O Som das Sextas XXII

08/07/2010 at 22:59

Ir ao Bal Masqué em Recife no pré-carnaval deste ano me fez perceber algo bem pouco evidente na civilização pernambucana, e crucial na sua relação com a Bahia: existe um estar-no-mundo olindense, que nada tem a ver com o recifense, e por vezes se opõe insubordinadamente a este. Descobri isso por ter passado a maior parte do tempo com amigos que são de Olinda e em Olinda moram, tanto que se perdem na vizinhamente colabada Recife.

Se Recife é a cidade retilínea, massiva com intervalos feitos pelas orlas de rios enormes, metrópole laica, mais moderna capital das Américas durante o século XVII, a Amsterdã tropical, e mais ou menos judaica; Olinda é a resitência portuguesa, encimada em morros e deformada por estes (como Salvador, uma cidade em que a topografia se rebelou contra o urbanismo imposto pela metrópole eclesiástica). Menor, mas mais católica: se as igrejas centenárias de Recife se escondem envergonhadas em becos, as de Olinda flutuam exuberantes como as de Salvador e de Ouro Preto.

(Ninguém se engane em simplificar dizendo que Olinda é barroca e Recife não. Recife é tão barroca quanto Salvador, mas de um modo oposto: aqui, o dourado das igrejas e do azeite de dendê, a sensualidade libertina de Gregório de Mattos e Castro Alves, e asubversão mística de Antonio Vieira. Recife é o barroco holandês, uma cidade Spinoziana: um racionalismo radical que só o horror a crença e ao desejo poderiam gerar. O frevo é a expressão viva do conatus da Ética Conforme Um Geômetra, em forma de música e dança: a potência do corpo animal, orgânico, a serviço de uma razão dominadora, pulsante e agil.

Dito de outra forma, se Salvador é, com suas colinas ocupadas, uma “visão do Paraíso tanto quanto o Rio de Janeiro – esta sim uma cidade em nada barroca, plenamente neoclássica -, Recife é o sofrimento eterno, controlado pela razão. Um Carnaval No Inferno).

Esta diferença se manifesta claramente em seus autores. Não precisa nascer em Recife para ser recifense como autor: o olindense Lenine faz canções retas, calculadas, comedidas até. O recifense Silverio Pessoa é totalmente Olinda, por sua vez: escrachado, espontâneo, inventivo e incontrolável. Nenhum autor atual marca tanto esta diferença quanto Eddie.

Olinda é, desde sua topografia urbana até o hábito de não se levar a sério e a presença ostensiva do samba, o elo-perdido entre Pernambuco e Salvador. Nisso, entendo que Eddie foi muitíssimo feliz ao compor e gravar A Gente Tá Querendo A Vida Boa, em que a referência ao frevo-elétrico célebre de Caetano Veloso (“lua no mar / que é pra canoa passear / a vida boa passa no real que há / coração / será vida boa?“). E daí talvez suas tão frequentes vindas a Reconvexa, e a acolhida que nós lhe damos.

Aliás, é no samba que Eddie mostra o olindense que é. Embora sejam samba-rock, e não o patusco tradicional de lá. Eddie é tão canção, mas tão canção, que tem não um, nem dois, mas pelo menos três hinos do Baile Esquema Novo – o acima posto, e os sambinhas Baile Betinha e Pode Me Chamar Que Eu Vou.

Não obstante Chico Science ser de nascença olindense, se colocava do lado mais reto e plano do Capibaribe; talvez porque a outra banda do MangueBeat em seu nascedouro fosse tão recifense que fez um manifesto prescritivo, Caranguejos Com Cérebro, refiro-me evidentemente a Fred 04 do Mundo Livre S/A. Fazer manifestos estético-programáticos vai contra a insubordinação esculhambada de Salvador e de Olinda – onde o frevo é mangueado e do povão, e não uma manifestação ordeira da aristocracia nas ruas (frevo de pau-e-corda, de bloco) ou nos salões (os frevos de palco dos heráldicos bailes a fantasia). Esta tentativa sistemática de criar uma cultura pernambucana nova, mas enraizada em tradições, antena parabólica no mangue voltada para o mundo, talvez tenha excluido, à guisa de enaltecer o popular tradicional (e mitificado), o que Pernambuco tem de mais popular (urbano e de consumo): o brega.

O brega que se manifesta no sucesso lá dos paraenses do Calypso. O brega de filmes não obstante cults como Amarelo Manga. Dos grupos pós-Mangue, o único a perceber a importância de resgatar o brega dentro de uma lógica Mangue foi justamente o único a ser rigorosamente independente, rejeitando de uma só vez Estado e indústria: o Mombojó, e ainda assim tardiamente e em projeto paralelo como bem lembra Pedro Alexandre Sanches. No entanto, de modo mais comedido, não escapa ao Eddie esta percepção – de que é no brega que a canção agonizou mas não morreu, e é lá que ela encontra seu real apelo de massas (como, paralelamente, na Bahia, é no pagodão, na suingueira e no arrocha – valorização que se deveu primeiro a Orkestra Rumpilezz, e depois ao BaianaSystem). Daí sua adorável versão em bolerão para um clássico do frevo-canção: É De Fazer Chorar (oh, quarta-feira ingrata, chega tão depressa, só pra contrariar).