Crítica Peripatética: práxis da autoralidade em pé

13/08/2011 at 10:40

Para o maestro Carlos Prazeres, que, carioca, é um pedestre convicto!

(e para seu tio Perfeito Fortuna que, de menino, o sujou nas ruas da Lapa)

Desde que li um certo texto de Gil Vicente Tavares tenho querido escrever sobre esta relação fundamental entre a Reforma Urbana e a Reforma Cultural (e, de outra forma, entre a vivência direta das ruas e o prossumo cultural). Nele, Gil Vicente aponta uma pobreza na vida cultural de Salvador (o que, como diz Rónei Jorge, “só acontece na Salvador que eu não vivo, porque a que eu vivo é culturalmente exasperante de tanta coisa que acontece ao mesmo tempo”) a partir do fato de “ouvir Rachmaninoff dentro do carro”. Ora, como quer Gil Vicente perceber uma dada experiência cultural se colocando fora dela? – isto é: fora da rua e dentro da bolha de metal, o automóvel, que Le Corbusier queria usar como “arma para matar a rua”.

Não se trata sequer de rejeitar a preferência (algo colonialista) pela música européia – até porque eu próprio ouço Rachmaninoff muito melhor a pé, frequentando concertos no TCA, passando pela Escola de Música da UFBA no Canela e ouvindo involuntariamente trechos de ensaios, etc. Claro, nem tudo isso precisa ser realizado a pé ou de bicicleta (uma variante mais potente do modo pedestre) – mas é realizado com menos esforço e mais frequência e qualidade nestes modos. Inclusive porque, exposto ao totalmente acidental da “alma encantadora (porque sujas) das ruas” não se separa luxo de lixo, ou cultura erudita da cultura popular (“a literatura é o folclore das elites”, já dizia Vladimir Propp), ou não se julga qualidade. No mesmo ponto de ônibus em que semi-marginais vendem disco pirata se pode ouvir clássicos de Gonzagão ou o pior do pior do A Bronkka. E se é forçado a benignamente suspender qualquer julgamento prévio, nem que seja por uma questão de conforto subjetivo, de evitar um mau-humor.

Não é de outro lugar que surge o som da Orkestra Rumpilezz, por exemplo. Letieres Leite é outro pedestre ideológico – só assim poderia, do caos palimpséstico que é a Sete Portas, escavar sua arqueologia malê e fazer aquele primor em arabesco que é a música Feira das Sete Portas (que não consta do primeiro disco da Orkestra). E de onde vem o cultural-jamming do BaianaSystem? Ou por que é que a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, em Recife, tem uma vitalidade e criatividade maior que a Spok Frevo ou a Orquestra Popular do Recife? – porque não tem medo de se sujar no brega da periferia da Mauricéia Desvairada (nisso se iguala ao Mombojó), nem de ser taxada de impura pelos puristas armoriais tipo Ariano Suassuna. Era das vantagens táticas de ter Marcio Meirelles, um pipoqueiro ideológico que nunca teve carro, como Secretário de Cultura do Estado da Bahia – diferente de Albino Ru(b)im, um burocrata academicista e politiqueiro palaciano no mau sentido.

Já disse várias vezes, concordando com Gilles Deleuze (de quem no entanto não gosto) que a crítica cultural tem de ser uma clínica (no sentido wittgensteiniano do termo) da autoralidade e uma didática (sem ser uma pedagogia) da recepção. Isto é: ajudar a mosca a sair da garrafa, levar os autores e artistas e formuladores de políticas públicas a entenderem onde está o impasse e apontar vias de superá-los; e dar ferramentas para que o público possa compreender melhor o que flui e porque gosta de tal coisa e não de outra, sem no entanto tutelá-lo ou infantilizá-lo. Não só já disse isso, como exerci isso ao tomar da Psicanálise o dispositivo do Cartel e aplicar à forma-canção; e quando digo que o blog é meio, mas não fim: fim e finalidade é o diálogo real, presencial, diário, com certas pessoas, e com a cidade (viva, pedestre) em geral.

Neste sentido, quando a três anos atrás resolvi deixar de usar carro e preferir a bicicleta como principal (mas não único) meio de transporte (porque sem buzú em Salvador não se vive a cidade real, que o diga o Suinga e seu sorvete de cajá na Estação da Lapa esperando seu Cajazeiras X) foi para que a crítica deixasse de ser de gabinete – no mesmo sentido que Antonio Lancetti fala que na Reforma Psiquiátrica a clínica continua a ser psicanalítica, mas ao invés de deitada no divã, é em pé e transitando pela cidade – com todos os riscos, inclusive contra-transferenciais, que isso implica. Ou como diz Luciano Elia: ninguém atende autistas para ser mordido, mas ser mordido por um autista é algo que pode acontecer, e se deve suportar, uma vez que se os atende. Como se vê, a Reforma Cultural depende da Reforma Urbana tanto quanto a Reforma Psiquiátrica, e esta depende também da Cultural – todas dizem respeito a liberdade radical do direito a cidade.

Penso na associação possível entre o pensar-andando aristotélico, reavivado por Franco Basaglia em outro sentido (“o psicoterapêutico é a cidade”, “a cidade que liberta em seu anonimato”, diria Hausmann; “a cidade que educa, enquanto a escola apenas instrui”, diria Ivan Ilich), e a moda atual dos Stand-Up Comedies. Não que eu aprecie o gênero, a meu ver um mito burguês importacionista do american-way-of-life. Mas há nele uma positividade: a arte (isto é: o risco no qual o artista se equilibra) na comédia-em-pé é seu corpo nú. Nada há entre ele e a plateia a não ser um microfone – isto é: sua própria voz. Quase não há personagem. Nada se vende ali a não ser o corpo próprio (como os psicanalistas e as prostitutas). Uma autoralidade que não teme se roças, e se contaminar, da imundice (aquilo que vem do mundo) dos outros.

Curiosamente, o blog de Gil Vicente se chama Teatro Nú – por causa do seu bom projeto “Teatro Nú Cinema”. Mas parece que o rapaz não consegue se despir de sua carapaça de metal motorizada, nem de sua ideologia de classe, menos ainda de uma heteronormatividade que me parece apenas fachada. Ainda que, vejam bem, eu concordo com ele quando diz que há um imperativo categórico da grosseria na bahianidade, que precisa ser extirpado e que nos faz muito mal; que o black-is-business largamente já deu o que tinha de dar e se tornou quase tão autofágico quanto o Axé-System medioclassista branco a que se propunha também a combater.

Se ampliar meus modos de transporte, em direção a formas mais autônomas e rueiras, foi fundamental para me fazer o crítico cultural que me tornei, parece que minha recente mudança para a Gamboa de Cima exponencializa isso (Hugo Albuquerque chamaria isso de guerrilha partisan) – tanto pela proximidade com o Teatro Castro Alves quanto com os botecos do Largo Dois de Julho e mesmo com os crackômanos da muradinha da Avenida Conselheiro Lafayete Coutinho (Contorno), cuja presença me incomoda menos do que se pode supor. Coincidiu minha mudança com finalmente o início da leitura do clássico manifesto de Yves Lacoste, “Geografia: isto serve, em primeiro lugar, para fazer guerra”. Faltam aos críticos, e aos artistas e autores, e aos gestores públicos e privados, um raciocínio estratégico geográfico – isto é: de tomada e retomada de território. Não falta sempre, uma vez que a SalaDeArte por exemplo sabe muito bem o efeito que tem em seu entorno, aumentando seu afluxo pedestre mesmo em bairros carrodependentes como o Itaigara. Falta, mas começa-se a migrar nesta direção quando vejo o Encontro de Compositores do Teatro Vila Velha ser um lugar em que o discurso pelo melhor uso da cidade, mais densa, aparece sempre e sempre e fora do lugar comum. Aliás, é no Encontro de Compositores do Teatro Vila Velha onde mais se pratica também uma autoralidade stand-up, com seu despojamento para o bem e para o mal.