Artefatos Vitorianos para uso das Cidades – IV
uma história tecnológica do Amor
Tanto quanto a bicicleta, a sombrinha, o leque, e a literatura, o amor era, no período Rococó palaciano, um jogo lúdico da nobreza – que só depois se torna uma traquitana universal a funcionar, e a fazer funcionar, as metrópoles. É talvez no romance do General Chordelos de Laclos, As Relações Perigosas (verdadeira porta de vai-vem entre o Romantismo e a Idade Clássica, no dizer de Mario Praz), que isso fica mais claro.
Laclos elevou o romance epistolar a um paroxismo: não se trata mais de uma história narrada através de cartas, senão de uma história do envio das mesmas cartas – é um romance epistolar cujo tema são epístolas; e, mais além, as missivas se convertem em cartas de baralho. Se todo o romance anterior ao século XIX era, como diz Ítalo Calvino comentando os Três Contos de Flaubert, “narrativa a cortinas cerradas”, sem imagens ou cenas, Laclos radicaliza isso ao passo que abre frestas: sua estória é encobertas por leques, por mãos de baralhos de bridge, pelo mostra-esconde dos jogos de sedução versalhianos.
“Viaja-se muito nos romances de Sade”, nos diz Roland Barthes – e o mesmo se poderia dizer do General Chordelos; no entanto, nunca se está em uma cidade, rua, praça: todo trânsito se dá de um castelo a outro, de um palácio a outro. Estabelece-se assim, não bem uma des-geografia dos afetos, mas uma geografia de grande escala, fora da escala humana. O amor, fato político, é evento fundamentalmente de alcova, e não de demonstrações públicas de afeto; claro, os bailes e as sonatas de câmara servem para flertar, só que como puro jogo. É justamente quando Relações Perigosas se dobra e começa a se comportar como um romance trágico do Romantismo, que a cidade e a visualidade aparece: o Visconde de Valmont, já apaixonado pela Baronesa de Tourveille (na prática, uma burguesa que comprou o título) é visto pela Marquesa de Merteuil numa carruagem, ao sair da ópera.
Note-se que ainda aí é uma cidade para poucos, e pouco pedestre, carrodependente se diria, só que sem motores. É justamente com o advento da metrópole hausmanniana que o amor deixa de ser uma prerrogativa de classe, e se torna virtualmente um direito universal – sob pena, claro, de ganhar uma função utilitária e deixar de ser jogo, e ser investido de uma coerção panóptica.
O boulevard da Paris de Baudelaire não é apenas o lugar em especial para o flerte, a paquera (como eram os corredores palacianos um século antes), a flanery, mas também para marcar encontros, e ver-se sendo visto em plena felicidade. Mais do que isso, é a presença diversa e densa de comércio de rua que permite ao enamorado comprar flores de última hora, escolher bombons, encomendar um corte de tecido para uma roupa particularmente elegante a ser usada numa situação especialíssima.
Ao sair da condição de brinquedo de alcova & salões para uma prática urbana, o amor é investido de etapismo: da paquera ao namoro ao casamento – torna-se uma máquina de produzir familismo e consumo, com consequente perda de sofisticação – tanto mais sentida quanto mais proletarizada é a classe social que a pratica (para quem também o amor é uma tecnologia mais utilitaria que divertida). E claro que não por acaso é nesta época que a prostituição alcança seu apogeu como arte, as outras formas de relação amorosa (o caso, o affair, o romance) se diversificam antes de morrer (e produzem a narrativa de traição, tão típica do fin-du-siécle, de Eugênia Grandet a Capitu), surge o cinema e o teatro de revista, o circo antes eminentemente agrário passa a ser um entretenimento citadino entre outros (como nos mostra boa parte da obra pictográfica de Edouard Manet e do conde Henri de Toulousse-Lautrec) etc. Se namorar é um passo para a concentração financeira da casa, burguesa, é também, paradoxalmente, o apogeu da rua em que ocorrerão as Comunas – um ato econômico e financeiro em seu destino, entretanto político em sua origem e forma.
Não é apenas o amor erótico que muda de forma, e ganha função prática, na cidade moderna (que ainda não é do modernismo). O mesmo vale para a amizade. Recordo que o General Laclos e o Marquês de Sade eram amigos íntimos, discípulos mútuos até – mas se encontraram raras vezes: Chordelos quase sempre na fronteira belga, manejando exércitos, e parte de uma nobreza de espada, Alfonce-Donatien entre castelos e cárceres. Quase todo seu afeto foi desenvolvido em privado – através de epístolas.
Na cidade múltipla e densa que o Prefeito de Paris sob Napoleão III cria, a amizade é um fato público: amigos são aqueles que se embreagam juntos, vão a bórdeis juntos, tomam sol nos parques juntos, discordam politicamente juntos – sua intimidade é colocada a vista de todos, sua afinidade eletiva se torna uma referência física de localização para toda uma coletividade social.
Não é de admirar que a era do automóvel faça das metrópoles, antes lugar da ampliação do amor em escala industrial, regiões cartográficas em que o amor se torna difícil. Claro, isto não vale para qualquer metrópole nem em qualquer canto: morar no Centro de Salvador (e eu sabia disso bem antes de vir para a Gamboa de Cima) exponencializou em quantidade e qualidade meus encontros afetivos, de amores e de amigos, de brigas em praça pública e botecos, de caronas pedestres e de garupas de bicicleta. Porém, em geral o automóvel retoma todos os males do afeto à cortina cerrada (o namorico dentro do carbriolet, agora dentro de carros estacionados em ruas ermas), sem trazer suas vantagens (o fato de ser puramente lúdico e descompromissado). E nada contra namorar dentro do carro – das grandes vantagens de não ter automóvel é cochilar, conversar e dar amasso em táxis. O que há é que o aburguesamento fez a curva, e se um dia foi libertador e universalizante, hoje se torna uma emulação do salão aristocrático, só que sem a galhardia da aristocracia. E o mesmo vale para as amizades que se, por um lado, com o advento da internet voltaram a ser através de cartas e de afinidades profundas, por outra perdeu diversidade e função política íntimo-pública pela raridade de encontros reais e presenciais em espaços verdadeiramente coletivos.
[…] advém das soluções lúdicas da nobreza pré-vitoriana. Como a bicicleta, a sombrinha e o amor, o sanduíche e o pic-nic foram brinquedos […]
[…] erradamente na monogamia um problema, e não um efeito colateral natural do enamoramento) e suas condições logísticas e tecnológicas (uma das hélices da infraestrutura), chegamos agora a sua condição digamos de financiamento (que […]
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Dia dos Namorados, véspera de Santo Antônio, é uma data pedestre – seja pela festa no Além do Carmo (a maior junina em capital do país, negra e lusitana como só Salvador), seja pela quantidade de gente indo ao Largo Dois de Julho ontem fim de tarde comprar flores.
Ao por do sol, vi inclusive um rapaz sozinho, num banco do chafariz dos Aflitos, em não menos aflita espera com não menos solitária rosa, aguardando a namorada.
E eu a atravessar o Politeama de Cima, bouquet numa mão, vinho na outra, ao cair da noite. Que me desculpe Ivete Sangalo, mas amar a pé é muito mais bonito!