Uma Ontologia do Armário

13/07/2014 at 11:32

(para Rômulo Henrique, ainda e sempre)

Sem óbice de ter sido uma aproximação fundadora da detestável Teoria Queer, a idéia de uma epistemologia do armário não deixa de ser interessante – padece contudo de um problema de princípio lógico: uma epistemologia que não se reporte a uma ontologia terá até mesmo uma fenomenologia parcial e tíbia. Ao investigar que saberes e práticas sustentam e articulam  a encubação, partindo do senso comum da encubação como axioma que dispensa maior reflexão e rigor, se resvala para um mentalismo como, digamos, o de William James ao propor a mente como um fato evidente (quando sabemos que, ao contrário, ela é ou subproduto dos comportamentos, ou uma gramática perfeitamente inconsciente: o pulo do gato de Freud, de Skinner e de Vigotsky foi propor uma ontologia dos fenômenos mentais – a falta do que, justamente, leva a crise da Escola de Berlim e seus herdeiros, o gênio de Piaget incluso).

O armário é tomado, quer pelos GLBTTWZ-KY quer pelos Pregadores da Transexualidade Cirúrgica Universal, como um fato semântico simplório: admitir ou negar, mais ou menos publicamente, uma escolha de objeto sexual desviante. Nada mais falso, contudo: a admissão pública pode ser uma boa forma de não destrancar gaveta alguma, do sujeito abdicar de elaborar-se (“eu não falei descobrir-se”, parafraseando Foucault) na solidão de sua singularidade e entregar tal tarefa a uma instituição, uma máquina de produzir subjetividades empacotadas (e não é demais lembrar que as formas de amor do século XX perdem a pedestrabilidade do século XIX e se motorizam). Na melhor das hipóteses, o armário ou o sair dele é tomado como uma prosódia, um recurso tonal da retórica, uma curiosidade fonética.

Porém, para se fazer uma teoria política dos desejos (em tempo: não sou deleuziano, sou anti-), é preciso estabelecer dela uma economia gramatical. Assim, proponho pensar o armário como uma sintaxe: esvaziado de significação em si, é a articulação entre os significantes que abre ou fecha sentidos, trancando e destrancando frases e orações; e, a partir disso, pensar o armário a partir de outros similares utensílios domésticos (prateleiras) ou nem tanto (cofres bancários): o armário como o lugar onde os valores de uso podem estar a mão, mas também onde os valores de troca se tornam fetichizados e especulativos.

O armário seria assim um sucumbimento do sujeito a uma institucionalidade de suas vontades, a um Outro que lhe guia nos seus afetos alienados, e mais recentemente a uma máquina industrial difusa do capitalismo cognitivo. Daí que se pode falar por exemplo de um “assumir ser gay” (friso o verbo ser e friso a categoria mercadológica gay) como uma forma de estar no armário relativamente a impulsos heterossexuais que habitam aquele sujeito; e por outra, se pode falar de uma “heterossexualidade encubada” mesmo em sujeitos que só tenham relação, e aliás muitas!, com o sexo oposto: a heterossexualidade compulsória, ao obrigar os heterossexuais a serem heterossexuais, cria um double-bind que impede justamente os heterossexuais de exercerem sua heterossexualidade espontaneamente.

É nestas práticas que podemos falar do armário como prateleira e como cofre bancário. Por prateleira, me refiro a uma gíria um tanto antiga que significava uma certa lista de pessoas que se teria a mão para transar, mas com quem não se mantem qualquer laço afetivo ou mesmo de amizade. Não vai aqui nenhum moralismo quanto a esta prática, mas o fato de que na contemporaneidade, e particularmente ligados a meios heteronormativos ou por outro lado fortemente marcados pela ideologia gay, ela chega a níveis especulativos tornando os sujeitos engrenagens de gozo enquanto desertos de desejo – isto é: as trocas de prazer, que deveriam ser a princípio dadivosas, se tornam endividadas através da formação de escassez a partir de um excedente. No capitalismo, sem qualquer surpresa (salvo o fato de ainda ser surpreendente para os incautos), os sujeitos capitalizam sobre seu sexo, e aprendem a amar especulativamente.

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Se a compulsoriedade do armário como local de formação de escassez, especulação e instrumentalização das vontades é opressora, o imperativo do outting, advindo do Feminismo e da Viadagem Institucional (e apenas acirrada pelos Queer, que propõe soluções industriais para problemas político-subjetivos e supõem uma transexualidade universal), não o é menos. Note-se como o “sair do armário” neste sentido vem de culturas saxões protestantes: sua ritualística é similar da confissão pública dos Metodistas e Batistas, uma expiação comunitária da culpa infinita, ao contrário da Confissão Católica, em que de alguma forma a dívida é suspensa e se cria espaços para o sujeito elabore sua singularidade. Mais uma vez, não há diferença sintática entre a homofobia evangélica e desvairismo queer: ambas buscam um apagamento do sujeito numa massa discursiva simplificatória – para azar de ambos, contudo, não existem duas (homo, hetero)sexualidades iguais: cada qual faz o sintoma que lhe cabe.

O que se quer dizer é que o armário pode muito bem ser uma banda de Moebius: ambos os lados são dentro e fora ao mesmo tempo, de modo que sair de um armário é entrar em outro. Se por um lado isso significa que manter a encubação pode ser libertador (toda a liberdade de Sade vem do fato de ele estar preso – isso os meninos-que-fazem em chats de pegação sabem sem nunca ter lido o Marquês) e sair dele pode ser um aprisionamento e uma alienação, não se está aqui pregando o “don’t ask, don’t tell” – apenas reafirmando que o “tell” também é uma coerção do poder. E se estamos tomando Escher como exemplo imagético, nunca é demais lembrar o Belvedere em que o prisioneiro não se dá conta de que já está do lado de fora.

O problema sintático do assumir-se talvez seja de qualquer tentativa moderna (isto é: posterior às revoluções burguesas) de amenizar a opressão pelo capital: um sindicato pode ser tão alienante quanto o próprio trabalho fabril que ele representa e a exploração capitalista que ele pretende (também no sentido de fingir) combater. Isto porque tanto sindicato quanto fábrica são instituições alienantes que escapam ao vernáculo. Ou, para exemplificar melhor: transporte de massa coletivo e automóvel individual são ambos ruins porque formas de alienar o sujeito das forças de sua própria perna – seria necessário buscar uma (homo, hetero)sexualidade desmotorizada, que pedale. Lembrando sempre que se pode fazer uso vernáculo e convivial de uma ferramenta a princípio alienante e sobrehumana: usar ônibus e táxis quando se precisa, mas não porque se é obrigado, é libertador, e ter de pedalar sempre pode ser uma opressão. Trata-se de que as práticas sexuais sejam construídas artesanalmente pelos sujeitos e seus pares, e não entregues como uma benesse de uma Associação, Estado ou Empresa; que mais do que estar fora ou dentro do armário, ele tenha uma porta de vai-e-vem sem trancas, e seja usado em seu valor de uso mais do que o armário usar os sujeitos em seu valor de troca e de acúmulo – uma vez que, a Psicanálise nos ensina, a saída para o paradoxo do desejo não é ser isto ou aquilo, mas sobretudo des-ser.

(É nesse ponto cego da Viadagem Institucional que os gOy/g0y/g-zero-y acertam em cheio: suas práticas homossexuais não precisam sequer configurar um desejo homossexual, e se configuram por um lado elas são mais um caminho do que um bloqueio aos afetos, e por outro não geram a princípio uma identidade. Os gOy só pecam num segundo momento, ao confundir uma negação do imperativo da feminilidade com um imperativo da negação da feminilidade, e ao insistirem no horror ao sexo anal viram tão fiscais do cu alheio quanto a insistência no sexo anal que vem tanto da heteronormatividade quanto da ideologia gay – e aliás, já não é sem tempo saber que feminilização e analidade nada têm a ver com homoerotismo em si, salvo numa fantasia masoquista que flutua por aí entre negada e afirmada, objeto e objetivo sexual são coisas díspares, isso até Kraft-Ebbing já sabia – e ao fim e ao cabo resvalam novamente para a afirmação de uma identidade. Melhor seria que tal movimento não tivesse sequer nome e nem mesmo fosse um movimento).