Os aninha-franco-atiradores
No concerto de Natal da Orquestra Sinfônica da Bahia (OSBA) pude presenciar uma das cenas mais constrangedoras que já vi: o trombonista Jorge Alves Dias levanta-se antes de o espetáculo começar e vitupera contra a gestão de Ricardo Castro – de longe, a melhor que a OSBA já teve por inúmeros motivos.
Contudo, não foi mais constrangedor do que o texto nécio de um certo Henrique Wagner, assecla da cassandra-de-hospício Aninha Franco, no qual mostra (mas seus leitores não vêem, ou fingem que não vêem) que nada entende de linguagem orquestral. A começar ele elogia a fala do trombonista – que além de grosseira foi uma flangrante quebra de hierarquia (que deve ser punida em breve com processo administrativo), tanto mais porque ao ver a baixaria começar a spala em exercício no dia, Tatiana Onnis, se retirou do palco.
Em linguagem orquestral, caro Henrique Wagner, nada que uma orquestra faça ou diga na ausência de seu spala e do maestro tem qualquer valor ou sentido. Só se pronuncia em nome da orquestra seu maestro titular (sequer os convidados!), seus spalas ou um eventual convidado que ocupe a função na noite. Pior ainda: a spala do dia, Tatiana, é mulher de Pino Onnis, que regeria a noite.
Isto é: o ato que Henrique Wagner considera de destemor e ousada coragem foi, apenas, uma patetice desaprovada pela chefe de orquestra do dia.
Contudo, não é este o único ponto em que Henrique Wagner mostra uma orgulhosa ignorância-em-ação.
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A uma certa altura de seu texto, escrito em tucanês vernáculo e gorduroso como a prosa de Caetano Veloso, Henrique Wagner diz:
No intervalo, me levantei e, quando seguia ao saguão – caramba, isso que escrevi agora parece um trava-língua… –, vi um Ricardo Castro quase fagueiro, numa das últimas filas da parte de baixo do teatro, pernas cruzadas, conversando amenidades com um jovem desconhecido
O “jovem desconhecido” era eu. Quer dizer, desconhecido para Henrique Wagner, que não frequenta a OSBA (cujos concertos eu fui a todos nos últimos 3 anos, a exceção de dois: a estréia do Mozart nas Igrejas na Casa Pia dos Órfãos de São Joaquim, e ao especial de Natal de 2008, com a Sinfonia Coral de Beethoven). Certamente não sou desconhecido para a Orquestra Sinfônica de São Paulo e os produtores de sua série Itaú Personalité, que me convidaram para avaliar criticamente a execução atual da OSESP; nem para Letieres Leite, que fez aniversário dia 8 deste mês, festa para qual eu fui e na qual havia uma adorável jam-session com alguns músicos da OSBA (que tocam também na Rumpilezz) e onde não faltaram elogios a gestão de Ricardo Castro (o que mostra que a falta de gratidão do trombonista não tem discordância apenas da Spala – antes, mostra que a Spala representa, e bem, o pensamento de seu corpo de instrumentistas); nem sou desconhecido para todos os integrantes do Retrofoguetes e do BaianaSystem; nem para a Revista Bravo! e Pedro Alexandre Sanchez, que se basearam no meu Cartel sobre A Canção para fazerem o número especial sobre a Bahia em janeiro deste ano, nem para o poeta Vladimir Casé.
Quer dizer: Henrique Wagner me desconhece, mas não surpreende: ele desconhece coisas ainda mais importantes em termos de música.
Nem conversávamos, eu e Ricardo Castro, amenidades. Se Henrique Wagner tivesse a esperteza fofoqueira de que se orgulha (e tem coisa mais asquerosa do que alguém que se orgulha de contar fofoca? – fofoca é o avesso da informação, é aquele lugar lógico em que não pode haver nem a verdade nem seu avesso, a mentira. Fofoca é a ficção esvaziada) – se ele fosse esperto esticaria o ouvido e ouviria sobre o que conversávamos. Ou ele acha que diante da saída precipitada de Ricardo Castro da gestão da OSBA, e do barraco que a noite (quase) se tornou (e do qual ele se recozija, com total falta de modos e de etiqueta doméstica), alguém estaria conversando “amenidades”?
Nem Ricardo estava fagueiro – antes constrangido. Se eu fui até ele no intervalo, foi para fazer o que um crítico (e não um fofoqueiro vangloriante) faz: queria saber 1) o que havia acontecido; 2) se já havia outro nome sugerido para ficar a frente da orquestra. Enfim, estava preocupado com o patrimônio de meu estado, a OSBA, que tomo como meu porque, diferente de Henrique Wagner, acompanho-a semanalmente – às vezes, mais de uma vez por semana.
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Comparece no vitupério do Sr. Henrique Wagner o típico elitismo, indisfarçavelmente carlista-tardio, dos aninha-franco-atiradores. Diz ele que se sentiu incomodado pela presença de crianças na plateia – que na opinião dele, deveriam ser proibidas em espetáculos de música erudita. Quer dizer então que os aninha-franco-atiradores são contra o Neojibá?! Não me admira, uma certa des-jornalista Rosane Santana há ano e pouco atrás disse que o Neojibá é “questionável” – a Inglaterra não acha, tanto que convidou Ricardo Castro este ano para discutir lá gestão orquestral.
Aliás, o Neojibá é a prova de que Ricardo pode ser tudo, menos mau-gestor: um gestor ruim erigiria uma sinfônica jovem, num estado devastado pelo Axé-Sistem, em menos de 3 anos?!
Se o Sr. Henrique Wagner frequentasse os espetáculos da OSBA regularmente – o que, repito, é patente que ele não faz – saberia que a falta de educação do público presente neste concerto não é por ter criança. As crianças que vão ao Mozart nas Igrejas se comportam e fruem exemplarmente as obras lá executadas. O problema é que o público daquela noite justamente não era o público afeito às Séries OSBA e a concertos eruditos. Nas poltronas atrás da minha, adultos faziam piadinhas a cada ária de ópera executada, tanto que tive de migrar para fileiras mais acima.
Mais aí, duplo oportunismo do trombonista e do boquirroto Henrique Wagner: o trombonista não apenas sabia que dizia mentiras, mas que as dizia para um público incapaz de avaliar se mentiras eram ou eram verdades, porque não acompanharam a evolução da orquestra nos últimos anos nem antes. O próprio Henrique Wagner, querendo dar uma de esperto, caiu na esparrela, e ficou entre a ignorância e a maledicência.
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Sentiu-se ofendido o Sr. Henrique Wagner pelo pronunciamento de despedida de Ricardo Castro antes do início do concerto. Diz ele que foi “deselegante”. Ora, não apenas foi elegante, como foi de praxe. E quem é Henrique Wagner, que desconhece etiqueta orquestral e mostra falta de polidez de berço, para julgar se algo é ou não “elegante”?
O que Ricardo disse no pronunciamento foi a mais pura verdade: que a OSBA era uma orquestra claudicante quando ele assumiu, e não é mais. Que tinha problemas de execução (nota minha: especialmente no naipe de metais), inclusive porque os instrumentos eram velhos, e hoje não tem mais porque há instrumentos novos; não tinha harpista, e hoje tem. Tinha uma série minguada em público e em frequência de espetáculos, quase todos apenas no Teatro Castro Alves, e hoje tem a maior série sinfônica do país, ocupando inclusive igrejas, hospitais, auditórios de bairro – e cuja presença de público praticamente dobrou, recebendo nomes internacionais de primeira grandeza que vinham não apenas tocar e regê-la, mas aqui permanenciam meses dando master-classes e work-shops aos membros da OSBA e do Neojibá
Os efeitos da excelência que a OSBA alcançou nos últimos anos vão além dela mesma. Sem uma OSBA mais forte, seria impensável o Neojibá – mas também impensável a Orkestra Rumpilezz, a Afro-Sinfônica e a Sambone Pagode Orquestra. Sem uma OSBA forte, eu não teria me tornado um crítico respeitado até pela OSESP – porque é frequentando concertos ao vivo sistematicamente (fica aí uma dica, caro Henrique Wagner…) que se forma a capacidade de análise crítica, tanto da autoralidade quanto da recepção.
Ricardo aliás tem o mérito de ter dado educação auditiva básica ao público baiano: em seu primeiro concerto a frente da OSBA, ainda se aplaudia entre um e outro movimento de uma mesma obra, e o público se retirava antes do bis e sem pedi-lo. Antes da gestão de Ricardo Castro, a OSBA não aplaudia com os pés os solistas convidados. Se Henrique Wagner frequentasse a OSBA teria talvez aprendido esta etiqueta elementar…
O que Ricardo Castro disse no seu humilde, e honroso, discurso de despedida foi não apenas verdade – mas uma defesa forte da OSBA enquanto instituição. Um pedido para que se abra concursos públicos; que se execute uma reorganização salarial nos contra-cheques (isso ele disse a mim, em privado, no intervalo) que tornasse os salários não necessariamente maiores, mas mais estáveis e coerentes. E a defesa de que ela deixe de ser estatal para, como a OSESP e a Filarmônica de Minas, se tornar autarquicamente pública.
A OSBA queixa-se de estar num “segundo plano”, tendo sido ultrapassada em reconhecimento pelo Neojibá. Pode ser, mas isso só ocorreu nos últimos dois anos – quando o Neojibá deixou de ser estatal para ser pública. É isso que permitiu que ela recebesse doações, assinasse contratos de turnê, se dinamiza-se. É isso que Ricardo Castro queria para a OSBA: não apenas uma das 4 melhores sinfônicas do país, mas do mundo.
Se isso é desprestigiar uma orquestra, eu quero ser desprestigiado nessa vida…
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Nunca é demais lembrar que eu não acho ruim críticas, e mesmo pessoas que se coloquem frotalmente contra a atual gestão estadual de cultura – desde que não se coloquem contra a Reforma Cultural. Isto é: desde que não façam uma defesa velada do mediocrismo carlo-axezista; desde que defendam a civilização para todos, e não a barbárie elitista como fez Henrique Wagner. Fernando Marinho sabe agir desta forma, e Gil Vicente Tavares também – inclusive, quando um texto seu foi usado para vilipendiar a Secretaria de Cultura, ele fez um outro se colocando contra tal uso e defendendo o fato de que “hoje se tem o que criticar – há 3 anos, nem isso!”.
Qualquer um pode ser contra ou a favor de um governo, de um modelo de gestão. O que não se pode é não ser ético. Ética é lá onde não há fofoca nem maledicência. Ética é o que baseia o trabalho da crítica – a falta dela, como faz Henrique Wagner, baseia as revistas Contigo. Ética é, desde Antígona de Sófocles, aquilo que impede o abuso de poder e que se aferra aos fatos da realidade, e não a uma realização desejante de uma fantasia invidiosa.
Pode-se, enfim, ser contra qualquer coisa; o que não se pode é ser aninha-franco-atirador: falar do que se desconhece, com toda má-intensão classista (e, diria, escravocrata) do mundo.
[…] os leitores mais antigos devem lembrar, já tive um pega-pra-capar virtual com Henrique Wagner, mas morando na mesma área, acabamos nos conhecemos pessoalmente (o que alguns amigos em comum já […]
[…] o Maestro-Diretor esteja mais presente em espetáculos que ele contudo não rege. Gostem ou não, Ricardo Castro sempre estava; e especialmente, da série Mozart nas Igrejas, que Ricardo fazia questão de executar todos os […]
[…] A OPES no entanto deu passos adiante: não apenas permite, como sugere e incentiva que quem for assisti-la grave tudo e coloque no YouTube, e tem um twitter deliciosamente atuante. Os passos adiantes não são apenas estéticos: talvez tenha sido a Sinfônica nacional que melhor resolveu o dilema “orquestra de funcionários públicos” X “orquestra com dinâmica de indústria fonográfica”, mantendo bons salários, um corpo de músicos mais do que suficiente, novas seleções e contratações frequentes. Trazer esta experiência é um bom caminho para resolver os impasses que Ricardo Castro não pode atravessar. […]
É impressionante a ignorância deste tal sujeito que escreve pro expoart….
[…] online da Reforma Cultural Bahiana, mas só porque tem efeitos na realidade: porque posso me sentar ao lado de Ricardo Castro num concerto da OSBA e discutir, presencialmente, os rumos da or…; porque posso aguentar o choro de um então desconhecido e hoje amigo íntimo Pedro Pondé […]
Muito bom!!!!
Não foi só criar um sinfônica juvenil na terra do axé em três anos não, a Juvenil foi a primeira brasileira a tocar na Europa, ovacionada em Londres, estreando Musica de Marlos Nobre. Ces não leem a imprensa não macacada? Até a Veja ja falou do NEOJIBA. Quando foi mesmo que a imprensa nacional falou (bem) de orquestras sinfônicas baianas mesmo? Não me lembro tão pouco de ter visto nos guias mensais as temporadas da OSBA antes. Vejo agora até artista da Deutsche Grammophon… E esse negocio de morar na Suíça é conversa fiada. Dudamel mora entre Gothenburg, Los Angeles e Caracas! Aliás ainda não entendi como é que o tal gestor no meio disso tudo conseguiu criar a primeira OS de Cultura na terra dele… Égua, vai ser mal gestor assim no raio que o parta! Meu, ces tão loucos aí na terra do Caymmi…
Até hoje esse foi um dos melhores textos que “colocam no lugar” alguém que escreve merda. Acho que só Millôr Fernandes, ao criticar Brejal dos Guajas, o superou. Parabéns e obrigado por publicar.