Salvador, capital Oslo

18/08/2010 at 22:19

Há sujeitos que habitam Salvador crentes de que moram dentro do Círculo Polar Ártico: só isso explica sua predileção por retirar completamente cobertura vegetal e sombreamento arbóreo: aqui faz um frio dos infernos, e a gente precisa se expor a este sol ateniense, não é mesmo?

Só isso explica o fato de que certas casas, edifícios comerciais e residenciais, prédios públicos, instituições privadas, lojas, abdiquem (em nome da estética?) de suas árvores numa cidade tórrida no verão (na verdade, nem tão torrida se houvesse cobertura vegetal abundante: o Corredor da Vitória tem clima agradável e ameno sempre) e que chove a cântaros no inverno (e está úmida 370 dias por ano). Retiram planta, muram, impedem ventilação, e depois reclamam que o calor (que eles ajudaram acausar) daqui é incivilizado – “só preto mesmo pra aguentar”, dizem uns, pensam todos os outros.

Exemplo? Veja abaixo esta casa no Alto do Itaigara / Caminho das Árvores (que ironia…) próximo ao Colégio São Paulo:

É verdade que caiamento de tinta é menos mal do que a modinha de cobertura de pastilha cerâmica, que nada mais é do que neo-colonialismo disfarçado de pos-modernice neo-liberal: tenta-se amenizar o calor de dentro do imóvel, aumentando o calor de fora – e sem circulação de ar natural, tome-lhe ar-condicionado aumentando mais o calor de fora e esfriando patologicamente dentro. E é também verdade que tirantes de madeira são gentis. Mas, fora isso, este cidadão optou por morar numa masmorra do Período Edo em Osaka, é isso? Observai bem as janelas, totalmente em vidro escurecido, hermeticamente fechadas e em posição frontal a rua: se abrir entra barulho – vento que é bom, necas! Devem ter sido feitas sob o auspício de algum Feng-Shui de livro de auto-ajuda…

Esta crítica a leitura climática colonialista que a arquitetura atual de Salvador faz é promessa nossa desde junho deste ano. Tanto mais que o modernismo brasileiro, e bahiano com Diógenes Rebouças, optava por adaptar-se ao nosso clima, usando nossos recursos – inclusive os advindos da tradição colonial portuguesa, como muxarabies e treliças impedindo a entrada de luz e calor mas permitindo o fluxo de ar. Um uso de nossa historicidade de modo arrojado e crítico. Duplamente os antípodas do que se vê hoje.

Nem tudo está perdido. Por vezes a ausência de ajardinamento é justificada pela opção de cercar o terreno com muro. Faz-se um jardim vertical, pois não?

Casa também no Alto do Itaigara / Caminho das Árvores (próximo ao Colégio São Paulo)

Não é apenas o sombreamento da luz que vem de cima, com árvores, que diminui o calor. A solução em heras e carramachões, diminuindo a reflexão solar do solo (com uso de tijolos vazados e gramados dentro) e das laterais também ajuda muito a criar microclimas domésticos e públicos confortáveis. Não apenas aqui: quando chamamos sarcasticamente de “capital Oslo” há um sentido: cidades muito frias precisam sim ter menos cobertura vegetal para que se exponham ao sol e ao calor – ocorre que sua própria vegetação já tende a ser menor e menos folhosa.

E não se trata aqui de ter uma habitação que “valorize a rua e o espaço público”. Todas as casas aqui fotografadas são muradas e num bairro carrocêntrico e elitista, fora do centro expandido da metrópole nagô. Porque optar por habitações que construam microclimas agradáveis é benéfico para os próprios moradores, mesmo que jamais usem as ruas: o resfriamento no interior do imóvel, se feito com vegetação ao invés de com parede, azulejo e ventilação artificial, é muito mais estável e ameno – diminuindo inclusive a entrada de ruído da rua, e o vazamento de ruído doméstico para a rua. É uma questão portanto de egoísmo extremo, mas inteligente, tal qual usar bicicleta como meio de transporte prioritário ao invés do automóvel.

Estes recursos de microclima também são usados por habitantes de construções mais humildes, e irregulares – favelas mesmo, como se mostrará em outros posts da série (e olhe que em favelas e invasões a própria circulação de ar já está de início comprometida pela topografia e ocupação cerrada do solo).

Por enquanto, fiquemos com uma casa da mesma região exemplar em cobertura vegetal para microclima interno e externo, apesar do muro. Quem não preferiria morar em Salvador nela do que naquela masmorra caiada do início do post?