Sob(re) o ocaso da Libra
Por uma coincidência borgeana, numa metáfora digna dos eddas, no último dia do signo zodiacal de Libra, a presidente Dilma Vana Roussef leiloará o campo petrolífero de mesmo nome – em condições que, para serem caridosas, teriam de ser mais severas: são rigorosamente prostitutas as circunstâncias. E com exército na rua, pra nego não atrapalhar o certame. Fernando Henrique Cardoso privatizando a Vale? – amadores…!
Cabem algumas interpretações, cuja sintaxe gostaria que fosse astrológica (ou seja, uma associação livre de significantes enquanto letra e enquanto ícones):
1) 2014 começa amanhã – em todos os sentidos que se queira. Considerem-se todas as bombas a luz do dia como um Reveillon às avessas, fogos de artifício voltados a terra e não aos céus;
2) o Governo Dilma é um governo de direita: não tornou-se, sempre o foi, nem que seja pelo fato de que não há governos de esquerda senão anti-governos. O fato de ela distribuir renda não a coloca do lado canhoto do diretório: Dwight Eisenhower, Charles de Gaulle e Konrad Adenauer também ocasionaram brutal acesso do protelariado a renda, escolaridade, cidadania e consumo. O que garante que uma distribuição de renda não seja pela destra é ela se dar através de uma limitação da renda das camadas mais altas – como fez, por exemplo, Franklin Roosevelt. Sob Dilma Roussef ninguém se dispôs a votar o Imposto sobre Grandes Fortunas, mas a questão nem é essa – é que as elites econômicas continuaram inflando-se especulativamente. Pode-se dizer que com Lula também, mas eu alegaria: com menos intensidade e menos intensionalidade – e com muito ais abertura a participação popular;
3) Esta senhora, a quem sempre chamei de Geisel de Calçolão, e diante da suma burrice passo a chamar de João-Batista de Sutien (em homenagem ao pangaré, jumento metido a cavalo, que foi nosso último presidente militar), parece conjulgar em si diversos dramas políticos de Shakespeare sem se dar conta disso: é Ofélia quando se sacrifica pelo reino, e agora resvala para a Lady MacBeth refundida a Lord MacBeth, para quem o vaticínio de “tu serás rei” se cumpre num reino que, por isso mesmo, se esfacela;
4) Daí que o PT tenha se tornado um partido de direita (ou deixado de ser de esquerda), vai uma distância. O dilema para o Partido dos Trabalhadores é outra, ainda shakespeareano: diria à estrelhinha vermelha como o Conde de Gloucester ao Rei Lear quando este percebe que desprezou a única filha que o amava desinteressadamente – “Tu te tornaste velho, antes de e sem chegar a virar um sábio”. O PT está gagá, caduco, no sentido em que se diz que um contrato, ou um concurso público, caducou;
5) Voltando a nota 1, e só para manter esse clima elizabetano (lembremos que a Inglaterra também foi governada por uma rainha virgem, masculinizada e semi-lésbica): a sabedoria de Próspero, e o Próspero da sabedoria, é abdicar do poder no momento exato que se o tem pleno, e de um modo tão radical que ninguém mais depois possa se assenhorar dos outros, do ar (Ariel) e da terra (Calibã). Não me admira que Tolkien tenha se usado deste entrecho em seu O Senhor dos Anéis, monumento literário incontornável, tanto na figura de Gandalf (em tudo similar ao duque deposto de Milão em A Tempestade) quanto na senda de destruir o anel (e ter o poder de abdicar radicalmente de qualquer poder – em Tolkien, pós-colonial antes de virar moda, poder e mal são uma só e mesma coisa: onde há mal, há poder, onde há poder há mal. E neste aspecto a saga da Terra Média ao fim da Terceira Era é novela de cavalaria ao reverso, virada ao contrário: não heróis indo buscar o Graal e o poder, inclusive econômico e cosmopolita, sobre os outros povos; mas gente comum e mesmo provinciana atravessando um continente para eliminar o fetiche e o signo da dominação – um formidável elogio do comum!);
6) Que o PT não tenha se tornado necessariamente de direita porque sua presidente (com E porque Cecília Meirelles era poeta e não poetisa) o seja, não quer dizer que isso para ele seja neutro. Diria que se abrem canais espirituais para contaminações de egunguns. Jacques Wagner, por exemplo, que talvez tenha conduzido o governo mais de esquerda e com mais participação popular da história do partido, hoje está incorporado com o encosto obsessor de ACM ele mesmo;
7) O nome do filme é Brazil, de Terry Gillian.
[…] cidades – também a motorização é um sintoma de uma crise maior, que envolve por exemplo o Brasil resolver explorar petróleo no pré-sal quando este paradigma energético entra em decadênci…; envolve a especulação imobiliária que não toca apenas aos apartamentos vazios da Barra […]
Deveras, não há mesmo governo de esquerda, mas em certos momentos há esquerda no governo — e no brasileiro há cada vez menos. Dilma é, cada vez mais, um caso de livro da literatura antropolítica: transformada, por um líder popularíssimo, em protagonista de um partido para o qual ela (ainda) é quase intrusa, acabou eleita por apoiadores que ela desgosta para realizar um programa em relação ao qual, convenhamos, ela gastou os últimos três anos para se livrar. Se em 2010 esperava-se que Dilma — se não por convicção, pelo menos por prudência — manteria inercialmente os anos Lula, a coisa foi por água abaixo com um insano esforço hercúleo em mudar tudo, apagar o legado em relação ao qual ela mantém aparente fidelidade. E, convenhamos, onde Dilma mexeu, as coisas deram errado: política de relações exteriores, meio-ambiente, articulação política…Dilma tem a base que não quer, o projeto que não quer. E o leilão de Libra é o ápice desse processo. A rigor, é um esvaziamento que conduz a uma anomia insana, mas não louca, que toma as ruas. O próprio PSDB e a direita tornam-se desnecessários, enquanto o PT vê-se numa situação surreal. 2014 nos aguarda.
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