Greve terapêutica contra paralisia neurótica

06/05/2011 at 13:02

A greve dos servidores estaduais de saúde da Bahia, hora em vigor, é ao mesmo tempo uma retificação psicanalítica no campo da esquerda, talvez sem precedentes no país; e um sintoma da paralisia cartorial que se instaurou na Secretaria Estadual de Saúde (SESAB) desde, pelo menos, final de 2007.

Digo retificação porque, em todo o seu discurso (finalmente amadurecido) o SindSaúde deixa claro que a greve não é por ser contra o governo atual – ao contrário, faz-se greve justamente porque se o apoia. Como os sindicatos no Brasil vêm de quase 30 anos apenas fazendo movimentos de massa contra governos de direita, desde a eleição de Lula em 2002 ficaram sem saber exatamente como ocagir concretamente, desde o lado de fora, um governo que não obstante apoiam. De quebra, nesta última década boa parte dos corpos sindicais migraram para a administração pública, de modo que movimentos grevistas soavam nos sindicatos como “luta de si contra si mesmo”.

Arqueologicamente anterior há, ainda, um trauma fundamental: a memória sindical brasileira sabe que foi a oposição nas ruas à esquerda, a um governo de esquerda (o de Jango), que levou ao Golpe Militar de 1964. Sempre há uma fantasia fóbica, inconsciente, de que opor-se a um governo que se apoia é “dar fôlego à direita, que o quer ver vencido”.

Na Bahia, agora, parece que as coisas estão sendo diferentes: uma greve que consegue deixar claro não se contra o governo (ao contrário: visa retificá-lo para que cumpra o que o elegeu) sem soar pelego. Isto foi possível por dadas condições materiais: a reeleição de Jaques Wagner para governador do estado garante que não há “direita” (nem mesmo a de Geddel) que se poderia aproveitar (e cooptar) de um movimento grevista para “enfraquecer” o governo. Por outro lado, os sindicatos não se vêm na premência de vencer uma reeleição que julgavam difícil (a de Wagner) e ou de evitar uma reeleição que seria (como foi) tenebrosa (a de João Henrique Carneiro, na capital) – cenário bem diferente do da última tentativa de greve, frustrada, em 2008.

Há ainda o “fator Otto Alencar“: escolhendo um carlista para vice, Jaques Wagner se coloca mais a direita do que estava, dando o aval a movimentos opositores de caráter retificadores.

Dito de outra forma, o SindSaúde realizou assim o que se poderia chamar de “ato analítico”: deu-se conta das condições de sua paralisia e subserviência, mudou de posição e ficou mais senhor de suas ações, que se tornam assim mais eficazes; e com isso pode ocupar o lugar de analista, isto é, de colocar o sintoma enfim em questão: o sintoma da SESAB sob Jorge Solla.

* * *

Ele terceirizou o cargo de Secretário

Jorge Solla assumiu a SESAB em situação peculiar, de resto similar a todo o Governo Wagner com alguns graus a mais de avanço: já não havia carlismo, e se começava uma institucionalização republicana de estado desde o governo de Paulo Souto. Na gestão de José Antônio (Secretário de Saúde de Paulo Souto) se realizou grandes concursos, e se fundou a Escola Estadual de Saúde Pública (EESP), através da qual a SESAB passava a dar qualificação, capacitação e pós-graduação aos servidores do Sistema Único de Saúde da Bahia – fossem estaduais, federais, municipais, terceirizados, não importa. Isto é: cumprir o que a Constituição e as leis orgânicas do SUS atribuem como responsabilidade dos estados.

Foi no concurso de Paulo Souto que ingressei na carreira; foi pouco antes, pela EESP que me especializei em Saúde Mental. Solla até certo ponto acirra estes desenvolvimentos (de novo, como ocorre no restante do Governo Wagner): num primeiro momento elimina a terceirização de médicos por uma cooperativa obscura (por mandato judicial, é verdade, mas creio que ele faria de qualquer forma) realiza contratação emergencial pelo Regime Especial de Direito Administrativo (REDA) mediante seleção pública transparente por provas e títulos, e começa a preparar um concurso público.

É aí, na virada de 2007 para 2008 que a coisa degringola. O que parece é que Jorge Solla, genial ex-Secretário de Saúde de Vitória da Conquista, começou um passo de valsa sem saber bem pra onde ia. Queria ampliar a rede, mas aí faz um questionável hospital privatizado. Formula um necessário, e até certo ponto correto, Plano de Cargos e Salários – mas até hoje não publicou o modelo de progressão de carreira (e é esta a única reivindicação da greve que une todos os trabalhadores do setor – isto é: a principal causa). O concurso em questão entra numa barafunda de contagem de pontos que se não foi uma tentativa de fazer “quem-indicou”, pareceu, foi parar na justiça, e levou mais de ano para começar a dar posse.

Note-se: são questões gerenciais, e não de escolha política. A SESAB sempre foi mangueada,as sabia-se que uma vez que ela começasse a cumprir seus desígnios constitucionais, teria de melhorar tecnicamente sua gestão. Solla não fez qualquer tipo de seleção de corpo técnico, ao contrário: esquartejou a SESAB entre sindicalistas sem nenhum preparo para a administração pública, e políticos de partido (quase todos PCdoB e PT) que impediam que certas informações chegassem ao secretário. A SESAB passou a ser uma secretaria “governada a partir do segundo escalão” – Jorge Solla comparecia apenas como príncipe-regente, uma figura simbólica sem capacidade decisória.

Não se pense que, com isso, a radicalização da republicanização iniciada por Paulo Souto se vergou a esquerda. Esta foi a regra no Governo Wagner até agora, mas não na Saúde. Em verdade, vergou para diversos lados, zanzando em zigzag, sem saber pra onde rumar. Uma ala partidária puxava para um lado, outra sabotava; uma terceira, dava pra trás. A posição do Secretário ficou tão subalterna a seus subalternos que nas últimas eleições ele fez campanha para seu ex-Chefe de Gabinete, o hoje Deputado Federal Amaury Teixeira. Que um chefe de gabinete ajude a eleger um ex-secretário, é do jogo; o contrário, como ocorreu, é uma patologia política.

A crise que Solla hoje enfrenta é, como tudo mais na vida, consequência de suas próprias contradições: cedeu demais a apetites eleitorais (que, sejamos justos, sequer são dele e talvez nem fossem do governador), e não consegue realizar cartorialmente na sua Secretaria uma mera progressão de carreira.