Brevidades

28/07/2013 at 11:22

Para o Sertanília

Há um quitute, um biscoito caseiro ou bolinho (em francês dir-se-ia patissier), feito no Planalto Conquistence e em outras áreas do Sertão Histórico, que leva este nome: brevidade. Trata-se de um colchão-de-freira, lusitano, adaptado aos trópicos por fortes substituições indígenas: polvilho de mandioca ou tapioca ao invés da farinha de trigo peneirada; mel de furo ao invés de açúcar de confeiteiro; os ovos ainda estão lá, idem a manteiga (o próprio colchão-do-céu é moçárabe – variante óbvia do falafel, assim como o travesseiro-de-cintra é um beléwa que usa fios d’ovos ao invés de amêndoas. Nisso, é um primo muslim do bolo-de-rolo – não confundir com rocambole! –  recifense, cuja massa ázima é claramente judaica e Gilberto Freyre já mostrara ser uma variante do lençol-de-noiva). Suas características: durar tanto quanto um pão-de-ló, mas ser de confecção ágil.

Por acidente fui parar numa feira de economia solidária e agricultura familiar (das políticas mais interessantes e bem-sucedidas – e menos divulgadas – do Governo Jacques Wagner, tendo como ponto alto a Fábrica de Chocolate de Ibicaraí) na Praça Municipal de Salvador. Num estande de Livramento (não sei se de Nossa Senhora ou de Brumado), tive de pedir para a mocinha que me atendia repetir mais de uma vez o nome da iguaria, tão incrédulo estava eu: “Brevidades!”.

Aquele termo, num sotaque sertanejo do sudoeste, quase mineiro do Jequitinhonha, era há muito conhecido meu e estava há muito perdido na minha recôndita memória, não por tê-lo esquecido, e sim por jamais tê-lo tomado como nome de uma coisa, senão como metáfora. Rapidamente me vieram versos inteiros da canção O Pedido, passagem profética em O Auto Da Caatingueira, de Elomar:

            “Traz pra mim umas brevidades

que eu quero matar saudades

faz tempo que fui na feira”

Sempre compreendi “brevidades” aí como miudezas – uma forma de a personagem, vaticinada a jamais sair de casa, reunir num coletivo bric-a-brac todo aquele cabedal de ninharias que constituíam os estilhaços de mundo não-doméstico a que tinha acesso e cuja compra suplicava ao vaqueiro passante: água da fulô que cheira, um novelo, rouge & carmim, um pacote de miss, recados do cego cantador de adro de igrejinha matriz, notícias do menino-lobisomem do areal do riacho da aldeia, dois metros de xita, trancelim, etc.

Nada disso: brevidade é algo que se come, com café e queijo de coalho ou quiçá canastra; é algo que se assa e depois se transporta em lombo de mula ou jegue; era assim um pedaço profundo no tempo e no espaço daquilo que constitui a Metrópole Reconvexa só porque ela o nega: o sertão – ibérico, luso, mourisco, errante, caeté-tapuia. Toda uma realidade íntima se abria para mim naquele instante, uma verdade de copa e cozinha, para se servir à mesa na merenda dos moleques e na prosa de compadres, no bastidor de bordados das viúvas e nos enxovais de crisma das meninas-moças.

Olhos brilhando, tive de pedir para experimentar como menino que pede esmola para comprar balas e queimados; e comi sofregamente, sem nem agradecer, como se fora um alimento sagrado roubado, uma hóstia (ou uma taboca que à guisa de brinquedo fazemos de hóstia), um beijinho-de-coco que se pegou da mesa de aniversário antes de se bater os parabéns-a-você, ou por outra um naco de rapadura tomado da bacia de sete-meninos num carurú de Cosme&Damião.

Naquele sabor doce excessivamente potente e rápido, seguido do amargo e do azedinho do polvilho, sempre seco como farinha-de-guerra e com odor perene de canela-em-pau, estava toda uma infância não vivida por distância de décadas ou léguas. Além de que, doravante, esta coincidência de eterno e efemêro (que, segundo Dr. Walter da Silveira, é a coisa mesma que chamamos cinema) ganhava para mim sabor, cor, cheiro, textura, história, acento linguístico. De certa forma, brevidades são a contra-parte de outro biscoito popular bahiano: paciências (que, quando feitos muito finos, sequilhos, podem ser chamados de belgas ou, acrescidos de baunilha, fidalgos – perdendo assim seu caráter de feira, aristocratizando-se).

Podia então compreender que a Cassandra pós-colonial criada pelo compositor da Fazenda das Barrancas queria matar suas saudades ingerindo e degustando pedaços apetitosos deste mundo relicário em fuga, evanescente em poucos segundos de séculos: brevidades. Sentido que a partir de então me pareceu óbvio, uma vez que tais versos sobre brevidades estão ao fim da estrofe em que ela fala de comidas de feira em geral: da barraca da mulher benzeira onde se almoça paca, panelada, frigideira – e sobre a qual se diz uma loa, gabando a bóia boa: das casas da cidade, aquela era a primeira…!

 Brevidades ficaram sendo minhas madeleines tardias; O Pedido, minha canção de Siruiz; o tocador de Vitória da Conquista, meu Vinteuil.