Notas sobre uma Greve Imaginária

05/02/2012 at 12:34

Primeiro, aos princípios: não houve greve da Polícia Militar da Bahia nestes últimos dias. Diversas entidades de classe, e o alto comando, garantiram isso – e não é mera conversinha: em nenhum destes últimos dias deixei de ver e conversar com soldados da PM trabalhando normalmente nas ruas, todos afirmando isso não sem enfado. O que houve foi que, dos mais de 30mil servidores militares do estado, pouco mais de 2mil sequer se aquartelaram – antes, foram às ruas espalhar boatos e pânico material (por exemplo, sequestrando ônibus). Daí surge a mitologia teológica ao ponto de gente bastante crítica e reflexiva, na Festa de Yemanjá, me falar apreensivo sobre a “greve da PM”, estando do lado de um posto da PM em devido funcionamento.

Quer dizer, esta não-greve teve efeitos meramente Imaginário, embora com consequências bem Reais. Há quem argumente que a prova de que houve greve da PM é que houve arrastões e saques – óbvio: se as pessoas acreditaram que a PM estava em greve mesmo enquanto viam PMs trabalhando, agiriam desta forma. Ademais, os 2mil amotinados sequestraram ônibus e metralharam agências bancárias, sob o comando do evangélico e claramente portador de transtorno mental severo Marco Prisco – que já responde a crimes, inclusive de falsidade ideológica, em mais de um estado da federação.

 

Uma imagem do motim (greve isso não é).

Não faltou quem da esquerda anti-PTista tomasse a defesa da Polícia Militar, comparando a situação atual com a de 2001, sob o des-governo César Borges. Nada mais falso: naquele momento, a PM já vinha desmoralizada pela invasão do campus da UFBA e ataque a estudantes que protestavam pela cassação de ACM; na greve de 2001 foi greve mesmo, com adesão maciça da corporação, ampla negociação e aviso prévios, e sem perpetração de crimes e barbáries (embora tenha havido sim saques e arrastões por falta de policiamento). Houve ainda certo PSOLismo dizendo que o PTismo é contra o Governo no caso de Pinheirinho, mas a favor no caso da Bahia – um entortamento de leitura bem conveniente: em ambos os casos eu pelo menos (não falo em nome dos outros, minha mãe me deu bons-modos) me coloco contra qualquer truculência policial-militar; se em São Paulo essa truculência alvejou civis em favor do governo, e aqui alvejou civis por estar a PM contra o governo, pouco se me dá. Aliás, tanto peior: Governo aqui foi tão refém quanto a sociedade – até porque nunca lhe foi dado a possibilidade de negociar.

Mais aquém, isso nos revela outras questões. Primeiro que se o efeito da ausência de policiamento é imaginário (mesmo havendo polícia, se crê que não há), o efeito do policiamento também o é: só não há saques e arrastões no dia a dia porque as pessoas acreditam que não podem haver, acreditam estarem protegidas. É uma mistificação, como a existência de um Deus transcendente (os imanentes me interessam). Segundo é o absurdo de haver uma polícia com poder militar sobre população civil durante democracia – um estado de exceção como miasma dentro do estado de direito. Alguém vai levantar o complexo de vira-lata: “polícia única com baixo armamento dá certo na Inglaterra, que é país rico e equânime” – por um acaso México, Índia, África do Sul, se tornaram também países mais ricos e mais equânimes que o nosso? Desde quando ter mais violência traz menos violência, e mais discrepância de força internamente a relação sociedade-Estado gera mais distribuição de renda e riqueza?

Breve arqueologia das Polícias Militares: surgiram no meio do Período Regencial, quando o Governo transferiu seu poder de estado para latifundiários privados (daí os “Coronéis” do romance-de-decadência do neo-realismo de 1930) de modo a controlar as revoltas separatistas de então, e uma vez que o Governo central endividado com indenização da Independência, não conseguia manter tantas frentes de batalha. Em ao menos um caso a PM (que não tinha esse nome), se voltou contra o governo central e deu rebote: na Farroupilha. Com o 2º Império se tentou extingui-la através do fortalecimento da Marinha e do Exército, o que não foi possível porque adveio a Guerra do Paraguai e depois as demandas federalistas das províncias. Vem o Golpe Militar de 1889 (mal-dita Proclamação da des-dita República), e se fortalece a PM de novo que está a frente de outras três guerras de secessão: a Revolta Federalista dos 1890 no Rio Grande do Sul; a Mineira de Arthur Bernardes em 1922 e a Constitucionalista de São Paulo em 1932. Posteriormente, ganha força no regime militar de 1964 (o que garante o diferente ritmo de cada estado entrar na ditadura: a Bahia, por exemplo foi dos últimos a entrar mas também o último a sair). Note que, pelo meio do caminho, as Polícias Militares foram cruciais nos massacres de Contestado e Canudos (Belo Monte é teu nome feérico).

O que nos leva a situação de ilegalidade da não-greve atual, mesmo que greve fosse (e portanto mesmo a de 2001): militares não podem fazer greve. Mas fazem; ou pior: em lugar de fazer, fazem motins. Foi assim com os controladores de vôo um punhado de anos atrás. E isso também significa que se a PM pode ser usada pelos Governos para gerir a Exceção, podem se voltar contra Governos e submeterem estes a condição de reféns. Daí que seria vantajoso para os próprios policiais militares se desmilitarizarem e buscarem uma polícia única: fardada mas civil, e portanto com direito a greve similar a dos servidores de saúde por exemplo.

De toda sorte, o Governo da Bahia a princípio não reagiu com Indústria do Medo. Mesmo quando chamou a Força Nacional, o Secretário de Segurança Maurício Barbosa afirmou que o fazia para aumentar a sensação de segurança – uma vez que a segurança ela mesma estava mantida, já que a PM continuava largamente em atividade normal. Até a sexta-feira, quando a Secretaria de Cultura desativou todas as suas atividades permanentes e temporárias (mais de 20 ao todo), como se esvaziar as ruas as tornassem mais seguras. Resultado: nenhum museu aberto, nenhum show no Pelô seja de Axé ou anti-Axé – contudo encontro de 3 mil crentes com palco e tudo mais na Praça Castro Alves teve; botecos de povão aberto idem, e os restaurantes mais caros do estado funcionaram normalmente para a elite endinheirada (o Chez Bernard, lembrem, fica a 40 segundos a pé de minha humilde residência…).

Moraes Moreira ontem inclusive se negou a cair no Discurso do Pânico e fez seu grito de carnaval no Largo Dois de Julho, clube Fantachoes da Eutherpe – e transformou cada hino de carnaval e dos Novos Baianos em libelo contra o Terror: “Besta é tu: por que não viver este mundo, se não há outro mundo?”. Afinal, nos diz o BaianaSystem, o carnaval quem faz não é a PM – e sim o folião pipoca. E afinal, quem disse que mais polícia é mais segurança, quando tudo indica o contrário?

De todo esse terror infantilóide, só uma coisa me irrita de fato: mesmo gente da Reforma Cultural, que vibra com as políticas de Carnaval Pipoca, se encastelou tremendo de pavor. Luciano Matos cancelou sua festa Bolha com o argumento de que não saberia como seu público chegaria e iria embora. Ora, ele não sabe nunca, e nem deve saber, não é da conta dele. Ou ele agora vai virar um paternalista tutelar da mobilidade alheia?

O que revela que a Reforma Cultural Baiana bateu num teto: ela avançou com e através do Estado até aqui, mas não tem mais para onde ir senão rompendo com o Estado. É coisa que Marcio Meirelles de alguma forma notou, agora que ex-secretário tem se engajado nas lutas do comum como o Desocupa Salvador. Essa galerinha que diz que quer um carnaval sem cordas é borra-botas ao ponto de que jamais enfrentaria as cordas no corpo e na raça, como eu sempre enfrentei, disputando espaço no murro da pipoca da Timbalada no auge do Carlo-Axezismo. Uma classe média de esquerda universitária que não deixa de ser classe média, e que se quer trio sem corda é também trio sem pobre e sem preto, como se cordas tivesse; que não conjuga direito a cultura com direito a cidade, e se contenta com a festinha de rock’n roll no playground da vovó (ao fim, a Bolha não passa disso).

Se em lugar de Revolução eu preferia o termo Reforma, eu agora quero outra coisa: que venha a subversão cultural – nós subvertendo a cultura, a cultura nos subvertendo. Menos do que isso é pau-no-cuzice, e eu não sou de me aputar.