O fantasma do “cacete-armado”

19/10/2008 at 8:01

Historicamente, nos anos de maior mediocridade Salvador vivia um “culto ao cacete-armado”. Cacete-armado, em bahianês, quer dizer estabelecimento comercial com péssimo serviço (e provavelmente sem alvará de funcionamento), evento tosco e capenga, entre outros congêneres.

Lá, quando eramos Capital Mundial da Mediocridade, dificilmente se achava um lugar realmente bom para ir comer ou beber; quase todos os eventos culturais acabavam por ter defeitos de produção elementares, e atrasos de horas!

A primeira quebra nesta mentalidade, foi, justiça faça-se, a reinauguração do TCA, no auge do carlismo. O TCA sempre começa seus eventos com uma pontualidade britânica; uma vez começado, você pode ser o Papa e ter ingresso de convite para a fila A (o TCA não tem camarote), você não entra. E a bilheteria fecha, impreterivelmente, 15 minutos antes de o espetáculo começar (a não ser a Concha Acústica).

Lá na década de noventa, a princípio houve chiadeira. Mas o hábito se propagou para outros teatros da cidade, como o Vila Velha e o Espaço Xis (da Biblioteca Pública dos Barris).

Depois, com o grupo Sala de Arte de Cinema, a qualidade deu outro salto. Se por um lado o Sala de Arte criou um gosto, um hábito e um público capaz de lotar a estatal Sala Walter da Silveira, por outro sua excelência forçou a melhoria dos serviços da Walter – que, antes, eram pouco mais do que amadores (apesar da excelente seleção de filmes).

Outra peça chave nisso foi o advento do Mercado Cultural Latino-Americano, que depois virou Mercado Cultural Mundial, toda primeira semana de dezembro em Salvador, produzido pela Casa Via Magia.

O cacete-armado se mantinha muito porque, de um lado, não tinhamos opções profissionalizadas a recorrer; de outro, não havia um público grande, afeito ao bom-gosto, e com dinheiro e tempo suficiente para gastar em entretenimento de qualidade.

Um dos fatos do fim dessa mediocridade passa por essa mão dupla: por um lado, Salvador passa por uma das mais rápidas redistribuições de renda do país (embora ainda pífia diante do fato de que é a cidade com maior desigualdade sócio-econômica do planeta!), e com crescimento econômico vigoroso, o que trouxe para o consumo dos bens culturais, digamos, centrais, uma população que antes não consumia. Não é incomum ver no Baile Esquema Novo, gente indo de buzú com mochila nas costas, e pelo tipo físico é fácil deduzir que vêm de bairros periféricos, talvez do subúrbio mesmo.

Outro fator é que uma das vias (talvez aleatorias e assistemática) desta retomada de crescimento foi a profissionalização do metier noturno. Temos hoje uma boate com uma visada vasta (em largura) e de longo alcance do ponto de vista da produção e fomento, a Boomerangue; alguns bares com serviço de excelência, da cozinha a mesa (sem aquele misto de “estou perdido” com “estou com preguiça” dos garçons de 10 anos atrás), por exemplo o Botequim Bartô, no Rio Vermelho, o Botequim São Jorge, todo o complexo Pirâmide, etc. Ou como disseram os produtores do Baile: Salvador virou uma cidade gente-grande o suficiente para sustentar no mesmo dia um show do Retrofoguetes no Boom Bahia, e um Baile Esquema Novo, ambos lotados (porque altamente profissionais), na mesma noite!

Contudo, não quer dizer que o fantasma do cacete-armado já foi embora. Se por um lado temos o luxo irônico do Bar Marquês, há o guetismo mequetrefe do péssimo e algo interesseiro Babalotim. O problema é que boas iniciativas acabam se perdendo por não pegarem esse salto qualitativo em produção e profissionalismo. Ontem tive experiência direta disso: show de Lia de Itamaracá no SESC-Pelourinho. Marcado para as 9h da noite, já era quinze para as dez e o show não começava (aliás: os instrumentos sequer no palco estavam). Fui reclamar e primeiro a produção me informa “o show é às 9h”, como se 9h da noite não fossem já há muito tempo. Depois, justificativas esfarrapadas: “estava havendo outro evento dentro do teatro (interno)” (o show seria na área externa, no anfiteatro). E nenhum pedido de desculpas! Pedi para devolverem meu dinheiro e fui embora, sem ver a Ciranda de Lia…

O problema é fundamentalmente não cumprir o que se marca. Tivessem avisado que o show iria atrasar eu teria chegado mais cedo, ou ido para Biquini Cavadão na Concha, ou ido primeiro a Biquini e depois para Lia – porque se começasse 10h da noite, de fato haveria tempo. Só que isso não ocorre: é um misto de atabalhoamento com informações imprecisas.

Dois grupos bahianos, musicalmente excelentes, estão se perdendo por isso. Um é o Samba das Moças: insistem em não sair do gueto gay, cuja qualidade (salvo em uma radicalidade auto-irônica como a do Marquês) é quase sempre no rés do chão. Já por duas vezes deram barrigada: numa, informaram-me pessoalmente que elas “abririam o primeiro ensaio do Cortejo Afro no Santíssima Bahia“. Nem show do Cortejo lá houve… Outra, na maniçoba delas, aqui divulgada: marcada para as 2h da tarde, às 5h elas sequer estavam prontas para começar a tocar – o público, claro, ostensiva e intragavelmente lésbico (e eu perguntei antes se teria o mínimo de variação não-guetista, já que por exemplo minha mãe queria ir conhecer).

Outro exemplo é a excelente banda de samba-rock dos alunos da FACOM-UFBA, Clube da Malandragem. Muito melhor que seus colegas do Pirigulino Babilake, eles não deslacham, enquanto estes sim. O Clube tem dois sambas de autoria própria, pelo menos: Bon Vivant e Chiclete Com Banana Não Existe Mais (ao seu modo, um hino do pós/anti-axezismo), além de tocarem pérolas esquecidas do samba moderno dos anos 1960, como Elizete Cardoso e Zé Keti. E o vocalista, Thiago Kalu, tem um charme recifense despojado que nem a produção do Pirigulino consegue chegar perto. Mas, os meninos da Malandragem ficam dentro do gueto maconhístico-alcoólico do péssimo World Bar. O World é o equivalente hetero do Bêco dos Artistas, no Garcia. Não atoa fica em frente a não menos ruim (embora arquitetonicamente impecável) Off Club. O World é um porão insalubre e sem ventilação, não obstante tenha uma programação boa.

A vantagem de hoje em dia é que o cacete-armado não é mais a regra; e se o era até bem pouco tempo, as exceções se avolumaram. A saída é não tolerá-los mais. Se se vai a um evento promissor mas mal produzido, saia e vá pra um dos vários lugares da cidade que vai estar funcionando “feito gente grande”. Adoro o Clube da Malandragem, por exemplo, mas recuso-me a frequentar o World Bar. Quando eles quiserem sair do gueto provinciano, e abraçar o mundouniverso barroco-diaspórico, estarei lá, tietando, sempre.