Régio d’Orkestra

22/01/2010 at 6:50

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“Eu Sou Um Operário da Música”

Ele lidera uma das mais importantes big-bands de jazz do mundo, hoje. Uma big-band nagô, malê, fon, jêje – que subverte a estrutura orquestral ao colocar na frente, e não na cozinha, os tambores e percussões, e os negros em traje de gala. A Orkestra Rumpilezz acabou sendo um meta-mundo do pós-axezismo: para ela convergem o Neojibá, a OSBA, o Jam do MAM, a cozinha de Ivete Sangalo e Daniela Mercury, o pagodão, e até o rock. É com uma honra infinita que o Último Baile dos Guermantes estende o tapete de veludo vermelho para o gênio: Letieres Leite!

O que tenho feito é formatar formalmente a música bahiana negra de origem – catalogar, sistematizar, estruturar um pensamento da música que estou defendendo. Algo como Pernambuco fez com o frevo a quase um século atrás, quando o frevo foi catalogado e separado nas três vertentes (de rua, canção, e de bloco ou pau-e-corda).

LUCAS JERZY PORTELA: Não gostaria que fosse uma entrevista, e sim uma conversa. Como naquele dia em que você me ligou e conversamos quase meia hora por telefone celular – aliás, eu gostaria de ter gravado aquilo.

LETIERES LEITE: Eu tenho muita facilidade de falar, juntar as idéias e colocar as idéias bem claras. É uma tendência minha natural. Li um pouco sobre o tema da canção, além das suas entrevistas, existe aquela resistência – um tema que foi levantado pelo grande crítico Zuza Homem de Melo. Eu entendo que quando se tenta ver a música atual, a música falada que foi propagada pelo RAP – é preciso lembrar que significa ritmo&poesia. Lembro sempre do Gil Scott-Heron, que além de rapper é músico de jazz da pesada, instrumentista, e era um poeta escritor, que fez livros fantásticos.

Já lhe ocorreu que o poeta mais arrojado, e que abre o século XX na poesia era um negro americano? – e.e.cummings

Scott-Heron não é poeta exatamente, mas tinha uma atenção especial com a palavra – embora reconhecido primeiro como instrumentista. Daí ele ser considerado um dos pais do RAP. Lógico que naquela época, naquele contexto histórico, tudo isso acontecia por ser a contestação do negro, da privação do negro.

Há uma coisa curiosa sobre e.e.cummings: ele tinha influência aristocrática e da art-decô alemã. E por outro lado, ninguém lembra que ele era negro. Meio como o jazz, que só é lembrada como a “música erudita americana” ou “música erudita do século XX”.

De certa maneira há uma tendência natural de embranquecimento dos avanços da cultura negra que são tidos por sofisticados – o que é uma coisa quase orquestrada. O rock’n roll é considerado ainda uma ponte entre esses dois mundos: negro e branco. Vamos falar tecnicamente: o rythm&blues é uma música cujo formato é de 12 compassos, essa estrutura foi fechada dentro da cultura negra. E só foi replicada pela classe média branca britânica depois, do que se foi tirando a base do rock, diminuindo a sua estrutura até chegar num invento que eu considero um divisor de águas interessantíssimo – O Ramones, que reduziu a canção a três acordes e por vezes um só verso. Do ponto de vista formal, é interessantíssimo! Mas nos seus primórdios, a estrutura harmônica e melódica, o material mínimo pra se começar a fabricar rock, veio da cultura negra – Litle Richards, Chuck Berry, e outros caras até anteriores que já tocavam rock’n roll, embora classificado como jazz ou blues na época.

Um fato notável: a poesia de e.e.cummings é especialmente erótica, sensual, às vezes até explícita; e isto é algo marcante também no jazz, no blues, no rock, no pagodão. Você acha que a contribuição da população negra na canção passa também pela explicitação da sexualidade?

Também isso, mas não só isso. Não devemos reduzir a contribuição negra na música popular apenas a isso, e sim lembrar da estruturação harmônica e rítmica.

No entanto, a música popular do interior do Brasil, especialmente o sertanejo de Goiás e a moda de viola do Mato-Grosso, é muito puramente portuguesa. Não consigo ver influência negra alí, talvez por não ter havido escravidão negra expressiva nestas regiões. É quase modinha.

Por outro lado as pessoas se esquecem que quase todos os instrumentos do samba são, por origem, portugueses, inclusive a percussão e os surdos – tamanha é a disseminação da miscigenação na nossa música popular.

Você falou da origem harmônica e rítmica negra, mas do ponto de vista lírico e melódico, a canção vem de uma tradição européia, não?

A influência maior da canção vem desse embate, desta tensão. Aqui, uma impressão pessoal: a canção está quase sempre ligada a algo de melancólico na melodia e nas letras. Veja o samba-canção, por exemplo: é o samba mais triste. E o…

Frevo-canção!

Exato: frevo-canção. Falamos até juntos, está vendo? Isso tem algo da herança ibérica.

Nos Bumba-Bois do Maranhão em Sotaque de Orquestra, embora muito dançantes a melodia é em tom menor.

Nas Cirandas, de Pernambuco, também. Isso vem da cultura ibérica já formatada – isto é: depois de assimilar a influência moura, dos 500 anos de dominação árabe na Península Ibérica.

Uma coisa você me falou no telefone aquele dia, que eu acho importante: “por melhor que sejam estas quatro entrevistas deste cartel, elas ignoram a a música produzida na Bahia pela população negra. São entrevistas de branco”.

Quando pensamos em música alternativa, pensamos em música feita pela classe média. Me refiro ao branco histórico, antropológico-social, não exatamente ao étnico.

É música de esquerda, mas de classe média. Digamos, de uma esquerda universitária – e não da esquerda proletária.

Exato. Eu falo isso enquanto educação formal – e não como capacidade de observação de vida, na qual os grandes cancionistas de pouca educação formal são diplomados. Como Batatinha, ou Cartola. Pensei primeiro em Batatinha porque eu tive proximidade maior com ele. Meu pai era contemporâneo dele e também tipógrafo, e ele tinha uma loja na Praça da Sé, uma livraria na Rua Monte Alverne, na qual eu trabalhava. E Batatinha ia lá e ele já era o cara, o sambista fundamental para nossa formação ali.

Há algo que você e Emerson Taquari fazem que acho importante: valorizar o pagodão.

Eu não quero valorizar nenhum ritmo em especial, procuro ver a importância de cada um como um todo. E eu coloco o pagode bahiano como um dos ramos da grande árvore cuja origem é o candomblé.  Mas todo o desenvolvimento do pagode tem a ver com a industria, que o produz: quem ganha dinheiro com o pagodão, em última instância, são os brancos donos dos meios de produção! Embora eu ache que o pagode tenha sido o estilo musical que mais realizou uma verdadeira distribuição de renda direta dentro da música. Nunca vi um estilo musical fazer com que pessoas de uma certa classe social tenham aumentado radicalmente seu poder aquisitivo e passassem a transformar seus lugares geográficos de origem – só o pagodão. Eu posso falar disso por observação própria, do tempo em que eu morava no Caxundé, na Boca do Rio, onde havia vários grupos de pagode que nem eram de grande sucesso. Tinha um menino lá que aprendeu a tocar umas coisas comigo com cinco anos de idade, e hoje toca no Fantasmão, e tocou muito tempo com Tony Salles (da banda de pagodão e suingueira RagaToni) – chama-se  Deilton. Eu vi Deilton crescer e transformar uma situação financeira na família dele. Houve uma distribuição de renda autêntica: a rua onde esses caras moravam tinham um aspecto; quando começaram a tocar, melhorou imediatamente a paisagem da rua. Claro: eles são explorados pela indústria cultural, e ganham menos do que merecem de seus empresários – mas isso se realizou com o dinheiro que eles ganharam. Qual a outra opção que os pagodeiros teriam? Ser auxiliar de serviços gerais, pedreiros, não haveria mudança de vida, transformação social. Eu nunca vi isso ocorrer por exemplo no axé-music – na verdade, eu prefiro falar em “música bahiana” do que em “axé-music”.

Mas música bahiana inclui várias coisas que não são axé, nem pagode.

Música bahiana inclui tudo que se produz no universo do Carnaval de Salvador. Pro sulista, tá tudo na mesma prateleira: do Filhos de Gandhy até Mariene de Castro, de Chiclete com Banana a Armandinho. Isso é uma visão de fora, de quem não entende, mas tem uma conexão com a realidade. Porque todos estes trabalhos se conectam na percussão, reverenciam a percussão, todos estes trabalhos partem da percussão.

Mesmo o frevo elétrico? Porque o frevo elétrico retira a percussão, e transfere o ritmo pra guitarra.

Qualquer divisão rítmica de um instrumento harmônico vem de um instrumento percussivo. A transformação social que o pagode proporcionou em não vi em outros ritmos bahianos – todos os músicos destes outros ritmos que não eram da percussão não vinham de classes mais baixas. Os negros na cozinha da música, e os brancos de classe média no sopro e nas guitarras. Eu faço parte dessa turma de músicos de sopro – apesar de ser negro, sempre fui de classe média; meu pai era livreiro, eu lia muito desde cedo, etc. Por que isso? Primeiro, que os músicos de instrumentos harmônicos do axé-music tocavam instrumentos caros, piano, saxofone, etc. – os tambores são baratos.  Não se conhecia um pianista negro em Salvador até poucos anos atrás. Isso é uma loucura! Antes de eu ir pra Europa estudar, fiz uma pesquisa pessoal para saber a quantidade de músicos negros que sabiam tocar e orquestrar. Não tinha. Eram brancos que vinham de famílias que podiam bancar estes estudos. Não estou querendo criar uma barreira racial ou social, e sim mostrando uma realidade. Como era a indústria fonográfica bahiana? Havia um único estúdio de gravação, a WR, e este estúdio tinha seus músicos de base. Este monopólios só diminuiu quando surgiu o home-studio – ficou barato: qualquer pessoa consegue montar um estúdio de gravação em casa, o que tem a ver com o advento do MySpace e do Youtube. Voltando a minha consideração sobre a ascensão social no pagodão: em bandas de pagode foi a primeira vez que vi uma banda formada completamente por negros, na Bahia. E eram várias! Dei-me conta disso quando voltei da Europa e fui ver o que estava acontecendo de novo na Bahia – quando vi fiquei muito feliz. Isso estou falando há 20 anos atrás. Quando vi disse: caramba! Antes o cantor podia até ser um negro, como Lazzo Matumbi ou Margareth Menezes, Pierre Onassis, mas eram negros que tinham sempre uma subordinação a alguma famiglia branca que tinha o controle do poder econômico, e estes cantores negros trabalhavam pra estas pessoas dentro de certos limites. É diferente das cantoras brancas de axé-music, que vêm da classe média e acabam sendo sócias de seus empresários e gravadoras, e tinham laços consaguíneos com estas famiglias. A exceção talvez seja Ivete Sangalo, que vem de uma classe popular, batalhadora, que já vendeu de chapéu até marmita para ganhar dinheiro. Ainda assim, por não ser negra, era facilmente abraçada por estes grupos. Margareth Menezes por muito tempo foi a única negra que cantava música bahiana com caráter e originalidade; na Suíça, a vi cantando com David Birn – e voltando pro Brasil, vi que aqui ela não estava estourada.

rumpilezz

Essa coisa de se considerar negro é engraçada. Pedro Pondé, que é branco, diz se considerar em parte negro – apesar de vir de uma família aristocrática. Ele me disse até que estranhava quando as pessoas se referiam a ele como alguém vindo do “clã intelectual dos Pondé”.

Quando falo dos nomes de família, não falo como um exagero ou um exercício de repetição das famílias aristocratas mundial – embora saibamos que a História se repete. A nossa aristocracia, se por um lado tem um pacto com o povo e uma visão social, em figuras como Edgar Santos, Anísio Teixeira, Octávio Mangabeira, por outro ela é a classe dominante e monopolista como qualquer outra. Se se vem de uma família cuja dominação é na industria naval, é uma mesma família que domina; na área varejista, outra; na área da Cultura é igual. Quem domina o mercado cultural bahiano, para bem e para o mal, são as mesmas famílias há quase um século. Eles são até involuntariamente preparados pra isso desde pequenos, em seus ambientes domésticos, familiares. Os meninos do pagodão não foram preparados desde pequenos para isso – é esforço pessoal. Isso não diminui os que vêm de famílias abastadas: são talentosíssimos! O que estou mostrando é uma diferença social: uns, nascem em famílias que tem os meios de produção e o capital cultural transmitido de berço; os da periferia, se chegaram a isso, foi por esforço. A aristocracia não está só ligada a poder econômico, e sim ao de perpetuação de um conceito cultural. Que conceito cultural é este que estas famílias perpetuam? Ora, por mais que eu admire, não é o meu! Eu fui criado na beira do Dique do Tororó, e depois na Boca do Rio. Embora eu tenha vindo de uma família de classe média, já tive momentos de necessidade financeira na adolescência, indo estudar em colégio público e tendo contato com pessoas que me mostraram este outro lado. E embora eu tenha sempre tido contato com a elite, olha meu sobrenome: eu não venho dos clãs intelectuais da Bahia! Mas há isso na Bahia: a interação entre estas famílias e as classes populares é intensíssima, por causa da pertença das famílias da elite com o candomblé. Pense que toda a classe política do estado nos últimos 50 anos passou pelo Conselho de Obá de Mãe Senhora.

Eis algo que acho mal-explorado na Bahia. A Bahia tem a única Páscoa multicultural do mundo! Qual é a ceia de Páscoa no Recôncavo? Carurú, vatapá, feijão de leite – é um ritual de Oxóssi. Não é só o povão: as famílias brancas, da elite católica da Vitória dá carurú na Páscoa. E ninguém repara nisso – não se comenta isso fora do estado. Talvez porque estejamos tão habituados que não nos damos conta de que não é assim em outros lugares do mundo e do país – que é só aqui que se come carurú na Páscoa.

Outra coisa é que as bandas de pagodão são formadas por amigos que moram no mesmo bairro. Um amigo tinha um cavaquinho, aprendido na rua, na oralidade; outro tocava percussão; mas aí precisava de alguém pra tocar o teclado, ou o sopro, e aí se fazia um primo ou um vizinho aprender a tocar estes instrumentos. Claro que estes músicos são de baixa qualificação, pelo estilo musical escolhido não ser muito exigente do ponto de vista harmônico e melódico. Claro, se partirmos pra uma discussão de complexidade estética em geral, todas os estilos musicais são ricos. Sinceramente, a revolução rítmica do pagode foi a última grande revolução percussiva que aconteceu na Bahia.

No Brasil também?

Talvez. O Funk Carioca, pelo amor de deus, não tem originalidade e criatividade musical!, pouquíssimos elementos rítmicos. Os trabalhos de pagodão na Bahia passam pelo arranjo e combinação de claves. Uma música geralmente contem uma clave; só que o pagodão consegue, em uma mesma melodia, variar por duas ou três claves. E além disso, a polirritmia: o pagode está num ritmo, e ao mesmo tempo este ritmo dobra paralelamente.  Claro, todo esse meu argumento é acadêmico, digamos assim: falo de regras – o pagode tem uma regra! – altamente complexa, e é inovador. Inventar uma nova forma de cantar ou um novo texto é mais fácil do que se criar um ritmo absolutamente novo. Por mais que tenha vindo do samba-duro, do samba de roda e da chula, o pagodão já é outra coisa; e desse ainda deriva a suingueira, e depois o Psirico – é mutante, sem romper com uma tradição. Notei que o pagodão havia criado algo novo vendo os teclados eletrônicos japoneses, que vem com ritmos pré-fabricados. Estes teclados contemplavam sempre, entre os ritmos brasileiros, samba e bossa-nova. Mesmo o frevo ainda não está lá, algum dia estará, é inevitável. Nestes teclados, a partir dos anos 90, começou a aparecer os ritmos “Axé 1” e “Axé 2”. Axé 1 geralmente é samba-reggae, e Axé 2 é mais a levada, o galope. Este fenômeno da Bahia é de nível mundial: poucos lugares do mundo se tem notícia de ainda se estarem inventando padrões rítmicos novos. Talvez na África, ou em Cuba, mas sem o impacto midiático que a Bahia tem. Contudo, o que quero ressaltar são estes dois pontos: a distribuição de renda a partir do pagodão, apesar do alto nível de exploração a que são submetidos pela indústria fonográfica; e o fato de terem passado a ter acesso a outros instrumentos melódicos e harmônicos a que a população negra não tinha. Hoje em Salvador, apenas 15 anos depois, observe o número de instrumentistas negros que não trabalham com percussão, e sim com teclas, sopros e cordas: é imenso! Se houvesse investimento sério neste sentido, poderiamos ser como Cuba, Nova York, a New Orleans de Winton Marsalis Jr. Porém, o que falo é de ter um movimento sistemático de educação musical para a população negra: isso aconteceu em Cuba, após a Revolução; Nova York, e agora Salvador – primeiro espontaneamente pelo pagodão, e agora, muito recentemente, de modo formal, por causa do Neojibá. Nestes três lugares existia um material humano fruto da miscigenação de culturas e raças, e condições férteis para se fazer uma música forte não apenas dentro da tradição oral, e sim também dentro de recursos modernos, contemporânea e nova – se fossem dadas oportunidades destas pessoas terem acesso ao conhecimento formal. Em Nova York, eles chamavam de Youngs Lives, e criou gerações de músicos potentes; parte destes trabalhos eram músicos negros ensinando músicos negros nas ruas. Quando olho a Bahia, vejo todo este material rítmico disponível – não tem nada a ver com nenhum estilo músical. Faz de conta que a gente não tem nenhuma música em Salvador, e observe as pessoas andando: o modo de agir do bahiano é musical, mesmo se a cidade fosse muda. Isso me faz crer que a potencialidade de Salvador é identica a de Cuba e de Nova York – basta que se tome isso e se faça alguma coisa.

Então, o Neojibá cumpre este papel…

Cumpre! Claro que cumpre! Foi a primeira vez que vi um programa sério, concreto, para transformação do afro-descendente na Bahia através da música, foi o Neojibá. O que há é que o Neojibá foca principalmente a música erudita – no que estão corretos. Falta projeto similar que contemple a música popular, não apenas daqui, mas do mundo inteiro: o jazz, o folk – para formar músicos que possam disputar espaços, individualmente, com músicos de qualquer lugar do mundo. O Neojibá usa estrutura de música popular quando realiza bis, mas não acho a melhor solução. É preciso tratar a música popular como disciplina em si, com seu rigor próprio. Cuba fez isso com a Salsa (que já não é uma música cubana, mas uma reinvenção a partir do jazz, fora de Cuba e da qual Cuba se re-apropria depois) há quase 100 anos, com livros e mais livros sistematizados; Recife fez algo similar com o frevo na mesma época, quando estabeleceu os três estilos fundamentais: de rua, de pau-e-corda ou de bloco, e frevo-canção. O que acontece com Cuba é que os percussionistas de lá sabem escrever arranjo em notação musical de pauta – porque o país trata a música popular com o rigor de música de concerto, sem no entanto confundir as duas coisas. Claro que a tradição yorubá é oral tradicionalmente; só que não dar condições para que a tradição yorubá se torne também ela uma cultura escrita e erudita é uma forma de segregação. Já me perguntaram: “Você não acha, Letieres, que se os percussionistas negros da Bahia aprenderem teoria musical formal vão perder a espontaneidade?” – ora, não tem balela maior! Se fosse assim, todo o jazz americano não seria espontâneo… Você veja que se tentou tirar dos negros o mérito do jazz americano: quando Milles Davis estava no auge, a indústria fonográfica da costa oeste cria Chat Baker – que é excelente, só que claramente era pra ser uma “versão branca do Milles”; a mesma coisa Benny Goodman, quando a big-band de Duke Ellington estava no auge. Isso acontece quando é um negro que está por dentro de uma descoberta musical que tem um caráter mais elaborado.

Você falou de Duke Ellington, e você deve saber que seu apelido Duke vinha do fato de ele ter uma formação aristocrata, de uma família que sempre trabalhou pros senadores de Washington. Como e.e.cummings, um poeta de Harvard; e no Brasil, Pixinguinha.

Não sei se Pixinguinha se encaixa bem nisso. A história profissional dele tem um fato muito estranho: a maioria das composições dele são em parceria com Benedito Lacerda. Eu me perguntava: como?, se a música de Pinxinguinha é instrumental. Música instrumental geralmente não requer parceria. Existe, mas são raros; em geral, um compositor notório instrumental compõe sozinho. Então, por que ele sempre tinha Benedito Lacerda ao lado dele? Ora, Lacerda foi o cara que quitou as hipotecas de Pixinguinha. Ele fez um contrato com Pixinguinha: “Eu vou ajeitar sua vida. Você é gênio da música, mas péssimo nas finanças. Eu quito suas dívidas, mas quero ter participação de autoria em metade de suas músicas”. Até hoje a família de Benedito Lacerda lucra com direitos autorais. Coloco esta história aqui para mostrar que, mesmo em músicos negros eruditos e de ares brancos e elitistas, também sofrem este tipo de espoliação. Aliás, Pixinguinha começou fazendo jazz; os Oito Batutas era uma big-band, com o bumbo da bateria escrito jazz-band e tudo mais.

Você me disse uma vez que não gosta do rótulo de big-band pra Orkestra Rumpilezz. E Pedro Alexandre Sanches esta semana me disse que tem dificuldade de se permitir conhecer a Rumpilezz justamente pelo rótulo de jazz que ela tem – embora ele saiba que este rótulo seja impreciso, e que a Orkestra esteja mais próximas às vezes do samba-reggae.

Nós temos uma formação próxima da big-band pela tipologia e quantidade de instrumentos; mas nossa disposição no palco, não. As big-bands se arrumam em arena reta, nós fazemos um U; a percussão, muito maior, fica na frente do palco e não atrás. Em termos de arranjo também, nosso trabalho é muito pessoal, fora do convencionalismo das big-bands. O aspecto de crooning que a Rumpilezz tem por exemplo em Taboão ou O Samba Nasceu na Bahia não comparece por exemplo em Floresta Azul ou em Temporal. Quer dizer: a gente pode até ser jazz em orquestra, só que varia do acid-jazz até o crooning de big-band, sem se fixar em nada.

Voltando ao tema da canção: o pagodão bahiano faz canção?

Uma das definições da canção é a poesia musicada.

É, o que cria um conflito com o RAP, já que o RAP é a anti-canção: letra e melodia estão presentes, mas irrevogavelmente irreconciliáveis. Pedro Pondé me apontou isso: que a idéia de que a canção morreu vem da força que o RAP tomou nos anos 90.

O que quer dizer RAP? Rythim And Poetry. Ritmo e Poesia, sem Melodia – quando é a melodia que permite o amálgama entre poesia e ritmo na canção. O pagode pode vir a ter canção, contudo a construção melódica do pagode não contempla tanto a canção. Pedro Pondé também disse que a canção é algo que se pode assoviar – o que dificilmente acontece com o pagode.

Quando eu perguntei sobre o pagode fazer canção, é porque me interessa a diferença entre canção e cantiga (exemplo: cantiga de ninar, cantiga de roda). E penso que o pagodão talvez esteja mais próximo da cantiga do que da canção. Porque a cantiga valoriza mais o ritmo, e menos a letra – aliás, a letra tende a ser pobre, pequena e repetitiva.

O pagodão tem mais a ver com a cantiga do que o a canção. A canção tem uma influência forte da Península Ibérica e do Sul da Europa, uma certa melancolia na melodia, que o pagodão não tem. No candomblé também temos esta influência bem clara: tem as rezas, e as cantigas, as cantigas de inquice. A cantiga é pra rua, pra fora do terreiro, como o que o Filhos de Gandhy fazem.

Por telefone, certo dia você me falou da existência o Ijexá-Canção. Como é isso?

O ijexá pra mim é um genero musical completo, só falta alguém formalizar e bater o martelo sobre isso. Tem ijexá de rua, ijexá-pop, ijexá canção. Se você pega algo da Cor do Som, de Moraes Moreira, é ijexá-pop ou ijexá-rock. Jerônimo faz ijexá-canção. Eu cheguei a conversar com Gilberto Gil sobre isso uma vez: sobre a batida do ijexá. Em Toda Menina Baiana Gil pega a batida do ijexá no violão, mas inverte. Aí eu comecei a ver que certas músicas do cancioneiro brasileiro são surpreendentemente ijexá: Trilhos Urbanos, de Caetano, por exemplo, é ijexá – só que o violão dele toca uma frase que me deixou em dúvida. Depois atinei para Lua & Estrela, e de novo isso: uma batida de ijexá, mas substituindo o grave do agogô pelo agudo e vice-versa. Era uma clave que parecia do ijexá, mas nunca tinha encontrado nos ijexás tradicionais. Aí um dia me deu um “eureka”, e eu percebi: há numa variação dos Filhos de Gandhy, uma clave, que se dividida e simplificada, dá exatamente o ritmo de Trilhos Urbanos, Lua & Estrela, e outras. Aí, pra mim foi myth-buster, bati o martelo: o violão de Caetano é ijexá! Dos ritmos afro-baianos, o que mais ganhou notoriedade e variação foi o ijexá. E um dos grandes compositores compositores de ijexá do Brasil não é baiano: João Donato. Diversas composições dele são ijexá-canção, especialmente as composições em parceria com Gilberto Gil.

Você certa vez me disse que a Orkestra Rumpilezz faz canção, sim. Taboão pra mim é uma canção. Mas ela tem uma peculiaridade que eu vejo e você me nega: de que ela é uma variação sinfônica, involuntária, de Na Baixa Dos Sapateiros, de Ary Barroso.

A música instrumental tem canção em sua forma primitiva, em potência. Não há canção instrumental, e sim música instrumental cancionável. Ildásio Tavares já me disse que quer letrar uma música da Rumpilezz. O que vai sugerir a canção depois de pronta é a linha melódica. Uma música que você assovia, mas não tem letra: ela é canção?

Pra mim é. Se assim não fosse, eu não pensaria que o Retrofoguetes faz canção.

Então a canção já não é a letra musicada; ela é a melodia letrável.

Há um conceito que eu gostaria de roubar do cinema: a idéia de Cinema-Puro, que é o cinema feito apenas de imagem, sem texto, e as imagens se relacionam entre si através das músicas. Contra isso, André Bazin criaria o conceito de Cinema-Impuro. Ele diz que o Cinema Puro só existe como ideal, e o cinema deve almejar este ideal, mas não quer dizer que um cinema que precise do texto pra sustentar suas imagens não seja cinema. Há graus de pureza do Cinema. No limite, o filme paradigmático do Cinema-Puro é Fantasia, de Walt Disney, filme que se sustenta a partir de músicas que já existiam antes, músicas abstratas que Disney transforma, através do desenho, em música figurativa. Como nem todo cinema é Cinema-Puro, nem toda canção é Canção-Pura. A Rumpilezz talvez faça Canção-Impura.

Exatamente. Quando se escuta uma música nossa, como Floresta Azul – e elas sugerem imagens sempre – aconteceu uma coincidência de pessoas de lugares diferentes atribuirem a ela o mesmo tipo de imagem. Eu pergunto: “na música toda?”. Respondem: “não, nesse trecho melódico”. E é sempre o mesmo trecho. Virou canção! Em Alafia, há um momento em que muda o padrão rítmico, que criamos intencionalmente, e ainda assim só depois que tocamos a primeira vez é que percebemos que esta quebra rítmica transmite uma imagem narrativa: o momento em que os ibis (búzios) caem no cestinho do oráculo de Ifá.

Esse trecho me lembra especificamente o cinema de Jean Renoir e do primeiro Glauber Rocha: cinema feito de partes do corpo. Neste trecho eu sempre enxergo apenas as mãos da Yalorixá (Mãe de Santo) e depois só os búzios caindo.

Retrofoguetes faz isso de um modo muito explícito! É totalmente cinematográfico. Eu ouço a música deles, é como se tivesse uma televisão na minha frente com um botão imenso e eu vou mudando de canal e de imagens.

Pensando nisso, das entrevistas deste Cartel, a que estaria mais próximo da Canção-Pura – e eu chego a colocar isso no título da entrevista – foi a com Damm da Formidável Família Musical; e a do Retrofoguetes é onde a Canção é mais Impura: por pouco ela não é canção. Você concorda?

Concordo plenamente! Inclusive na Rumpilezz você não vai encontrar sequer canção-impura, e sim apenas fragmentos de canção. Mas isso você encontra até em Mozart. Pense na Pequena Música Noturna: é uma sonata, mas tem trechos cantáveis – aliás, dá pra fazer até samba enredo com isso [começa a batucar na mesa e a cantarolar a entrada da Pequena Música Noturna].

Dá até pra colocar um breque!

Dá, claro que dá! Se duvidar, vira frevo… ou um samba-reggae.