O Patrono da Xibietagem

13/04/2010 at 22:11

Ele ainda tem alguma coisa a ensinar aos novos-bahianos...

Os últimos anos de vida de Jorge Amado coincidiram com os últimos anos, e mais duros, do carlismo, e com a ascensão do axé-sistem e a disseminação do modelo Globo de bahianiade associado a tudo isso: indolência, curteza mental, grosseria, sexualidade turística. Jorge Amado, infelizmente, talvez já velho demais para reagir, assentiu que sua obra fosse usada para este fim; e pessoalmente, se aproximou de ACM – antes, um rival, quando na constituinte de 1945 foi deputado pelo PCB, apoiador e amigo íntimo do Governador Octávio Mangabeira.

Com a mesma força que minha geração rejeitou o axezão e a bahianidade-pra-paulista-ver, passou a condenar Jorge Amado. Eu mesmo por anos vi nele um escritor turístico, de frases mal-acabadas, e parca capacidade de análise psicossocial (se comparado com Graciliano Ramos), econômica (se comparado com José Lins do Rêgo, especialmente em seu monumental romance Usina, o último do ciclo da cana) ou histórica (Terra dos Sem-Fim soa-me sempre como uma cópia encurtada de O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo).

Pra completar, tinha essa inveja de Recife que permeou a resistência ao axé-sistem: nos anos 1930, Recife teve um movimento literário tão organizado que atraiu escritores de outros estados e gerou cientistas sociais e críticos. A Bahia, não. Sabemos que houve a Avant-Gard, difuso porém mais duradouro e importante do que o modernismo pernambucano – no entanto, na época, a memória do carlismo apagava e impedia de nos lembrar dessa época áurea. Da qual Jorge Amado é dileto representante, como Carybé ou Verger, como Walter da Silveira e como Smetak ou Dorival Caimmy.

Recentemente tomei para ler Os Velhos Marinheiros. Li de uma sentada! – e olhe que estava de plantão no hospital (por sorte, não houve chamados por duas horas seguidas). Eis uma injustiça que estes momentos de pós-axezismo precisa fazer: sejamos pós-amadianos!

* * *

Fato: os persoangens de Jorge Amado são superficiais e esquemáticos, de um realismo socialista tal que parecem saídos de um painel de Diego Rivera ou de um filme da fase mexicana de Buñuel. Outro fato: como romancista do cacau, ele fica aquém léguas do grande trágico que é Adonias Filho; como regionalista bahiano, perde feio para Herberto Salles, a quem ele chamou de “unificador da Bahia”, já que sua obra retrata a ocupação da bacia do Paraguaçú: de Lençois a Cachoeira.

Fato também: a longevidade excessiva, e o fenômeno midiático desde os primeiros livros, causou um “efeito Fernando Pessoa” (só que sem Pessoa) na Bahia: Jorge Amado, escritor pouco sistemático e algo preguiçoso (mas a preguiça aí é método!), encobriu esses dois gênios acima citados, até hoje injustamente pouco conhecidos do leitor brasileiro e lusófono. (E podem notar: a renovação literária brasileira se deu quando Jorge Amado morreu: quer por surgirem novos autores, quer pela redescoberta de outros já então na ativa como Raduan Nassar e João Ubaldo Ribeiro).

Nada disso retira o fato de que Jorge Amado inventou a Bahia (no sentido que Diógenes Rebouças e Edgar Santos inventaram), elevou – junto com Mangabeira – a xibietagem e a nigrinhagem ao patamar de tecnologia de reflexão lógica (o que nenhum escritor brasileiro fez com seu idioleto nativo, a exceção talvez de Guimarães Rosa).

E mais: não houve no século XX cronista urbano comparável no Brasil. E, nos cinco séculos de lusa língua, compara-se apenas a Machado de Assis e Eça de Queiroz: em um está lá transpirante a contradição de viver numa capital imperial e tropical, iluminista e escravocrata; em outro, na mais provinciana das capitais européias; em Jorge, a cidade que, insubordinada e anti-hierárquica (como diz o próprio Jorge Amado no seu Bahia de Todos os Santos, que está longe de ser um “guia de viagem”), inverteu valores e, de capital militar portuguesa, se fez sede não declarada da civilização nagô – Roma Negra, sudanesa vestida de renda.

Nos retratou para fora do tempo, e nisso não foi nem superficial nem midiático. Basta ler A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água.

Está lá a esperteza inocente e o hábito de não tratar nada a sério – tão mangabeirista; a civilidade polida e ao mesmo tempo um tanto suja de rua, de dendê e de sexo; um pansexualismo ao mesmo tempo pícaro (e aí a herança de Gregório de Mattos e Castro Alves são óbvias) e infantilmente brincalhão (nada dos dramas chorões das punhetas em banguês abandonados de Zé Lins).

Está lá o barroquismo no estilo. Não o barroco solene e místico das Minas. Mas o barroco que gera catedrais inacreditáveis (e Jorge é capaz de frases com subordinações dignas do Padre Antonio Vieira, em que constrói de um golpe só verdadeiras teorias culturais da Capital Reconvexa), e ao mesmo tempo becos e cortiços malajambrados. O barroco do belo e do feio simultâneo; da santa e da puta; do exú e do Espírito Santo.

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É tempo de reabilitar Jorge Amado. Não o dos últimos dias de vida, ascentindo com o carlismo e sendo usado ao bel-prazer da Vênus Platinada do Plim-Plim. Mas o jovem diplomata bahiano, que mostrou ao mundo que, diria Milton Santos (outro amadiano, porque também filho e autor da Avant Gard), uma outra civilização é possível: negra, sem ser africana; branca, sem ter pruridos católicos. Civilização em que, se o português é o espanhol desossado, o bahianês é o português cozido lento, no aguidá de barro, com azeite de dendê – e servido com efó, acaçá e feijão-de-leite.

Não por coincidência, os filmes da nova safra bahiana tem revisto a cidade do Salvador com olhos que não são exatamente ao modo de Amado, mas herdeiro dele. Por exemplo: Cidade Baixa, aliás se passando na parte da cidade que Jorge Amado mais gostava – e que na época era a mais pobre e isolada. Quando não ocorre, nesta nova safra, de advirem filmes diretamente feitos a partir da obra dele – e sem parecerem novelas da Globo pra paulista ver: Capitães da Areia e Quincas Berro D’Água.

Um Jorge Amado, finalmente, re-baianizado.