Sua Alteza, a guitarrinha

05/11/2010 at 6:40

A Imperatriz da Bahia

Coisa que passou em silêncio estridente pela mídia local bahiana (aquela que não apenas não divulga, como esconde de seu público a existência da Orkestra Rumpilezz e do Baiana System, num ato de sonegação intelectual e furto cultural) é que a tripla vitória de Jaques Wagner mês passado (elegendo expressivamente Walter Pinheiro e Lídice da Mata ao senado federal) foi comemorada ao som de frevo elétrico, com Armandinho tocando num Largo de Santana (Rio Vermelho) lotado.

É bastante significativo isso. A começar pelo fato de que, 3 anos antes, Armandinho foi o único artista a – “ironia das secreções”, diria Georges Canguilhem – lamentar a morte de ACM. Nem o axezão carlista na época derramou furtiva lágrima (de lá pra cá, Ivete Sangalo , ex-carlista de juazeiro, tornou-se admiradora mútua de Jaques Wagner, por intermédio dos gênios Letieres Leite e de seu irmão Jesus Sangalo). Mas Armandinho, o cara que foi mais sacaneado pelo Carlo-Axé-System, sim – e mais: no Museu du Ritmo, do homem que fez a resistência interna ao Axé-Sistem, Carlinhos Brown.

Naquela noite de sexta-feira em que Malvadeza infartou finalmente, noite cuja entrada era 50 reais e que portanto congregava a nata financeira e social da Bahia (eventualmente parte da intelectual), e apesar disso, ao pedir “um minuto de silêncio em homenagem ao Senador, porque o saldo (sic! muito sic!) foi positivo”, Armandinho foi vaiado! – inclusive por mim, que sempre o considerou um gênio que em nada deve a Jimmy Page ou Eric Clapton (e que, portanto, torna o mexicano Santana um aluno de pré-primário).

Vaiado não tanto por quase todos alí serem anti-carlistas – antes porque mesmo os carlistas presentes sabiam que havia neste dito uma contradição infantil, neurótica, quase demente.

Não imaginava, naquele momento, o filho de Sêo Osmar, que seria a ausência de ACM que daria novo status a guitarrinha bahiana inventada pelo confrade do velho, Sêo Dodô. O que Armando teve então foi uma crise aguda de Síndrome de Estocolmo – aquela pela qual a vítima se apaixona pelo algoz.

É este tipo de deformidade psíquica que a Era Jaques Wagner sana: a saudade do lanho, o amor ao chicote.

Mas não é só. Wagner é uma espécie de Octávio Mangabeira redivivo e ao contrário: se Antonio Balbino dizia que a Bahia tinha de deixar de ser “um balneário carioca”, é o carioca judeu-francófono Jaques Wagner que está consolidando esta tarefa interrompida em 1970 (e desde sua interrupção, Salvador virou uma Havana de Fulgêncio Batista, para paulista ver – bem, não mais…).

E qual o símbolo maior da Avant Gard de Mangabeira senão a guitarrinha? Nela estão o salto tecnológico aliado a sistematização e reinvenção estética; é nela que o frevo, pernambucano, se encontra com o Rio de Janeiro e com o mundo cosmopolita; sua estrutura, tão minimalista e sofisticada quanto as canções de Caimmy, é tão triste quanto letra de Batatinha, e tão debochada quanto Riachão. Popular e erudita a um só tempo, a guitarrinha bahiana é o berimbau, se Walter Smetak o tivesse inventado. Em um pedaço de cepo maciço de 70cm encontra-se todo o processo de modernização estética, geográfica, tecnológica, econômica e social da Bahia entre os anos 1950 e 1980.

E estava esquecida. Nos últimos quatro anos ela não apenas recuperou importância; ela se reinventou pelas mãos do Retrofoguetes e do Baiana System; se reintegrou a negritude (o frevo elétrico é o lado branco do carnaval bahiano; o negro é o afoxé e o ijexá, e o samba-reggae e o pagodão samba-duro)  através da Orkestra Rumpilezz fazendo arranjo pra obra-prima que é o ChaChaCha. E não o fez sozinha: ajudou a recuperar os primórdios do Axé-Music (que não teria surgido sem o frevo-elétrico), com Morotó trazendo Jackson da Banda Mel pra tocar nos Retrofolias e Retrorressacas.

Sua alteza imperial voltou ao trono, e não como mero carnaval.

Seo Osmar, vivo estivesse, teria tocado um Hino ao Senhor do Bonfim, de olhinhos fechados, na slide guitar, no Largo de Santana no último dia 1º de Outubro.

* * *

Em Tempo: Segunda-feira dia 16 de novembro, 21h, São Paulo poderá conhecer o Baiana System lá no SESC Pompéia. Não é nada, não é nada, essa galera “Da Revolution Ao Rebolation” está fazendo pela guitarrinha bahiana, pelo frevo elétrico, pelo samba-reggae, ijexá e pelo pagodão samba-duro o que o MangueBeat (de Chico Science e Fred 04) fizeram pelo maracatú e ciranda. Com uma diferença: se em Pernambuco houve um hiato de 10 anos entre modernizar o maracatú (Nação Zumbi) e o frevo (Spok Frevo Orkestra), aqui orquestra de jazz e e a reinvenção popular pelo rock/hip-hop andam lado a lado: o Baiana System é irmão caçula da Orkestra Rumpilezz, e ambas primas do Retrofoguetes, se não notaram ainda.

Então, Sampa City, show imperdível, com cocktel no cockpit, fóbica na avenida e abadá pra assistir.