Dos Sem-Prefeito ao Semi-Prefeito

24/11/2012 at 17:54

Aforismos a partir das eleições municipais de Salvador

Se este ano, diferentemente de 2008, eu não me manifestei sobre o pleito municipal em Salvador, isto se deve ao fato de que em 2012 a campanha pelo Palácio Tomé de Souza discutiu tudo, menos cidade – enquanto 2008, da direita (Antonio Imbassahy) à esquerda (Walter Pinheiro) não se discutiu senão cidade. Mesmo o PSOL em 2008, na figura de Hilton Coelho, falava o tempo inteiro em IPTU-progressivo e em PDDU; este ano, se contentou em macaquear o neoliberalismo e falar em “choque de gestão”.

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Este ano, o grande derrotado nas eleições da capital bahiana foi o governador do estado, Jacques Wagner. E não digo isso porque o candidato de seu partido, Nelson Pelegrino, perdeu (ele é uma espécie de Serra do PT: é bom porque perde) – antes, pelo fato de que o Galego não teve nenhum candidato a prefeito da capital em 2012; enquanto em 2008, ele teve três!

Quatro anos atrás, o PSDB estava ainda na base de Jacques Wagner; tanto que o primeiro candidato de sua base a ser lançado, evento no qual compareceu, foi Antonio Imbassahy. Contava ele ainda com Walter Pinheiro e o próprio João Henrique.

É verdade que João Henrique já era então a última opção entre os três, e já havia se tornado no cavalo-de-tróia dos Irmãos Vieira Lima. Ocorre que se em 2008 Wagner perdeu pra Geddel através de um candidato que julgava ser também seu, em 2012 Wagner perde para si mesmo! (Em que pese sua tentativa, há 2 anos atrás, de dissuadir o PSDB bahiano da sandice mediocrizante que era se contentar com o candidato a vice na chapa de Paulo Souto). Judeu, que sempre disse não crer em sorte mas em senso de oportunidade, e nunca se enganar com a perecibilidade e transitoriedade do poder, caiu no mito da onipotência – e não sairia vitorioso dessa nem mesmo se Nelson Pelegrino tivesse sido eleito.

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Também não me venham falar em “volta do Carlismo”. Grampinho, o novo (semi-)prefeito, faz de um tudo para esconder qualquer herança carlista, até mesmo o nome do avô que ele também porta, desde 2008.

A campanha de ACM, O Neto (apud Hilton 50, “na capital da resistência”), esse ano sai vitoriosa também por ter tido a frente alguém que, sozinho, forçou uma ruptura interna no carlismo – fratura sem a qual o próprio carlismo não deixaria de existir. Me refiro ao ex-governador e ex-senador Paulo Souto.

A evitação da truculência, declarações de apreço aos servidores públicos, rigor fiscal, e discretas mas eficientes tentativas diplomáticas de diálogo – tudo isso que marcou o novo prefeito de Salvador desde o final de sua campanha, em nada soa a Toinho Malvadeza; e em tudo lembra o Paulo Souto que, derrotado de surpresa por Jacques Wagner, ordenou a mais democrática transição política do estado da Bahia em 40 anos!

De certa forma, a cobra mordeu o rabo: se o Carlismo foi uma mimesis do Juracizismo que depois destruiu esse; e se o Juracisismo, menos do que um anti-Mangabeirismo foi um Mangabeirismo guinado a direita, heis que demos uma volta completa.

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Não obstante a falta de opções no pleito deste ano ser causada pela inépcia partidária (até porque em 2008 não foi assim), os caminhos tomados nessas eleições são fruto do desejo das pessoas que compõem esta cidade.

Não me venha a medioclasse que votou no PFL a título de ser contra João Henrique me dizer que não sabia que João Henrique apoiava Grampinho subúrbio a dentro e a fora; a mesma medioclasse que passou o primeiro turno de 2008 querendo o pescoço de João Henrique (e o seu primeiro mandato nem foi tão ruim quanto o segundo…), para no segundo turno votar justamente nele por medo de Walter Pinheiro.

A maior parte da população de Salvador escolheu o populismo e uma memória do lanho e da tirania; mais: escolheu justo aquilo que piora Salvador há décadas: que a fez perder sua função de capital, com o CAB (Centro Administrativo da Bahia); que espraiou as avenidas de vale ao norte do Rio Vermelho, desvirtuando suas funções; que, com especulação imobiliária, fez da Pituba aos Le Parcs.

Não se trata de uma urbanofobia ou uma des-urbanofilia ativa e intencional: não é que a maior parte da população saiba o que esta cidade já foi (na Avant-Gard), ou poderia ser (vide o Rio de Janeiro) ou deveria ser (New Orleans, San Francisco), e no entanto não queira isso. Não é de ódio que se trata, mas de outra paixão mais fundamental: as gentes em geral ignoram o que seja uma metrópole – não apenas não sabem, como não querem saber. Quiçá tenham raiva de quem sabe. E não se pode desejar (ou rejeitar) o que se desconhece, quanto mais o que se ignora.

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Nisso, Salvador pode ser, por hipérbole (é sua sina), um exemplo do resto do país: de tudo que a classe sem nome que ascende selvática foi autorizada a desejar, no cardápio pornográfico e cúpido deste desejo ninguém lhes ofereceu cidades. Não podem os pobres, ex-pobres, Classe C, escolher entre automóveis ou cidades; não porque eles não saibam que automóveis destroem cidades (embora provavelmente não saibam), e sim porque eles não têm nenhum motivo para desejarem cidades. Não vêem eles o que há de prazer, e de interesse, na padaria da esquina, na paquera todo dia indo e voltando pro trabalho, no sair de noite a pé e voltar a pé para quase qualquer festa.

Mais do que fazer com que o Consumitariado deseje bicicleta e pedestrabilidade ao invés de carros, é preciso levá-los a desejar habitação (e habitat) em lugar da mera moradia (na putaquepariu, gerando dívida com o sonho da casa própria). Porque sabemos desde Haussman que o problema do morar em metrópoles não se resolve com a posse de imóveis, mas com a queda do preço dos aluguéis via regulação estatal do mercado (quer forçando ocupação de imóveis vazios, quer concorrendo com o setor privado não na produção de imóveis, mas no acesso a eles); e desde Henri Lefebvre que o aumento do direito a moradia não apenas não resolve a habitação, como piora o problema da habitação. Habitar não é, afinal, residir ou morar; mais do que um teto, é preciso a farmácia na rua, o vizinho a que se pede açúcar quando falta, e o vendedor de picolé ao fim da tarde, trabalhadores enchendo restaurantes e botecos numa esquina, e na outra a molecada indo e voltando da escola (como miticamente já descreveu Jane Jacobs), e cinema de bairro, para que haja habitação e não mera moradia.

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De certa forma, o desprezo brasileiro pelo Direito à Cidade tem raízes profundas na escravidão negra; não meramente no sentido da prioridade da casa diante da rua, do privado sobre o público, do patriarcalismo patrimonialista e da cordialidade buarqueana; nem meramente porque, havendo escravos ainda no século XIX, tardou-se o desenvolvimento de tecnologias urbanas (pra que esgoto, se o negrinho pode despejar minha bosta ao mar? pra que bonde, se ando de liteira?)

Falo de marcas profundas, e mentais, não apenas nos herdeiros dos ex-senhores, mas nos herdeiros dos escravos. Se no fim da Idade Média o surgimento das cidades burguesas eram um vetor de libertação dos servos, no Brasil a modernização de suas metrópoles no Segundo Reinado e na República não só não representou a libertação dos escravos (embora tenha surgido com ela, e em parte por conta dela), como representou antes seu abandono à própria sorte – meio como Josué Montello mostra, ainda que de modo meio caricatural, no seu romance Tambores De São Luís (e neste caso a metrópole maranhense, que foi sem chegar a ter sido, é apenas uma sinedoque do que no resto do país ocorreu mais ou menos eufemicamente).

O direito à cidade é sobretudo o direito de andar a pé – o direito à autonomia. Talvez os pobres e ex-pobres no Brasil não achem mais interessante serem senhores de sua própria vida em transito, e prefiram exigir do estado mais ônibus, mais avenidas e mais metrô, e não mais densidade habitacional, diversidade comercial e vida pedestre intensa – e com razão, já que autonomização por aqui quase sempre soou como abandono à própria sorte (sem no entanto retirar o caráter tutelar e punitivo do Estado), a única abolição da escravatura (ou do servilismo) que não se deu concomitantemente com uma reforma agrária.

De novo, não se trata de culpar os pobres e ex-pobres: não é de culpa que se trata, mas de cupidez. Não é puni-los moralmente por desejarem algo que não os autonomiza e piora a vida de todos; mas fazê-los desejar outra coisa além (e talvez contrária) ao que já têm desejado. O que, claro, é muito mais difícil – em particular para uma esquerda que tem horror a persuasão e é ela própria tutelar e punitivista.