Peixes no Aquário (ou: Nada, sem chegar a canto algum)

26/09/2016 at 12:07

Muito frisson se tem feito em torno do segundo longa metragem de Kleber Mendonça Filho, Aquárius – sobretudo por causa da manifestação do seu elenco no Festival de Cannes contra o impeachment da ex-Presidente Dilma Roussef, de tal forma que o filme virou um ícone do “Fora Temer”, o que inviabiliza sua real discussão (no sentido de que qualquer crítica a ele é automaticamente tomada como de direita, golpista ou neoliberal).

O fato é que o filme é medíocre, embora não seja cinematograficamente ruim – mas que, sobretudo, a discussão urbanística que propõe é simplista, enviesada, e tem um horizonte de classe muitíssimo estreito (muito aquém, inclusive, do seu primeiro longa). O roteiro é envolvente, a direção de atores é bem acima da média, e as soluções tanto de deslocamento de câmera quanto de corte e edição são de alguém que domina a gramática do cinema – como se sabe de Kleber desde seu curta metragem Recife Frio. No entanto, a capitação de som direto é ruim e por vezes inaudível – o que é de se estranhar de alguém cuja estréia no longa-metragem foi O Som Ao Redor, cuja sonoplastia por DJ Dolores é o trunfo do filme.

Mas, do ponto de vista urbanístico, a defesa quixotesca, por parte da personagem Clara, de um prédio de 3 andares e ocupação extensiva do lote, já vazio, contra uma empreiteira verticalizante de condomínio fechado, é lido equivocadamente como se um defendesse o direito à cidade e o outro não. Ou como se apontar isso fosse defender a empreiteira. Trata-se, no entanto, do embate entre duas formas de especulação imobiliária, cada uma a seu modo contra o direito à cidade.

Clara é lida por “esta esquerda que ignora o específico o espaço” (obrigado, Yves Lacoste, Henri Lefebvre & Milton Santos) como uma espécie de Jane Jacobs tropical – sem se dar conta, é claro, de que a Dona de Casa do Village só barrou Robert Moses por seu extremo senso de comunidade, e Clara é uma individualista radical (inclusive indo contra os interesses de seus pares, filhos, etc)!

(Para além do analfabetismo urbanístico, isto revela uma dificuldade de nossa esquerda em formular uma teoria do sujeito em ação social: para ela, ou ele se evanece em movimentos grupais, ou é solitário: tudo é bidimensional, ou horizontal ou vertical, não comparece o terceiro eixo da pragmática e do vernáculo – falta, enfim, o fractal.)

Aquárius se pretende assim um filme que aborde temas similares ao do Movimento Ocupe Estelita – quando tal movimento está muitíssimo além das questões levantadas pelo filme. Por exemplo, ele não se limita a posição contrária à verticalizações, aliás, reconhece a necessidade de verticalização se se quer aumentar a densidade e a diversidade do uso de um determinado bairro. Outra: foca na reocupação do Centro, onde a infraestrutura já existe e é ostensiva e qualificada. Mais ainda, não defende apenas habitação popular: se é contra o Projeto Novo Recife é por ele ser exclusivamente para uma classe social mais abastada – reconhecendo que um bairro, para ser vivo e dinâmico, precisa tanto de ricos quanto de pobres circulando por ele.

É curioso que os movimentos urbanos contra verticalizações usem como principal argumento o sombreamento das praias (Salvador, Recife) ou a perda da frequência tradicional do bairro (Vila Madalena, em São Paulo – o que, vindo da esquerda, nada difere do horror ultra-direitista do Jardim Europa em relação a sua verticalização): estes ou não são problemas principais, ou são inclusive vantagens. A Vila Madalena tem tudo a ganhar se deixar de ser um bairro apenas de hostels e brechós e prever sua verticalização paulatina (prédios de até 6 andares, com escada ao invés de elevadores, etc.); prédios de 20 andares em Piatã são sobretudo problematicos por gerarem moradia onde não há habitação (não são sinônimos: habitação é a vida cotidiana do entorno: a padaria da esquina, a quitanda, etc) e assim acirrar a carrodependência (individual ou coletiva, esta através de linhas de ônibus).

O que nos leva a um ponto vantajoso de Aquárius jamais aproveitado: uma arqueologia dos modos residenciais das metrópoles brasileiras comparativamente a outras metrópoles coetâneas do mundo ocidental, sobretudo da América Latina. O Brasil evitou a moradia em apartamentos mesmo depois de diversas reformas urbanas do século XIX e XX: o hausmannismo de Pereira Passos favelizou o Rio de Janeiro sobretudo por não verticalizar moradias – quando em Buenos Aires se encontram edifícios residenciais multifamiliares de mais de 4 pavimentos com mais de 100 anos…

Aí, com o fim da República Velha, o Brasil passa a ver surgirem arranha-céus residenciais, dependentes de elevadores, mas em geral com relativo luxo, e distantes do Centro (Copacabana, por exemplo) – e por outro lado, conjuntos habitacionais de subúrbios ou vila operárias. Isto deveria nos servir de lição: ser contra a verticalidade não impede que ela aconteça, mas sim garante que ela aconteça tardiamente, do pior modo possível, catastroficamente. De tal forma que os nossos prédios residenciais modernistas, bauhaus e art-decor que eu pessoalmente tanto elogio pela sua relação franca com a rua e a evitação de “ítens de lazer” no térreo (o lazer se faz na rua, no clube, na praça, na praia) são os antepassados dos “condomínios com 50 ítens de lazer” da atualidade – e não, como em outras metrópoles, antagonistas anteriores a eles.

Isto só foi possível, diga-se de passagem, pela abolição da escravatura ter sido tardia: enquanto houve braços negros, a habitação em chácara de arrabalde era viável; quando deixa de existir a a classe trabalhadora se organiza, o deslocamento vertical se faz premente mas só realizável se o braço negro for substituído por uma máquina, e nunca autonomamente por casa sujeito, como Gilberto Freyre já mostrava em Sobrados & Mocambos, especificamente no capítulo “Escravo, animal e máquina”. (E é curioso que Kleber Mendonça Filho tenha abdicado de sua herança freyriana neste filme, quando foi um dos traços positivos do seu anterior).

Ainda, é notável que toda a discussão urbanística de Aquárius gire em torno do destino de um lote privado, e não de seus espaços públicos lindeiros – o que é correlato do fato de que se foca pouco na revisão dos Códigos de Obras das metrópoles brasileiras (a exceção de São Paulo), que exigem vagas de garagem mas que poderiam ao contrário estimular o uso comercial do térreo (o que inclusive torna as moradias mais baratas), enquanto se fala muito em PDDU e LOUOS, que neste quesito não são de mesma importância. Sobre isso, o melhor filme brasileiro deste ano, verdadeiro herdeiro de  Robert Bresson, enfoca bem embora não seja seu tema central: Para Minha Amada Morta, com seus espaços públicos curitibanamente ou vázios ou meramente funcionais.

Aquárius está assim, na prática, muito mais a direita do que gostaria, do que supõe ou do que enxergam seus fãs. Que ele seja o ícone contra “O Golpe Temerário”, mostra como estamos mal parados.