Crises das Massas Críticas!

28/10/2013 at 10:45

Sintoma, Queixa, Demanda

Segundo o ex-Luddista, as Massas Críticas (Bicicletadas) estão em crise no mundo inteiro, o que parece consternar e admirar; o que não admira nem consterna, mas deveria, é que nada disso é admirável ou digno de consternação: as Massas Críticas, até por sua etimologia mesma, não podem existir fora da crise ou a revelia dela. Ao contrário, as Bicicletadas são por um lado um dos sintomas de uma crise (urbanística, energética, fundiário-fiduciário-financeira), e só se justificam se elas próprias criarem crises (ou, para dizer melhor num psicanalês de botequim, criarem caso – no sentido em que Bicicletadas são, conceitualmente, mais da ordem da queixa histérica do que de um sintoma, digamos, de paralisia: é isso que garante que elas se movam, engendrem laços sociais em série, tenham visibilidade, e ao mesmo tempo um nem-te-ligo pro estado digno da mais Bela das Indiferenças).

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Permutação combinatória e arranjo matricial

Desta forma, gostaria que se considerasse a exclamação no título do presente ensaio em seu sentido matemático: proponho uma permuta, não apenas como troca de um significante por outro (fazer poesia é já empenar o poder da língua), mas como multiplicação infinitesimal de todos os entes da série (que, aliás, não formam conjunto) na análise combinatória. Quero dizer que, se por um lado não há saída para a Crise das Massas Críticas (e tentar achá-las é esvaziá-las de seu caráter massivo, crítico e crísico, às vezes resvalando por uma identificação grupal num luto em torno de um paraíso perdido posto que idealizado), é preciso fazer os termos da operação girarem tão rápido que se acabe não saindo do lugar (como a segunda Alice de Carroll), tal qual o faz seu adversário por excelência que é o Discurso do Capitalismo.

Assim, que se pense não apenas na Crise das Massas Críticas, e sim também na Crítica da Crise das Massas, e não estanque-se aí, chegando mesmo a uma Massa Crítica das Crises, uma Crise Crítica das Massas e até uma Crítica das Massas em Crise numa Massa de Crises Críticas. Só aí os termos da permutação se distribuem numa matriz.

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A importância da ausência e a ausência de importância

Disse, no episódio do motim da Polícia Militar da Bahia, que ao apostar na importância de sua ausência a PM poderia chegar até a ausência de sua importância (isso vale para qualquer greve, aliás). De certa forma, o processo das Bicicletadas (e das políticas cicloviárias em geral) deveriam ser o contrário.

Tomemos o exemplo recente de Salvador, cuja política cicloviária municipal involuntariamente quer tanto ser uma des-política (o que não é uma não-política) que se chama de “Movimento”: ao simplesmente distribuir (bons) bicicletários em vários locais (ruins) e colocar um (pequeno) sistema de bike-share, mas sem ouvir a população usuária e as lideranças de bairro e sem sequer falar da necessidade de segregação física, ela faz mais pela normalização do uso do que imagina. Uma política neoliberal como esta aposta tanto na obsolência do Estado que pode chegar ao Estado da obsolência: lembremos que é sempre pela Indústria do Medo que as formas-estados impõem ciclovias de um lado, e capacete do outro – quando o pulo do gato da cicloviabilidade virá quando justamente nenhum tipo de infra-estrutura especial se fizer necessária.

Esta opção de Grampinho é menos ausência de estado do que estado de ausência, libertando os sujeitos da dependência paternalista do mesmo (ainda que como efeito colateral de uma tentativa populista de subjugar sutilmente).

É um erro das Bicicletadas ser uma demanda ao estado – e ao avesso, o equívoco da política municipal de Salvador talvez devesse ser mimetizado pelas Massas Críticas: apostar na sua ausência de importância para chegar a importância de sua ausência (um sistema cicloviário digno precisa tanto de não ter ciclovias quanto de não ter Bicicletadas, porque ambas são irrelevantes após a normalização do uso). As Massas Críticas seriam assim uma anti-greve (favor não confundir com trabalho voluntário não-remunerado): precisam acontecer sem qualquer narcisismos, nem pretensão de efeito outro que não desaparecer.

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Organismo X Mecanismo (o dilema positivista)

Para isso, no entanto, elas precisam assassinar em parricídio o paradigma positivista de onde vieram. Simplificatoriamente, poderíamos dizer que o positivismo se baseia num tripé: a compreensão mecânica do mundo, o mito da consciência como eficácia hipotética neste mundo, e a conclusão de que, uma vez que esta eficácia da consciência não se realiza, é preciso tutelar as pessoas a partir de uma consciência superiormente racional, seja o Estado, seja o capital, seja a ciência.

Esta praga infecta até mesmo os urbanistas que se dizem jacobsianos: estes na verdade tomam tudo de Jane Jacobs (quadras curtas, múltiplos usos, densidade habitacional, etc.), menos o essencial (o fato de que a cidade é um organismo vivo e sensciente, ainda que seus dispositivos eficazes de auto-gestão sejam inconscientes e involuntário) e menos ainda sua conseqüência radical (o Estado nasce da cidade e a parasita; as cidades precisam se livrar do estado, se querem prosperar – e isso não quer dizer estrategicamente fortalecer as prefeituras ou a municipalidade, embora tal seja importante de um ponto de vista tático). A dona-de-casa canadense radicada em Nova York apostava tudo na economia política do comum – não apenas sem, mas contra o estado (e o capital) – antes mesmo de o conceito existir.

(Este não é um problema apenas dos urbanistas: os movimentos LGBTWZ-KY ao mesmo tempo julgam Freud um conservador, mas nunca o tomam radicalmente. O que a Viadagem Institucional propõe? Que a homossexualidade seja normalizada; Freud foi além e estabeleceu que até mesmo a heterossexualidade é uma patologia a ser explicada. Por outro lado, vêm os Queer com a idéia de que qualquer patologia é acriticamente válida, o que é francamente imbecil).

Ocorre que a medioclasse que em geral incita e forma a Massa Crítica pode cair neste paradigma, e dicotomizar-se: ou foram as Bicicletadas que levaram ao surgimento de uma massa de usuários novos e de políticas públicas, ou ao contrário elas são inúteis para tal. Ora, nem uma coisa nem outra: as Bicicletadas são expedientes imunológicos espontâneos, involuntários e inconscientes que o organismo-cidade produz – são como a tosse numa pneumonia: a doença não se cura por causa da tosse, mas não se cura sem ela; as Massas Críticas precisam se colocar nesta categoria de excentricidade: nem possível, nem necessário, nem suficiente, nem contingente – as mudanças, infra e superestruturais, acontecem apesar delas mas não sem elas, organicamente e não mecanicamente.

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Crítica da crítica & crise das crises

Ainda dentro do encantamento estatizante que as Massas Críticas podem desenvolver, gostaria de tomar dois exemplos c(l)ínicos: a admiração que tais movimentos vêm demonstrando pelo, de um lado, ex-prefeito de Bogotá Henrique Peñalosa, e de outro pela Secretária de Transporte de Nova York Janete Sadic-Kahn.

Peña, programaticamente de esquerda, de fato aumentou o Direito à Cidade dos pobres e incluindo no processo os ricos, gerando igualdade real, material e cotidiana – isto é sempre louvável. O que em geral se esquece é que seu discurso é fóbico e higienista de outra forma: a pregação por capacetes e por espaços delimitados – nem falo apenas de ciclovias segregadas, e sim de uma fetichização dos parques a que Jane Jacobs já denunciava. Ele, ao fim e ao cabo, é um City-Beautiful que pirateia Jacobs (que odiava os Beautiful tanto quanto odiava o rodoviarismo de Le Corbusier – e aliás, mostrava como são as duas faces da mesma moeda), com todo o tutelismo que isso implica. Para Peñalosa os cidadãos, em particular os pobres, são incapazes de se proverem a si mesmos, beiram o retardo mental.

Miss Sadic-Kahn está no exato oposto: aposta tudo na economia da cidade, no uso espontâneo e compartilhado dos espaços – e nisso é mais jacobsiana do que ele. Ocorre que ela faz isso numa gestão neoliberal que é uma continuidade em zigzag do tolerância-zero de Rudy Juliani: se este baixava o porrete nos pobres que ousassem transitar a pé de noite, Bloomberg é mais sutil e simplesmente faz vista grossa para a especulação imobiliária e ignora a moradia popular. Ignora ao ponto de sequer investir nos malditos projects (o equivalente americano dos nossos BNHs, Minha Casa Minha Dívida, e conjuntos habitacionais): Jane Jacobs os odiava, é verdade, mas via que mesmo eles criavam espontaneamente soluções orgânicas – seus corredores intermináveis se tornavam ruas internas, onde não havia comércio surgiam ambulantes, camelôs e feiras de bairro, etc.

Que lição se tira disso para as Bicicletadas? Que a crise da qual são parte e sobre a qual se dobram não é meramente a motorização das cidades – também a motorização é um sintoma de uma crise maior, que envolve por exemplo o Brasil resolver explorar petróleo no pré-sal quando este paradigma energético entra em decadência aparentemente irreversível; envolve a especulação imobiliária que não toca apenas aos apartamentos vazios da Barra (superocupados durante o carnaval), mas empresas internacionais de produção de cidade privada como a McKinsey (que coopta até governos de esquerda, como o de Fernando Haddad).

Estas crises, por sua vez já gigantescas, são parte de uma crise maior: o capitalismo afinal não tem crises, é a crise ele mesmo. Temos assim uma crise de crise de crises (algo como o Prólogos com um Prólogo de Prólogos, de Jorge-Luís Borges), fractalmente – e as Bicicletadas são, assim, apenas a pontinha da couve-flor.

Daí que uma Massa Crítica que queira resolver sua crise não é digna do nome (tanto quanto governos de esquerda que tentaram resolver a crise de 2008 apenas a mantiveram: a Islândia é justamente o anti-exemplo, uma vez que fez a crise da crise); deveria antes abraçar a crise e buscar a metacrise com metacrítica.

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Aposcalipsos & Entreguistas

Uma vez que, na prática, não há estado municipal do mundo que ignore essa última inflorescência da crise, talvez seja hora de deformar a dicotomia e o eixo que originaram as Bicicletadas. Apocalípticos e Integrados são, hoje, duas formas de vestir a mesma política de voragem do estado e do capital sobre o comum – e não mais duas formas de leitura que se tinha antes sobre como libertar o comum do capital e do estado.

(Para além do fato, é claro, de que Apocalípticos X Integrados é uma dicotomia cristã: a ressurreição da carne, católica X a salvação do espírito, protestante; a escatologia teleológica da Sé X a auto-realização pelas obras, calvinista; etc. Talvez tenhamos de mergulhar em outros paradigmas: indígena bororo, em que o mundo já acabou no momento mesmo em que foi criado e não vivemos senão o seu fim e por isso festejemos; ou ainda, budista ou indiano lato senso, em que o mundo não começou nem acaba, e tudo é repetição e eterno retorno até que se repita algo novo, se repita aquilo que nunca ocorreu, se repita a ausência de repetição, etc).

De um lado, ser Integrado hoje é entregar ao estado (e este ao capital) a capacidade de libertar os sujeitos e as subjetividades – a forja de uma liberdade de playground de condomínio fechado, alastrando-se pela cidade em forma de ciclofaixas (de lazer ou não); ou, pior ainda, fazer das Bicicletadas uma forma-estado que libertará por tutela e desalienará alienando. Ser Integrado virou ser Entreguista, inclusive no sentido varguista do termo (Dilma, por exemplo, não faz senão entregar, a título de integrar: o petróleo aos chineses, a moralidade aos evangélicos neopentecostais, etc), dobrando o brizolismo sobre si mesmo.

De outro, não se trata mais de ser Apocalíptico, até por impossibilidade material uma vez que os estados-municipais vão buscar dar conta da massa cicloviária que devém – se trata de devir Aposcalipso, no sentido Doces Bárbaros do termo (para se chegar ao sentido Camisa de Vênus do mesmo conceito).