Traduções, reduções, abduções

04/07/2012 at 14:48

É sabido que dos exercícios fundamentais para se dominar a forma do verso é traduzir poemas contemporâneos ou da tradição. São lendárias as diversas traduções d’O Corvo, de Poe, por cada um dos heterônimos de Fernando Pessoa – a exceção de Alberto Caeiro, porém incluso o ortônimo ele-mesmo; idem para as de Machado de Assis, e vale lembrar que em seu livro de poemas eróticos Espumas Fluctuantes, Castro Alves inclui traduções suas para Byron.

De outro lado, já sabem que venho publicando aqui produção ficcional, mormente em verso, a medida que ganham concursos literários e perdem, assim, o ineditismo. É hora pois de mostrar meus exercícios íntimos, a cozinha onde se confita o poema: minhas traduções.

Como se sabe, meu poeta preferido para tais treinos é e.e.cummings – não apenas pelo seu gênio particular, pelo seu nomadismo em pleno crack da bolsa de 1929, por seu aristocratismo negro, e por sua opção por uma poesia que sendo arquitetônica não é nem art-nouveau nem modernista-funcional, mas bauhaus, feita de destroços e ruínas. É principalmente pelas dificuldades particulares que ele impõe através de sua técnica, mesmo quando faz prosa (nos excelentes prefácios a É 5 e Novos Poemas) ou soneto (forma que não domino, nem pretendo, e não admiro muito – mas cummings dominava e nele gosto muito).

Não vou de cummings desta vez, contudo. Optei por uma poeta-de-poetas, admirada tanto por João Cabral de Melo Neto (apesar de ela ser de direita, ufanista e ligada ao Partido Republicano yankee) que a usa duas vezes como epigrafe de livros seus (uma está no poema abaixo, outra é de seu O Herói, “onde houver afinidade pessoal, iremos / lá onde a terra é acre”, que aparece no cabralino tardio Agrestes). Refiro-me, claro, a Marianne Moore.

Com isso aproveito também para avisar que, como voltei a ter apenas um vículo de emprego com o estado desde janeiro (nos 4 anos anteriores, período em que este blog surgiu, tive dois), volto este ano a dar aulas particulares, quer de reforço escolar nas disciplinas de Redação, Literatura e História, quer de produção textual – além de fazer traduções não-juramentadas inglês-português e português-inglês e revisão gramatical de trabalhos acadêmicos. São atividades que realizo remuneradamente desde que me entendo como intelectual – antes da maioridade legal, por exemplo, e que só deixei de exercer nos últimos quatro anos – apesar da insistência de novos e antigos alunos, para os quais infelizmente não tinha tempo. Agora volto a ter, e o telefone para contato a quem interessar é (71) 8841-2257.

Enfim, o poema chamado Poesia (Poetry) – logo em seguida, sua versão no idioma original.

. Poesia 
Eu, também, desgosto: há coisas que são importantes para-além de toda 
            essa firula.
Lendo-a, contudo, com um perfeito desprezo por ela, descobre-se nela
afinal, um lugar para o genuíno.
            Mãos que podem alcançar, olhos
            que podem dilatar, cabelos que podem arrepiar
                        se necessário, essas coisas são importantes não porque
 
uma retumbante interpretação pode ser posta sobre elas mas porque
            elas são
úteis. Quando elas tornam-se tão derivativas assim para tornarem-se 
            ininteligíveis,
a mesma coisa pode ser dita para todos nós, que nós
            não admiramos aquilo 
            que não podemos entender: o morcego
                        pendurado ponta-cabeça ou em busca de algo para
 
comer, elefantes empurrando, um cavalo selvagem a galope, um incansável
            lobo sob
uma árvore, o imóvel crítico fremendo sua pele como um cavalo
            que sente uma mosca, o torcedor de fute-
bol, o estatístico –
            nem é válido
                        discriminar aqueles “documentos de negócios e livros 
 
didáticos”; todos estes fenômenos são importantes. Deve-se fazer uma 
            distinção
contudo: quando puxado à proeminência por meio poetas, o resultado
            não é poesia,
nem até que poetas entre nós possam ser
            “literatos de
            imaginação” – acima da
                        insolência e da trivialidade e possam apresentar
 
para inspeção, “jardins imaginários com sapos reais neles”,
            só nos resta tê-
la. Nesse ínterim, se demandares em uma mão,
a matéria bruta da poesia
            em toda sua crueza e
            aquilo que é por outra mão
                        genuína, estais interessado em poesia. 
. Poetry
I, too, dislike it: there are things that are important beyond
      all this fiddle.
   Reading it, however, with a perfect contempt for it, one
      discovers in
   it after all, a place for the genuine.
      Hands that can grasp, eyes
      that can dilate, hair that can rise
         if it must, these things are important not because a
high-sounding interpretation can be put upon them but because
      they are
   useful. When they become so derivative as to become
      unintelligible,
   the same thing may be said for all of us, that we
      do not admire what
      we cannot understand: the bat
         holding on upside down or in quest of something to 
 
eat, elephants pushing, a wild horse taking a roll, a tireless
      wolf under
   a tree, the immovable critic twitching his skin like a horse
      that feels a flea, the base-
   ball fan, the statistician--
      nor is it valid
         to discriminate against "business documents and
 
school-books"; all these phenomena are important. One must make
      a distinction
   however: when dragged into prominence by half poets, the
      result is not poetry,
   nor till the poets among us can be
     "literalists of
      the imagination"--above
         insolence and triviality and can present
for inspection, "imaginary gardens with real toads in them,"
      shall we have
   it. In the meantime, if you demand on the one hand,
   the raw material of poetry in
      all its rawness and
      that which is on the other hand
         genuine, you are interested in poetry.