Baile Esquema Vila-Velha (e o fim da Boomerangue)

09/06/2010 at 8:06

“A verdade é que não existem adultos”

Jean-Luc Godard, Elogio do Amor

Pela primeira vez o Baile Esquema Novo acontece num mês em que sua festa-mãe, a Nave, não existe mais; e pela primeira vez, fora de sua sede, a Boomerangue – que ia fechar para reforma grande (após terem sido feitos alguns reparos menores desde outubro de 2009), e acabou vendida e encerrada.

Entretanto, sem luto por ora, que o Baile promete. Pela primeira vez também o mítico Teatro Vila Velha recebe uma festa em seu palco principal, até o dia amanhecer. A festa será também o evento de lançamento da montagem de Os Enamorados, texto clássico da comédia del’arte de Carlo Goldoni, encenado na mesma casa. O cartaz está essa belezura aí acima.

Por falar em teatro, aproveito para divulgar a nova montagem do premiado grupo de bonecos A Roda. Além de novo pocket que circulou no fortamto teatro-na-caixa (montagens de duração de 5min), Adão & Eva, o grupo volta a ocupar o palco do SESI Rio Vermelho com O Pássaro Do Sol, baseado em disco infantil de Miryam Fraga com música de Carlos Pita. Desta vez A Roda envereda pelo teatro de sombras, muito usado na França do fim do Antigo Regime e reavivado pelo genial Michel Ocelot em seu filme Príncipes & Princesas.

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Sobre o fechamento da Boomerangue, valem algumas considerações. Primeiro: não há nenhuma repetição de derrota em uma casa fechar depois de 4 anos de funcionamento, sempre cheia, e sem nunca ter tido nenhum momento de decadência.

Mais: quando esta casa desbravou um caminho que todo mundo achava que ia dar errado, o da pluralidade fora do axé-sistem (num tempo em que a dicotomia falsa axé X rock ainda reinava). Isto é: profeticamente, anteviu o Pós-Axé, e o fez acontecer.

E mais: quando a partir disso outros empresários embarcaram na onda, depois. Há 4 anos, só havia como alternativas a Boo e a Zauber – esta sem identidade clara. De lá pra cá, a Zauber foi empurrada pela Boomerangue saudavelmente a ocupar um lugar que não existia: uma boate de hip-hop e sons algo marginais da jamaica (raga, dance-hall, etc.), no centro da cidade (Ladeira da Misericórdia), com seu público vindo basicamente da Cidade Baixa e das “costas da cidade” (Liberdade, Tororó, Nazaré). Até então, eram orfãos de espaço. Não obstante, a Zauber passou a receber ainda mais artistas de peso da nova cena brasileira, vindos de outros estados, desde que a Boomerangue abriu – como há dois meses atrás, os pernambucanos Eddie.

Desde que a Boomerangue surgiu, bares mais sofisticados como o Marquês adivieram. E de outro lado, o Groove Bar, na Barra, contemplando o rock mais puro – o Groove a princípio não enxergava nem a Reforma Cultural Bahiana nem sua concorrente direta, contribuidora desta Reforma, a Boo; depois passou a enxergar, fez alguma força contra mas acabou unindo forças. Também por causa da Boomerangue.

Surge o Tom do Sabor, espaço multi-uso criado por João da Gama Filgueiras Lima, o Lelé, e que semana passada recebeu show de Otto com a Radiola. E que enche, de segunda a segunda, com o que há de mais sofisticado em experimentações intimistas na Bahia.

Surgiu o Botequim São Jorge, consolidado como casa de excelência em samba; e vários pequenos botecos que, apesar de pés-sujos, investiram na novidade estética – caminho aberto pela Boomerangue. Alguns destes botecos resolveram se aprumar e ampliar, como recentemente o Alí do Lado. E, desde então, o samba das sextas-feiras de fim de mês no Santo Antônio Além do Carmo ganhou importância nacional – recebendo em mesa aberta Elza Soares, Dudu Nobre e outros.

Notem: a Boo não mudou apenas, para melhor, o funcionamento do Rio Vermelho, nem do panorama musical e cultural da cidade. Mudou o funcionamento de outros bairros e ruas bem distantes de si. E, repito: durou 4 anos. Não um, nem dois, mas 4 anos. Numa época em que não havia, como hoje há, microcrédito cultural do Desenbahia nem a extensão do FazCultura para pequenos e micro-empresários.

Se isso é insucesso, eu quero ser mal-sucedido nesta vida…

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Então, por que vendeu? Há quem esteja falando que foi pouco ético e gentil da parte de Alex Góes e seus sócios anunciar reforma por cinco meses pra só dizer que vendeu na última hora. Mas ninguém fica fazendo pequenas melhorias, e negociando fechamento para uma grande requalificação, pra gerar boato.

Deixemos o próprio Alex Góes dizer, então:

Hoje quero abrir um espaço aqui pra falar sobre o fechamento da minha casa de eventos a Boomerangue, que teve sua última festa na sexta passada, dia 04 de junho. Queria começar agradecendo as centenas de mensagens lamentando o ocorrido o que me deixa envaidecido ao realizar que a casa era muito mais querida do que podia imaginar e que realmente vai deixar saudades não só pra mim.

Aqui, cabe um comentário ao estilo de Luciano Matos: bahiano só se dá conta do que tinha quando perde, e só passa a entender o quão genial Salvador é quando vai embora.

É uma “Dublin de Joyce” nagô, não tem jeito. Inclusive pela umidade.

A verdade é que não há momento bom ou adequado pra se encerrar uma casa como a Boomerangue numa cidade carente de espaços como Salvador. A não ser que a deixasse morrer aos poucos e só passá-la adiante quando não tivesse mais nenhuma relevância. Mas isso eu não faria jamais, pois merecia final mais digno. Quando a idealizei há mais de quatro anos, disse pra meus sócios e amigos que o meu maior objetivo era criar um espaço que realmente fizesse uma diferença na noite da cidade e quebrasse com alguns paradigmas e preconceitos. Enfim, que deixasse uma marca e que não fosse mais uma. Com tudo que tenho lido nos últimos dias na internet, acho que conseguimos isso.
O maior motivador do encerramento da casa foi o cansaço físico e mental de quatro anos de noites perdidas e a absoluta escravidão que é ter uma casa com esse perfil. Só quem trabalha com a noite pode entender do que estou falando. Nada vale a pena quando a sua qualidade de vida está em jogo e acho que a casa só foi bacana enquanto esse cansaço não atrapalhou. O público não merece ter uma casa que não está sendo cuidada com tesão e muito gás e por isso optei por vender antes que isso acontecesse. Quero que as lembranças de todos sejam de momentos alegres, únicos e inesquecíveis.
Quanto à cena alternativa da cidade, ela sobreviverá como sempre sobreviveu. A Boomerangue não é a única nem será a última e nós inclusive tentamos vende-la pra alguém que quisesse dar continuidade às nossas atividades, mas ninguém se interessou. A reforma, portanto, ia acontecer agora no mês de junho, até que outra proposta nos foi feita e decidimos aceitar.

Nota: o empresariado bahiano continua rastaquera ao ponto de não querer comprar e manter uma boate que é referência Brasil afora…

Por fim, quero agradecer mais uma vez a todos que de alguma forma criaram e participaram de momentos mágicos nos últimos anos.

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Não demorou para que os xiitas camisas pretas viessem gritar domingo no twitter que a Boomerangue fechar é prova de que Salvador não presta, continua axezeira – e até pedirem pela volta do Idearium e do Calipso, dois bueiros insalubres, verdadeiros guetos a que o rock (e só o rock, porque a dicotomia falsa reinava) foi empurrado pra sobreviver ao axé-sistem dominante.

É saudades do lanho, como aquela personagem de Chico Anysio que dizia:  “Meu marido não me ama mais – nunca mais apanhei dele.”

(Aliás, não sei que milagre as gralhas-do-caos não culparam o Secretário de Cultura Márcio Meirelles pelo fechamento da Boomerangue – muito mais relevante do que a falência do Teatro UEC. Talvez porque no caso da Boo não tenha sido falência alguma – e até pra produzir factóides tem de ter base na verdade…)

Como se vê pelo que eu disse, e pelo que o próprio Alex disse, não é nada disso.

Quem fez coro aos xiitas camisas-pretas? Os últimos defensores do Axé-Sistem, claro! Ildázio Jr, no péssimo Bahia Notícias (mais axezeiro impossível), diz estar sentido por que “o fechamento da Boomerangue é mais uma prova de que na Bahia só o Axé dá certo”. É como um jagunço matador que vai chorar no enterro do seu encomendado.

Conclusão? Como eu digo desde que me entendo por anti-axezista: nada mais pró-axé do que os xiitas camisas pretas que vaiariam Armandinho Macedo há 5 anos atrás e que nunca pegaram uma pipoca de carnaval na vida. Certo está o Pagodão, que embora empurrado pelo rock para dentro do Axé-Sistem, não se rendeu esteticamente, se renova, e é francamente popular. E, ah!, sofre tanto ou mais problemas midiáticos, financeiros e de espaço quanto o rock (como frisa Letieres Leite naquela entrevista sobre a canção) – ou talvez piores, já que não são branquinhos nem moram na Pituba nem fazem um som “inteligente e sofisticado”.

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Outra xiadeira foi do tipo: “O que será de nós, órfãos da Boomerangue? Para onde iremos?”. É incrível como a Capital da Diáspora teme a Diáspora – ela que fez crer que apesar de tanto não, tanta dor que invade, a Diáspora pode ser a plumagem da noite espalhando luz do sol.

Ora, é ter muito pouca visão sistêmica pensar isso! A Boomerangue abriu espaços fora dela, não apenas físicos e geográficos, como lógicos e estéticos. Que as festas e eventos geniais que ela gestava possam agora colonizar outras plagas, é benígno!

Um exemplo já vai ocorrer: a Br!nk5, festa que radicaliza a panssexualidade teen experimental, vai ser na ultra-gay-adulto-endinheirado SanSebostian (de “sebo”, não de “bosta”). Já imaginaram que efeito de “implodir gueto” isso pode ter? Justamente efeito similar ao que o Marquês tinha e a um ano atrás ficamos órfãos?

A realidade é dinâmica – uma vez que você a altera, ela continua por inércia sem você em alguns casos. Outro exemplo disso: a Pituba tem uma zona boêmia consolidada, importante, e planejada (o que o Rio Vermelho não é – e aí louros a Antonio Imbassahy pela reforma da Avenida Manoel Dias & adjacências), a Rua Minas Gerais. Que fica a duas quadras de uma área residencial – a Rua Amazonas. Que é largamente mauricinho e axezeira, mas que tem putas e travecos na rua. Uma mistura inusitada! E se houver um Baile Esquema Novo ou uma Top Top por alí?

Quem sabe com isso a Zauber não ganhe outro folego, em outra dimensão e estilo, sem perder o que já ganhou? E o Tom do Sabor, que abriu mão do restaurante pra ser só pista? Não vai abrigar parte do que foi da Boo? (aliás, não já abriga?)

Quando a SalaDeArte do Clube Bahiano de Tênis fechou pra dar lugar a Perini Delicatessen (que desmatou uma das entradas do arborizado bairro da Graça…) foi a mesma comoção. Parecia que o cinema de bairro e autoral em Salvador, que começava a se reerguer, iria morrer de novo. Negativo: são hoje 6 salas, num ritmo de abrir uma por ano desde 2004; duas das quais inacreditavelmente no Itaigara. E surgiu o Unibanco ArtePlex Glauber Rocha, no vácuo deste vetor econômico. Sem tragédia.

Estamos no fechamento do primeiro ciclo do Pós-Axé ou da Reforma Cultural Bahiana, e entrando num novo ciclo (novamente, quem me lembra disso é Luciano) – este não é o primeiro sinal disso, e alguns destes sintomas são muito exitosos. A noite de Salvador é muito maior do que o Rio Vermelho – falta descobri-la. E a Bahia é maior do que seu Recôncavo e sua Reconvexa.