Uma Economia Política do Ciúme

25/07/2012 at 11:55

Depois de ter investigado o componente superestrutural do amor (a ideologia burguesa mas também a anti-burguesa que vê erradamente na monogamia um problema, e não um efeito colateral natural do enamoramento) e suas condições logísticas e tecnológicas (uma das hélices da infraestrutura), chegamos agora a sua condição digamos de financiamento (que é infraestrutural no sentido de crédito e portanto de dívida).

Lembramos de início que Proust chega a radicalmente dizer que o amor advém do ciúme (só se ama na eminência da perda), e não o contrário como quer o senso comum. Freud, por outro lado, fez a clássica divisão entre o ciúme normal (cuja função é proteger o objeto amado e garantir a duração mais longa do desejo), o ciúme neurótico (projetivo e fruto de uma fantasia) e o ciúme paranóico (delirante, mas que pode acontecer também em drogaditos, mormente alcoolistas, ainda que sem estrutura de personalidade psicótica). É aliás o fato de que o ciúme paranóico não é previlégio dos transtornos mentais maiores que garante uma porta de vai-e-vem entre este, mais grave, e os anteriores (diferente por exemplo da relação entre os delírios de emasculação, dos esquizofrênicos, e a fantasia de castração, dos obsessivos: entre uma cousa e oitra há um hiato).

Assim, se pode dizer, cruzando Freud e Proust, que uma dose baixa e consciente de ciúme é o fiador da relação amorosa: embora pareça duvidar da lealdade do objeto amado, só o faz a título de encenação de sua confiança, e não lhe pede mais juras ao passo que estabelece condições claras de contrato.

Já o ciúme patológico dos neuróticos funciona como um sistema bancário cujas condições de financiamento são elevadas: se requer uma série de comprovações documentais sem fim, e se entra numa escalada de juros na rolagem da dívida ao passo que pede juras de amor. O ciumento doentio se torna, assim, um especulador fundiário – tanto mais porque, nos momentos em que não tem ciúmes, não dedica ele amor (produtivo) ao objeto amado, mas sim um desinteresse tão grande que o faz terra devoluta (como bem mostra Proust no seu volume A Prisioneira).

De certa forma, o ciumento grave representa a virada de posição de que fala Marx: da burguesia como força de mudança para a burguesia como força acumulativa. Interessado primeiro em amar, a medida que o ciume se torna maior do que o amor que ele deveria proteger, o ciumento passa a ser mais interessado em acumular capital amoroso do que em vivê-lo e gastá-lo. Ao produzir abundância, administra-a através da formação de escassez; ao empréstimo fiduciário, passa a ter mais lucro pela poça de dívida, dúvida e juros que cria do que pelo que este empréstimo, se de maior liquidez, seria capaz de produzir em objetos, obras e mercadorias.

Neste sentido, e se se pensa que a banqueirização da vida é ao mesmo tempo o ápice do capitalismo e sua sabotagem (porque a produção e consumo ficam menos interessantes do que o próprio mecanismo da dívida), o ciúme é o ponto alto do amor, no sentido que o ponto alto de uma tragédia é seu fim trágico – se ao ciúme protetivo cabia garantir uma duração maior e mais estável do relacionamento, o ciúme projetivo acelera sua degradação e instabilidade.

Não se pense com isso que a solução para o ciúme doentio é sua inversão, um liberou-geral de “relações abertas”. Pensar isso é como supor que a contração de dívida sem críterio é menos bancária do que o juros aviltante – e quem assistiu a crise de sub-prime de 2008 sabe que é justo o contrário: crédito fácil demais e juros altos demais são duas faces da mesma moeda, uma só e mesma coisa. Não é por inversão de uma gramática que se sai dela, e sim por subversão e mudança de eixo.

É dizer que se a moral sexual burguesa é uma teologia política, a dita teoria queer, com sua imposição normativa da anormalidade, não o é menos: ambas mantém o sujeito alienado a uma crença salvacionista que nada tem a ver com a realidade material da vida – se Freud elogia Marx por este ter partido de “fatos reais verificáveis”, Marx elogiaria Freud pelo mesmo motivo, mas não os rebentos da “revolução sexual”, que ou não existiu ou foi um retrocesso.

Com isso, chegamos a um ponto sintático fundamental: se a capacidade de financiamento é, por um lado, infraestrutural, por outro ela é da ordem da mentalidade – a moeda é uma representação de deus, dívida e culpa são o mesmo significante como nos lembra Hugo Albuquerque. E nisso o ciumento patológico se assemelha ao mesmo tempo com um agiota e com um inquisidor do Santo Ofício: por fora do estado através de ameaças, ou na forma mais estatal e não menos ameaçadora, o ciume precisa confirmar a verdade que produziu; no entanto, sob tortura, o objeto amado não pode sequer mentir; e como a verdade raramente é verossemelhante (ela tem estrutura de ficção), o ciumento escolhe acreditar na que ele próprio criou – contra todas as evidências materiais. Não muito diferente dos evangélicos que negam a evolução das espécies, os queer negam igualmente quando rejeitam abraçar todas as pesquisas realizadas com os chimpanzés bonobos (e que provam, muito mais do que suas pseudo-arqueologias, como a sexualidade nos primatas superiores é plural e não serve para reprodução, senão para laços sociais).

Nesse sentido, se o ciume normal é a contração voluntária de dívidas e promessas entre dois enamorados, o ciume patológico é a imposição de dívida ontológica e teleológica ao objeto amado a partir da dúvida escatológica (a salvação já veio, mas não virá; será para todos, mas nem todos) do sujeito, já não mais enamorado, mas meramente ciumento.