O Visitante

23/11/2011 at 16:05

Conto curto meu, publicado numa coletânea da Guemanisse por menção honrosa num prêmio desta editora de Teresópolis, o primeiro fortemente influenciado por Borges, escrito, como se percebe pela epígrafe, quando eu estava a ler a Tragédia do Príncipe Hamlet.

O Visitante


“your visitation shall receive such thanks

as fits a King’s remembrance”

Gertrude, Queen of Denmark, and mother to Hamlet (in: Shakespeare, William; The Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark, Act II, scene 2)

O homem havia recebido o convite insuspeito. Tratava-se de uma carta – um bilhete, dado o tamanho, um tratado, dada a extensão infinita – completamente em branco, impressa no mais caro papel-linho, assinada igualmente pela aparente inexistência do branco; conquanto a quem de direito – o tal homem a quem haja sido entregue – era perfeitamente legível, na incognocibilidade transparente, a hora, o local, a razão e – mais espantoso, posto que assinaturas são ilegíveis por si, que dir-se-á das transparentes? (talvez por isto estas sejam mais claras à leitura) – de quem se tratava o insupeitavelmente íntimo anfitrião incógnito.

Então, tocava a campainha da casa de seu algoz cicerone britanicamente à hora marcada – ou, antes, babilonicamente, pois a hora de seu encontro não era marcável ou revelável retilínea, circular ou espiralmente, senão nas antediluvianas clepsidras. Eis que porta abriu-se, como alguém feito de nada a houvesse aberto, como que sozinha, como que já estivesse imemoravelmente aberta e aguardasse apenas algo – a campainha! – que lhe incitasse a presentar-se como tal. Cruza-lhe o umbral o homem, com um cinzento chapéu de abas a cobrir-lhe a luz dos olhos, um cinzento sobretudo e uma maleta obscura à mão, como alguém que se achasse numa noite cinzenta e obscura de um film-noir em que eternamente chove (ou assim parece), ainda que previamente fizesse bela tarde de sol no dia marcado, e, notando não haver ninguém – nem conviva, nem empregados, nem mesmo um cão ou outro animal treinado – que lhe tivesse aberto a porta, adiantou-se ao vão contíguo, e deste a outra sala, como que procurando o lugar desconhecido mas já sabido, como uma lembrança esquecida da infância, do seu encontro.

Percorria a casa inteira, sempre na esperança, antes, na certeza (?), de que no cômodo seguinte encontraria seu ilustre anfitrião. Destarte, percorria-a por vezes incontáveis, sem nunca sequer ter voltado por onde veio, batido meia-volta ou andado de costas: como a casa fosse uma via cíclica, onde a cozinha ligava a sala de jantar ao banheiro, e o quarto de dormir, a biblioteca ao corredor, e este novamente à casa de banhos e daí para a cozinha, etc. (sic.). Como se todo o chão da casa fosse feito de pequenos degraus impercebíveis, sendo ela uma espiral cuja a extremidade superior ligava-se continuamente à extremidade inferior, sem que se deixasse de se dirigir infinitamente para cima, se para cima se andasse, ou para baixo, se assim o fosse.

E cada vez que passava novamente pelo mesmo cômodo previamente visitado, já não era o mesmo, tendo mudado não só a decoração e a aparência, mas também a funcionalidade – a cozinha, por exemplo, da Segunda ou terceira vez que por lá passava, já não era uma cozinha e a ser uma cozinha não se servia, não contendo fogão, armários, comida e tudo mais que numa cozinha existiria, ainda que nomino-essencialmente continuasse a ser uma cozinha. Como se isso revelasse sua própria mudança: ao passar duplamente pelo mesmo local já não era o mesmo, nem o banheiro era banheiro, se de banheiro se tratasse.

Assim, continuava ele sua perambulação, na esperança de que no cômodo seguinte estivesse seu convidado e cicerone, ou que, por algum sistema randômico, passasse por um cômodo novamente e o encontrasse intactamente semelhante a alguma outra vez que por ali tinha passado, encontrando-se a si próprio num outro estado de tempo, como num encontro marcado, escrito na ontologia do universo.