Veganismo, má-consciência burguesa & ignorância geo-nutricional

18/04/2012 at 14:38

Não que uma dada classe média (alta) vegetariania radical (em que pese o dito movimento ter entrado no Brasil através do proletariado sintaticamente alienado e importacionista ligado ao Hip Hop) seja numericamente expressiva, ou apesar de crescente vá representar algum dia uma faixa demograficamente expressiva. Nem que sejam um movimento político coeso e com capacidade de combate (isto é: de elaborar estratégias e dentro delas táticas) – bem ao contrário, parecem jogar resta-um sobre um tabuleiro de go.

Justamente por isso vale refletir a respeito dos ditos Vegans: são um sintoma de uma certa esquerda ao mesmo tempo sub-marxista mas que não chega a ser festiva (leia-se: fourierista), mas que também não tem seus impulsos subversivos advindos de privações e necessidades reais e peremptórias. Enquanto sintoma, são iguaizinhos ao ateísmo colonizado e positivóide que agora deu para apoiá-los, e que se intitula (acriticamente) “Humanismo Secular”. Gosto de chamar este pobrismo ideológico, que corporalmente se alimenta de cogumelo shitake comprado em delicatessens caríssimas (nada contra: eu também compro, mas eu não pretendo – no sentido também de finjo – fazer voto de pobreza), de carmelitismo canhoto – mister não confundir com os franciscanos, que na verdade fazem um elogio da riqueza e alegria interior.

O discurso vegano pode ser reduzido a um fraseado de má-consciência burguesa: “agora que os pobres (do Brasil, da China e Índia) podem comer bife de carne de vaca, não devem”. Para justificar tal postura (que chega ao esdrúxulo de combater a vacinação universal infantil, isso em áreas altamente civilizadas como SanFrancisco, na Califórnia) vale o discurso misticóide de absolutização do amor universal (“nenhuma espécie tem direito de sacrificar outra” – como se fosse uma questão de direitos…!) até argumentos canhestros sobre política alimentar de larga escala que não deixam de ser malthusianos (“produzir proteína vegetal custa dez vezes menos água e espaço do que produzir proteína animal” – como se o problema fosse de produção, e não de distribuição).

É tenebroso que a contra-cultura setentista, que de idealista passou ao pragmatismo da tecnologia de fonte aberta, mídia-livrismo, movimento GLBTT e pela descriminalização das drogas, tenha dado uma volta revolucionária no mau-sentido e agora defenda privar as crianças do consumo de ovo e da vacina contra a poliomielite (a custa, claro, dos filhos dos pobres continuarem a ser corretamente vacinados – terceirizaram a proteção biológica). Mas não chega a ser surpreendente: a ex-subversiva Península de Santo André e Baía de Golden Gate, morfologicamente irmã da minha insubordinada Salvador, sucumbiu a própria riqueza, gentrificou-se. O Castro não tem uma sauna digna do nome; e se o Haight-Ashbury continua autêntico (o fato de ser periferia é um trunfo, uma desterritorialização positiva), é sob pena de sequer vender cerveja em seus cafés que no entanto vendem maconha certificada, camisetas tie-die e, oh!, hambúrguer de soja orgânica. É uma Pituba pra viado criar filho e envelhecer mão-na-mão (ou um Leblon/Gávea – não Ipanema, que ainda tem qualquer coisa de bicha rica tresloucada que a esquizofreniza e eu gosto). Sua excelente qualidade urbana derivou numa cidade tão chata quanto Curitiba.

Já o argumento da produção de boi em larga escala não deveria se aplicar na pátria de Josué de Castro – este recifense que foi um dos que instou a criação da FAO na ONU. São dele dois conceitos cruciais para compreender a indústria da fome: que fome não é estarvação, porque há fome específica; que fome dá lucro, porque é gerando escassez que se especula sobre a superabundância alimentar. Portanto, caro vegan, se os pobres comessem mais carne poderíamos paradoxalmente produzir menos boi – desde que a ampliação do consumo adviesse da melhor distribuição, do impedimento canino pelo Estado de que o Capital especule com os víveres e comodities alimentares. Ao invés de enfrentar este inimigo bem real, os veganos enfrentam fantasmas, o que não só não leva a nada como acirra o problema, criando mais uma (ou talvez mais de uma) fome específica numa população que deveria estar livre dela (o que não deixa de ser uma sinédoque da anti-vacinação infantil que eles pregam: a volta de doenças numa população que já vivia sem estes riscos a mais de uma geração).

Josué de Castro havia observado a tautegoria da pobreza, que é a mesma da fartura amazônica mas se dá nos restos de sertão que chegam a megalópole Mauriceia da foz do Capibaribe: os moradores de beira de mangue se alimentam de caranguejos que um dia se alimentaram das fezes dos moradores de beira de mangue que irão comê-los – não deixa de ser um Belo Monte (Canudos) às avessas. Mas ainda assim Castro via nisso uma positividade: proteína e fosfato não faltariam aos miseráveis de Pernambuco; um vegano veria a mesma cena, se ofenderia, tomaria a defesa do caranguejo, intimamente desejaria que o miserável comesse a própria bosta – e depois iria ouvir MangueBeat sem se dar conta da contradição em termos. Seguindo ainda outra máxima do grande geógrafo: se no Brasil há os que não comem e os que não dormem por medo dos que não comem, os vegans resolveram a contradição por silogismo – deixaram de comer pra ver se conciliam o sono.

Talvez o veganismo não passe do amor das dondocas aos bichons-frisés, só que invertido e levado às últimas conseqüências. Se estivessem realmente interessados em combater a exploração animal, buscariam inimigos reais e nomeáveis. Por exemplo, se dariam conta que o trabalho humano em abatedouros é dos mais espoliantes e mutilantes e menos regulados do país (teriam pena dos trabalhadores humanos que lá têm seu ganha-pão, ao invés de se identificarem com o porco estrebuchante) – e passariam a incentivar não a não-ingestão de carne, mas sua compra em feiras e pequenos abatedouros vindo de pequenos criadores. Que aliás constumam abater seu gado com mais cuidado, já que seu lucro está na qualidade e confiabilidade. Em Itapetinga, na Bahia, se abate o boi dormindo no pasto com um tiro a distância – sofrimento nenhum, carne ultra-macia.

Ou incentivariam o consumo de proteína animal indireta (não me venham com “ovo-lacto”!), e comprariam a briga contra o binômio ANVISA / Grandes Laticínios ao lado dos pequenos produtores de queijo artesanal de Minas, que não podem circular seus produtos senão clandestinamente uma vez que feito de leite cru tirado a mão de vacas que atendem com doçura quando chamadas por seu nome. É a grande indústria do leite que espolia pequeno produtor (cuja fazendinha fica ociosa metade do dia, se não for produtora de queijo artesanal) e as vacas leiteiras em nível industrial. Comprando esta briga, os vegans incentivariam o consumo de queijo de feira (os estados do nordeste também produzem, embora menos sofisticados que Minas Gerais), longe das certificações que o Estado garante aos pasteurizados mortos e morificados, queijos como alimentos vivos, cuja longevidade e conservação são garantidas por serem queijos curados (isto é: vacinados biologicamente por bactérias, uma tecnologia manufatureira milenar) mais saborosos – agindo aí sim anarquisticamente e autonomisticamente, sabotando as formas-Estado e o Capital, como arrogam fazerem enquanto compram quinua real no Pão de Açúcar.

São lutas mais viáveis, e mais alegres – mas como são reais, dão um trabalho de reflexão e ação a que os deprivados de canja de galinha e os criados a missou com alga não estão dispostos por talvez falta de energia fisiológica. E notem: falo como alguém em cuja residência não entra “bicho morto” – sequer sob a forma de embutidos (essa tecnologia secular dos povos de fronteira para deixar as carnes conservadas e prontas para uso sem requerer fogo e preparo, e que por isso as Gerais e as Serras e Pampas Gaúchos dominam tão bem!). Porque carne é uma forma pouco durável de proteína animal, e que dá trabalho de preparar, o que torna ineficiente para quem mora sozinho. E quanto mais anterior na escala evolutiva, mais volátil é a carne embora mais saudável: peixe estraga mais fácil que frango, etc.

Nem me venham com o argumento anti-culinário de que o que dá sabor é o tempero: sabor implica em textura, e a de uma maminha de alcatra, corte alto e levemente mal-passada, é insubstituível até para mim que só como carne vermelha quatro talvez cinco vezes ao ano (tanto quanto a textura da macaxeira de Noca, em Olinda, é inolvidável). Nem com a pergunta fatal: “você comeria carne humana?” – claro que comeria! O que aliás me dá um argumento terminal anti-vegano: contra esse vegetarianismo pequeno-burguês e cheio de culpa cristã, busquemos uma antropofagia aquém e além oswaldiana. A crueldade não é algo de que a espécie Homo Sapiens deveria se envergonhar, desde que bem usada, já nos ensinava o zen – comamos pois as tripas do Capitão Cook (ironia dos nomes, diria Guimarães Rosa em seu Ave, Palavra) no desjejum.