O Abismo do Armário

16/06/2016 at 14:49

Diante do recente massacre na boate Pulse, em Orlando, Flórida, os discursos militantes parecem todos estar arrodeando o buraco: atribui-se, não sem acerto, a causalidade ao islamismo, a homofobia, ao acesso a armas, etc – desde que se ignore que um único sujeito impetrou o ato do qual também ele saiu morto. Esta negação da importância de se levar em conta clinicamente tal personalidade pode ser resumida neste breve post de Facebook:

Não me interessa se Omar era gay, se tinha grindr e era frequentador da boate. Não me interessa quem eram os 33 estupradores da menina do Rio. Não me interessa seus detalhes pessoais. Isso é fazer a pergunta errada, é individualizar uma violência que é sistêmica e não singular.

Há uma série de falsas simetrias em tal comentário. Primeiro, no massacre de Orlando, um único sujeito chacinou 50; no episódio do estupro videografado pela internet no Brasil, a proporção se inverte: 33 atacam apenas uma vítima. Não é mera questão númerica: no episódio daqui a responsabilidade individual está de antemão difusa no efeito manada típico dos fenômenos grupais; na de lá, não.

Tampouco dá na mesma se o assassino em massa da Florida tinha ou não práticas eróticas homossexuais. Se ele transava com rapazes ou buscava isso em espaços reais e virtuais, há uma flagrante contradição que indica um profundo conflito interior que explica o ato; se não, aí sim se pode atribuir um ato premeditado e ideológico, seja por homofobia ou por radicalidade islâmica.

O temor de se reconhecer o fato clínico individual numa situação dessas advém de que, compreendendo o funcionamento mental deste sujeito, este crime se tornaria justificável, ou suas condições históricas e políticas em torno do ato se tornariam de menor relevância. Nada mais falso: nenhum sujeito deixa de ser o extremo de um fractal, e é apenas compreendendo como a História atravessa um determinado corpo de uma determinada pessoa é que se pode tirar toda a consequência deste ocorrido.

Os relatos da frequência de Omar Mateen àquela boate em específico e a alguns aplicativos de pegação revela determinadas peculiaridades. Em geral quem entravou diálogo com ele nestas situações sentiu profundo estranhamento e observou confusão mental. Frequentar boates gays e aplicativos poderia ser parte do planejamento de uma ação premeditada, psicopática ou perversa – mas não parece ter sido o caso. O ato inclusive foi disruptivo e sem sentido, anulando possibilidades de simbolização sequer por grupos terroristas islâmicos que a princípio se arvoraram a assumir a autoria do atentado, mas que logo recuaram ao notar o conflito sexual pessoal do verdadeiro autor.

Ademais, o pai do sujeito dá uma declaração que não coincide com o relato de outros familiares. Segundo este pai, a crise de violência de Omar começou quando ele viu dois rapazes se beijando no centro de Miami ou no aeroporto internacional – ora, certamente ele já viu a mesma cena inúmeras vezes antes; no entanto os familiares relatam uma atitude violenta e altamente repressiva, mesmo invasiva, deste pai para com Omar.

Se por um lado, as militâncias desviam o olhar do pivô central do problema, que poderemos chamar lato senso de “armário” (no sentido de um rechaço interior do desejo homossexual ou da impossibilidade de assimilá-lo a sua auto-imagem), por medo de, diria Nietzsche, olhar no Abismo e se ver nele, por outro é preciso uma cautela. Não basta ser “viado enrustido” de uma religião homofóbica para abruptamente chacinar 50 pessoas – é preciso algo além e sobretudo outra coisa, e no caso parece se tratar de uma psicose.

A rigor não se pode falar de um sujeito psicótico homossexual ou heterossexual – a escolha de objeto é privilégio dos neuróticos.  Mesmo falar de desejo em alguém cuja estrutura psíquica se dá fora e ao avesso do Complexo de Castração é ressalvado. No entanto, este episódio psicótico agudo tomava em causa a homossexualidade (se pela via da erotomania como um paranóico, ou do delírio de transexualização como nos esquizofrênicos, não sabemos), e por isso nos diz algo dela, do armário dos neuróticos, do islamismo e das religiões abraâmicas ou salvacionistas em geral, do acesso a armas, da homofobia, etc. – pelo simples fato de que os psicóticos dizem e agem a céu aberto o que nos neuróticos e nos perversos só é acessível por metáfora e interpretação. E mais do que isso: nenhum sofrimento psíquico é a-histórico, mas as psicoses são verdadeiras antenas parabólicas, recebendo do Outro sem anteparos tudo o que nós, não-loucos, nos negamos a ouvir.

Ao reconhecer isso, chega-se a admitir que Omar Meteen foi a primeira vítima, e a vítima anterior a todas a que ele depois vitimou, da homofobia de que ele contudo foi desde sempre agente: só uma grande auto-agressividade poderia culminar num episódio de tamanha heteroagressividade – e sabemos clinicamente que um crime pode ser executado para aliviar um sentimento de culpa, a culpa sendo causa e não consequência do ato criminoso.

De modo que a chacina da boate Pulse coloca mais um problema de exclusão ao lado do islamismo e da homossexualidade: o transtorno mental grave. Seguramente, se numa sociedade com menos acesso a armas tão letais, o custo do “armário” de Omar não seriam 103 vidas humanas; ou, se seu meio social fosse menos homofóbico, ou menos heteronormativo, idem; ou se a sua religião não fosse o islamismo ou ao menos fosse um islamismo brando. Nada disso impediria necessariamente sua condição de louco (embora estejam evidentemente em causa desta – e por isso um entendimento clínico do ato é o que enoda a consquência e a causalidade socio-política do mesmo), mas tornaria ela menos danosa e mais manejável.

Nem é dizer que ao considerá-lo portador de um sofrimento psíquico incomensurável ele está isento de responsabilidade objetiva. Lembro do caso de Breno de Castro, psiquiatra baiano que assassinou o próprio pai. Auto de Castro, seu pai, tinha uma conduta abusiva como é comum em casos de esquizofrenia paranoide – a última atitude deste foi se oferecer para psicanalisar a ex-mulher do próprio filho, Breno. Breno, depois do ato, se entrega a polícia e passa a se defender da acusação sob alegação de legítima defesa (ele tinha de dar limite a um pai que lhe era intolerável) – embora tenha sido absolvido por inimputabilidade (com o que discordo: mesmo que a justificativa de seu ato seja delirante, ela não é menos legítima nem menos respaldada na realidade).

A diferença do ato de Breno (que também sofria insinuações e reprimendas do pai no sentido de que ele seria homossexual) para o de Omar é que o de Breno, ao focar um único sujeito cujo nome tem valor, faz uma metáfora e ganha sentido. Talvez a outra opção de Omar seria o parricídio, mas ele opta pela chacina anônima incapaz de encadear os significantes sequer como delírio.

A este temor, sobretudo de certa esquerda atual, de reconhecer o armário como um problema em que se enoda o público e o íntimo, caberia falarmos brevemente a Presidente afastada Dilma Vana Roussef. Uma das coisas que explicaria sua falta de proatividade na causa GLBTT seria sua própria homossexualidade negada neuroticamente – a necessidade de apoio de uma bancada evangélica não impediu, por exemplo, avanços nesta área no Governo Lula. Mas, quando se levanta esta lebre, o sujeito é rapidamente taxado de homofóbico. Ora, não tenho qualquer problema de ter o país governado por uma mulher lésbica – mas uma mulher lésbica que usa a nação como custo de não assumir sua própria homossexualidade é, sim, um problema. Nem se trata de dizer que ela precisaria declarar publicamente sua escolha objetal – declarar que se é homossexual pode ser uma forma de estar no armário tanto quanto silencia ser uma forma de, por ambivalência, sair dele. Mas ela não faz nem uma coisa nem outra, e seu silêncio é aquiescente quando não medroso, e produz um sintoma federal!

Mesmo considerando que a questão dela não é a homossexualidade, o encadeamento do seu desejo que a levou ao Planalto é clinicamente problemático: nunca teve interesse de concorrer a cargos eletivos, o faz para histericamente suprir o desejo de um homem, e uma vez nele precisa sistematicamente negar sua feminilidade através de cacoetes hiper-masculinizados. E, quando alvo de um afastamento, se coloca como vítima incapaz de compreender em que ponto foi cúmplice de seu próprio sofrimento.

Definitivamente, qualquer atuação política que ignore a existência da pulsão de morte e do inconsciente está fadada a ser ingênua.