Gentrificationtion!

05/08/2010 at 0:35

Para qualquer um que tenha circulado regularmente pelo Itaigara nos últimos anos, é evidente que o bairro tem saído de sua condição de subúrbio de classe média alta, e ganhado vida boêmia própria e interessante, aliado a um aumento do seu uso pedestre (e proporcional diminuição de sua marcante carrodependência).

O processo se iniciou sem dúvida quando do começo da gestão municipal de João Henrique Carneiro e seu projeto “Adote uma Praça”, em que empresas privadas podiam explocar o uso de praças públicas para propagandas comerciais nas mesmas, desde que as reformasse e desse manutenção periódica nelas. Tem funcionado. Neste projeto, uma das primeiras e mais bem sucedidas intervenções foi no então fim-de-linha da Pituba, hoje Praça Ana Lúcia Magalhães (a filha de ACM que se matou por ser lésbica).

A reforma da praça é questionável do ponto de vista estético, e o parque infantil fica muito isolado e próximo ao terminal de ônibus, o que é um erro; mas, no geral, os acertos abundam. A área de ginástica não segue o padrão de aparelhos de concretos do resto da cidade, são de madeira, móveis, e com isso geram uma maior possibilidade criativa de uso. Há diversos quiosques que podem, e eventualmente são, ocupados com convescotes, picnics, e casais namorando. Principalmente, fez a classe média alta do Caminho das Árvores sair do play-ground do edíficio com 10 ítens de lazer e ocupar a praça. Não apenas ocupar, mas se apropriar: sentir que o espaço público é de todos, e também de cada um.

Isso gerou uma dinâmica econômica na área inusitada: começaram a pulular restaurantes e cafés ao redor dela, num ritmo impressionante – e com uma capacidade de manutenção do empreendimento a longo prazo digna de nota: muitos estão lá a mais de dois anos. Claro, há ainda alguns defeitos: os estabelecimentos comerciais têm pouca personalidade e ocupam espaços muito vastos, gerando qualidade precária no atendimento; e ainda previlegiam demais o automóvel. Mesmo cafés de regiões próxima, mas com alto padrão de qualidade de atendimento e de identidade migraram para lá, o que fez o atendimento deixar a desejar e perder seu caráter sofisticado e identitário – é o caso do Tortarelli Café: charmoso e discreto quando ficava na Alameda das Espatódias (núcleo duro do alto-luxo do Caminho das Árvores), muito parecido com o lendário Dona Chícara (Rua Afonso Celso, Barra Avenida), hoje na Praça Ana Lúcia Magalhães não passa de uma lanchonete com bons produtos e almoço comercial.

São efeitos colaterais da gentrificação de uma área que só agora está aprendendo a ser urbana de verdade. Até porque este efeito começa a se propagar para áreas mais distantes: a abertura do Cine Vivo SalaDeArte no Shopping Paseo Itaigara é parte desta dinâmica – e depois que ele lá abriu não é incomum ver casais homossexuais passeando a luz do dia a pé e trocando afagos no conservador e anti-rua bairro do Itaigara, o que antes era inimaginável.

Outro efeito é o Preto, da foto acima e das que seguirão aqui em baixo. Na Rua Guilhard Muniz, já não se encontra mais na área de influência direta do ex-fim-de-linha da Pituba. E no entanto é esse charme aí: minúsculo, eliminando vaga de automóvel a partir do fim da tarde e ocupando com mesas, cadeiras, gentes; apertadinho e gostoso como um pub, e com um machiatto e um capuccino italiano dignos de nota. E ah, soda italiana também!

Pode-se alegar que a área da Rua Guilhard Muniz já era rica em comércio local e restaurantes – só que sem charme, identidade ou relação com a rua (o Doc é interessante, mas fechado em si próprio). Não é o caso do Preto, que ao lado tem um outro café igualmente ocupando calçada e rua, embora com menos charme e um cardápio menos eficiente, e que abre para café da manhã todos os dias (na verdade, é 24h).

O Preto aliás tem a sacada de não ter subtítulo: não é “Preto Café”, nem “Preto, Bar & Restaurante” ou “Preto Bistrô”. É Preto, simplesmente – seguido de uma listagem despretenciosa de serviços: Lanche, Almoço, Café, Happy Hour.

* * *

Se a gentrificação chegou até fora do Centro Expandido de Salvador, é sinal de que dentro deste e de seu Centro Antigo ela deve estar andando mais madura e rápida do que se imagina. Aliás, já dissemos antes que a Boate Boomerangue ajudou não apenas a re-configurar o Rio Vermelho, como outras áreas da cidade indiretamente, e que seu fechamento não é nem retrocesso nem falência deste processo – ao contrário é sinal de uma nova etapa, mais potente e inevitável. Duvida? Olha o cartaz do próximo Baile Esquema Novo:

É isso mesmo: o Baile Esquema Novo saiu do bunker, e vai pra guerra no meio do antro da mauriçada axezeira – o Bahia Café dos Aflitos.

E mais: exigiu, e conseguiu, que se possa ir de bermuda e chinelo (em outras ocasiões, lá só de calça). E que o apronte & o levante crescente da massa role até a hora que for descansar aos pés do poeta em cujas mãos a lua se deita, mesmo com sol raiado na côncava praça.

E, por óbvio, beijos entre meninos ou meninas não devem causar problema – e estamos falando de um lugar sabidamente homófobo.

Vale repetir: já se fazia hora do Pós-Axezismo começar a mudar a cidade mais ostensivamente. Dissemos que ia ser pela boemia maurícia da Pituba. Erramos de bairro, foi melhor do que esperávamos: vai ser onde, no Centro Antigo, a boemia maurícia da Pituba vai (quando se digna a ir para dentro da Reconvexa). Profecia cumprida, me chamem de Cassandra que eu atendo.

E tudo leva a crer que o Bahia Café dos Aflitos vai se tornar a nova sede-base do Esquema Novo – e não apenas neste sábado próximo, dia 7 de agosto. Por que o Baile, como falsos-profetas alardeavam desde o tempo da Boomerangue, “virou festa de axezeiro”? Não! Porque o Axé-Sistem já era, e está em processo de exumação…

* * *

A gentrificação do Centro Antigo tem chegado a um lugar que eu nunca viria voltar a ser frequentável: o Beco dos Artistas, no Garcia. Há 10 anos atrás, o Beco nem era exatamente um ambiente “gay” – era muito mais um foco de resistência literário-teatral, bastante simpatizante é verdade, ao Carlo-Axezismo que na época nem tinha esse nome e ainda estava em processo ascendente de ganho de força.

Quando o Conexão Arco-Íris (lendário boteco de lá em que já virei noites na cozinha em rodas de leitura de contos de Caio Fernando Abreu) fechou, começou a decadência do lugar. A resistência se mudou brevemente para o adorável Santo Expedito – bar & sebo de LPs de Jazz no meio da Carlos Gomes, que funcionava até a madrugada. Para chegar lá, se andava no meio dos travecos. E era um lugar alienígena para a região: no meio do (mais-que-)baixo-gay de Salvador, era discretamente elegante e bastante heterossexual para os arrabaldes. Mas, como dissemos, durou pouco.

Aí foi queda & coice. Um dos lados do Beco dos Artistas foi totalmente comprado por um mesmo dono, que virou uma mega-store de bicha pobre, o Bar Camarim (que só não chegou a ter motel, porque o resto teve). A frequência foi indo, foi indo, virou um lugar de ter gente batendo boquete e cheirando cocaína em via pública. E sempre tenso, prestes a acontecer algum ato de violência desagradável e inesperado.

Isso também mudou. O Dia do Rock este ano foi lá, e ia ter show da panssexualista Você Me Excita. Acabou tendo da decana The Honkers. Nenhuma das duas têm laivo de ser “música de viado” – muito ao contrário, fiés a raiz heterossexual rockabillie e anarco-sexual do eletro-punk. O Bar Cultural, onde ocorreu o evento, é um boteco, mas tem um detalhe que me lembra os velhos e bons tempos do Beco dos Artistas nos anos 1990: o barman é eficiente, simpático, bonito e másculo. Coisa incomum em Salvador é encontrar barmans que não sejam submissos e acabrunhados, e ao mesmo tempo sejam competentes, com que se possa conversar. Esta é uma honrosa exceção.

E a mega-store de bicha pobre, o Camarim? Bem, acabou. Toda a área foi comprada por outro dono, lacrada seu acesso a rua e virou um espaco entitulado Teatro Bahiano, muito mais cult, muito menos ligado a um submundo desinteressante e que deterioriava a área. O Beco continua sendo para a população de baixa-renda – só que está em franco processo de reconquistar sua sofisticação perdida. Inclusive, ao que me consta, o povo do Baile Esquema Novo quer fazer alguma coisa por lá…