outra: ela deve vender cerveja, e de boa qualidade, e não mijo-com-gás-e-álcool pra se embreagar e pegar mulher. Não se trata de feminismo, digo isso como quem ama cerveja – e por isso detesta a AMBEV; e digo isso como quem trabalha com planejamento em saúde, e sabe o quanto isso diminuiria os agravos e riscos ligados ao álcool (ao passo que aumentaria, porque qualificaria, seu consumo, e distribuiria renda focando os pequenos produtores artesanais).
Nada vai sair muito do lugar enquanto o ar de Liga Das Bahianas Senhoras Conservadoras Vs Liga Das Bahianas Bichas Anticonservadorismo persistir. O mundo é maior que isso.
Primeiramente, eu não estou nem num grupo nem no outro.
Segundo lugar, não é verdade: a Reforma Cultural segue rumos com bons resultados no nível Estadual e em alguns níveis Municipais. No nível nacional tem a Bruaca Ana de Holanda, jogando na retranca – mas aí nem é questão de conservadorismo, mas de inépcia e de plutocracia. Nem mesmo Antonio Grassi que colocou esta cágada (ou cagada) em cima do poste, conservador e plutocrata ele mesmo, a tolera mais – tamanha a incompetência nem digo na execução ou formulação de políticas, e sim na capacidade mesma de enxergar a realidade.
Nem disse que você era de a ou b, mas o clima ainda persiste, meio sub-reptício (com o perdão do hífen). Soa muito parecido com a. feminismo bobo trasvestido de conservadorismo e b. viadagem maciça trasvestida de defesa à diversidade. Mais despeita mútua do que dialogia.
A Reforma Cultural, nos moldes como sonhada, é a versão tupiniquim do sebastianismo. E vale lembrar que Portugal nem existe mais e o Desejado ainda não retornou.
Mas tenhamos fé.
Persiste e persistirá. A realidade é dialética, só há harmonia tensa como a do arco e da lira.
E sinto dizer, mas você está enganado: a Reforma Cultural, como as Reformas Sanitária, Psiquiátrica, Agrária, Urbana, etc. são diretrizes preconizadas pela Constituição de 1998, e neste caso específico começou a ser posta em prática quando Gilberto Gil foi Ministro, embora houvesse anteriormente a experiência isolada de Pernambuco (assim como a Reforma Psiquiátrica começa com a Lei Paulo Delgado, mas já havia antes as experiências isoladas de São Paulo: Santos e o CAPS de Itaquera).
Cabe ainda lembrar que gente que não assina com nome e sobrenome conforme aparece na sua carteira de identidade, e não usa email válido, por aqui não é bem-vindo. Dê sua cara a tapa quando for opinar, tal qual dou a minha. A mesma Carta Magna de 1988 garante a liberdade de expressão desde que vedado o anonimato…
Meu email, é, sim, válido. Uso-o, inclusive, para meu perfil do orkut. Lá estão meu nome e identidade, caso isso seja assim tão importante. No momento, o ilustre personagem do Borges me apetece mais.
Seu argumento é precipuamente inválido. A não ser que você realmente acredite que a seção II do capítulo III da Carta Magna seja cumprida – ou vá ser algum dia – da maneira como originalmente idealizada. E aí, bom, temos o tal sebastianismo. Até porque você também citou a reforma agrária como exemplo…
Metade da Constituição/88 estabelece que suas diretrizes serão aplicadas “nos termos da lei” – como é, inclusive, o parágrafo terceiro, inciso quinto, do art. 216 – e só quem trabalha com editais de incentivo à Cultura, seja no nível municipal, estadual ou nacional, sabe exatamente o que isso quer dizer.
Em boa medida é cumprida sim. Não tanto quanto deveria, mas bem mais do que antes, e pode ser paulatinamente mais. Construção do comum é work-in-progress, e não é retroagindo pra uma forma-Estado (como quer a de-puta-da) que se vai melhorar isso. Antes o contrário.
Sobre editais: foram um passo importante para sair da lógica “empresa privada patrocina e estado dá isenção fiscal e fim de papo”. Mas ainda não é a melhor forma. Há outras, é preciso construí-las (e se você me lê a algum tempo, sabe o quanto defendo os editais comparativamente ao neoliberalismo porra-louca que havia antes sob o carlismo, mesmo sob Paulo Souto – uma vez que nem Secretaria de Cultura existia).