Artefatos Vitorianos para uso das Cidades – V

05/10/2012 at 13:14

Pic-nics, sanduíches, queimados e pê-éfes

O surgimento da metrópole haussmanniana muda os hábitos alimentares de seus habitantes. Se o Barão queria livrar Paris de seu aspecto imundo de feira medieval, por outro lado a invenção da esquina (e do café de esquina, da padaria de esquina, da mercearia de esquina, da quitanda) torna ubíquo justamente os hábitos de feira: as compras de víveres podem ser diárias, a presença de arte na rua se torna mais discreta porém mais constante, e o hábito de comer fora de casa (inclusive em vendedores ambulantes), comum apenas nso feriados (“dias de feira”), passam a ocorrer com frequência em dias úteis. O prefeito de Paris sob a Restauração de Napoleão, se ao inventar o boulevard colateralmente inventou a favela, o subúrbio e o cortiço, também inventou o camelô.

Por outro lado, a tecnologia logística do comer na rua não se deve apenas aos hábitos plebeus das feiras-livres, senão também e como sempre da aristocracia rococó do despotismo-esclarecido mezzo-Iluminista de pouco antes das Revoluções Burguesas. Aquilo que o proletariado e a burguesia do auge do capitalismo farão em suas refeições diárias advém das soluções lúdicas da nobreza pré-vitoriana. Como a bicicleta, a sombrinha e o amor, o sanduíche e o pic-nic foram brinquedos palacianos.

Em dias de início de verão, podiam os nobres planejar refeições em seus enormes jardins ou no bosque ou floresta mais próximos; hábito que, com o surgimento de parques públicos, fontes e praças como concebidas a partir da democratização da cidade burguesa, pode ser realizado por qualquer classe social, a um custo bem mais baixo. Não é outra coisa o churrasco na lage e a farofada na praia, que a negrada de hoje em dia exerce; mas também não é diferente da refeição feita, em dia útil, a sombra de uma árvore no intervalo do trabalho, onde depois se deita para uma sesta, como os pedreiros e garis de hoje tanto fazem em qualquer metrópole terceiro-mundista, e a medioclasse europeia idem.

Contudo, também era preciso desenvolver a habilidade de comer consistentemente enquanto se desloca, se anda a pé, e daí o advento do sanduíche. Criado pelo Conde de mesmo nome, para que pudesse segurar as cartas de bridge numa mão enquanto se alimentava com a outra, tal tecnologia se tornou proletaria e ganhou matizes locais bastante pós-coloniais: os temakis japoneses são uma simplificação grosseira dos sushis, podendo ser comidos de mão; é desta época os po’boys da Lousiana e seu mar de camarões num pão ciabata, culinária aliás tipicamente portuária de uma cidade caribenha de platantions escravocratas; na Bahia, acarajés e abarás. Vale frisar que, como no Brasil a urbanização se deu paralelamente ao processo de abolição da escravidão (ambas como efeito imediato da vitória na Guerra do Paraguai), os quitutes aparecem nas grandes cidades do país junto com os bondes e com o sumiço paulatino das liteiras e carros de arruar (e não acidentalmente, é daí que os cantos de trabalho do eito de lavoura ganham as cidades como canto de pregoeiro, também chamados também sem acaso de corta-jacas – raiz profunda do samba urbano que vai dar em Caimmy, Dongo, João da Bahiana e Xisto Bahia). Creio que isto se deu em outras cidades do Atlântico Negro – por exemplo, se a guloseima cajun afrancesada conhecida como beignet surge na Nova Orleãs da arquitetura em ferro-fundido, é também desta época o gospel, os jazz funerals, o sapateado (que requer cachotes de palet de madeira descartados) – não por acaso, um clássico do cancioneiro bayiou faz referência a um convescote entre os ciprestes do Mississipi, e seu título é uma comida típica: Jambalaya.

Do sanduíche (cuja forma é art-nouveau inclusive na imitação da praticidade de certas formas de frutas, a que não se precisa retirar a casca para comer, como as maçãs, ou cuja casca se retira com os dedos, como a tangerina), a alimentação enquanto se caminha pôde sofrer outras modificações. Primeiro, ser líquida: o tucupi com tacacá e jambú, paraense, e também os mingaus de tapioca e mungunzás em carrinhos de qualquer capital do Nordeste franco (Salvador inclusa). Outra, diminuição de tamanho com aumento de potencial calórico: doces, balas, chicletes, jujubas, queimados enfim – com a crise do preço do açúcar, e a necessidade de manter o operário em trabalho ininterrupto, surgem estes suprimentos externos de glicose que, além do mais, ajudam a reduzir o sono.

De mais a mais, somente áreas urbanas densas, intensas e diversas podem gerar alimentação realmente barata – é daí que surgem os pratos-feitos de centro de cidade a preços escandalosamente baixos, os bandejões self-service (cuja similitude com os balcões dos banquetes de garden-party não passam despercebido), e outras apropriações de dispositivos da elite pela estética-da-fome devir-pobre do proletariado urbano.