O Som das Sextas XX

05/06/2010 at 8:28

A Hora & A Vez Da Música Instrumental

Tentrio

É um paradoxo que o retorno da força do formato canção se dê concomitantemente, paralelamente, imbricadamente com o fortalecimento da música instrumental no Brasil. Este paradoxo já apareceu aqui de soslaio algumas vezes. Por exemplo, quando colocamos um Frevo de Palco num dos Sons das Sextas.

Mas, como dia 11 de junho, sexta-feira que vem, três bandas de rock puramente instrumental se juntam na Zauber (sob efeitos indiretos do Fora do Eixo, que é – literalmente! – junto com o Conexão Vivo uma das principais linhas táticas para desconstruir o monopólio da indústria fonográfica país afora e adentro): Pata de Elefante, da nossa distante irmã Porto Alegre, os estourando Vendo 147, e os prestes a estourar TenTrio. O TenTrio merece um detalhe a parte: mais sofísticado, tem canções (sem letra) que intensionalmente lembram o primeiro Led Zeppelin (o que se nota até pelo nome de uma delas, Cachalote, em óbvia referência a mítica Moby Dick); e Eduardo César é um contista que escreve tão bem quanto toca e compõe (sem letra), um cinéfilo rigoroso, um polemista político aguerrido. A coincidência de se apresentarem com os gaúchos do Pata de Elefante me faz lembrar que Iberê Camargo era grande artista plástico, mas também escritor; que Carybé idem; que Jorge de Lima escrevia e também pintava. Talvez esteja aí um desses casos raros de duplicidade artístico autoral.

Tal paradoxo já aparecia previamente a escolha dos componentes que fizemos aqui no Cartel sobre a Canção – série de 4 + 1 entrevistas em 2009 com jovens cancionistas (e um não cancionista porque a frente de uma big-band de jazz sinfônico, a Orkestra Rumpilezz) de Salvador. Estava na escolha de Morotó Slim, do Retrofoguetes, como um dos entrevistados. Não restava dúvidas de que Retrofoguetes fazia canção, embora não-cantável (por ausência de letra). E estava nisso parte do enodamento das questões colocadas no Cartel: como e por que dizem que a canção morreu? que novidades tem a canção agora retomada? qual sua relação com a dança, o carnaval, a cantabilidade?

O Retrofoguetes merece toda a precedência nacional sobre isso. Há quase 10 anos atrás, quando o Dead Billies se dissolveu, eles investiram nesse caminho. Tatearam num primeiro disco irregular, mas tecnicamente irreprochável; mesmo antes, apesar da vociferação de MoscaBillie no Dead Billies, a presença de um instrumental poderoso estava lá – assim como, sendo em inglês, as músicas não eram tão cantáveis assim (embora até hoje levantem o chão do Baile Esquema Novo – aliás, das poucas festas do país que podem colocar música instrumental e fazer o assoalho tremer com gente dançando: seja com a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério – que aliás tenta aproximar o frevo de rua e de palco, instrumentais, do frevo canção, com letra -, seja com Macaco Bong).

Isto é: quando todo mundo achava que o instrumental e a canção tinham perdido pra música eletrônica pré-fabricada, o power trio de frevo-elétrico bahiano apostou em ambas. No longo prazo, ficou claro quem estava certo…

Ocorre que a força do instrumental na contemporaneidade da música brasileira está para-aquém e para-além do rock`n roll. Gostaria de nisso lembrar o quão visionário foi Pedro Pondé que, ao retomar com força o formato-canção com todas as consequências políticas (e mesmo eleitorais) que tem, chamava o trabalho d’O Círculo de “rock popular brasileiro” – no sentido de que o rock não podia ser da classe média insatisfeita apenas, tinha de se popularizar; e no sentido de que não poderia haver nenhum intermédio entre ele e a música brasileira propriamente dita. Na entrevista que nos concedeu no Cartel sobre a Canção ele enfatizava que, antes de ser cantável e de ter relação com a letra, a canção tem de ser assoviável; e que, no caso específico de O Círculo, nada seria possível sem a alta qualidade de intérpretes instrumentais como Daniel Ragoni e Taciano Vasconcelos (cuja excelência da guitarra está ainda por ser reconhecida, talvez até por ele próprio).

E, por outro lado, só recentemente descobri a formação em violão clássico de Thiago Kalu, sem o que seus sambas de melodia intrincada e por vezes atonal não seriam possíveis. E o que faz a Formidável Família Musical senão radicalizar o paradoxo instrumental X canção, transformando a voz de Damm não apenas em um instrumento, como também em verdadeiros solos de onomatopéias em si instrumentais? Neste sentido, o Dois em Um, também de Salvador, que aposta numa neo-bossa silenciosa, é altamente instrumental – inclusive sua violoncelista é música de carreira da Sinfônica do Estado.

A força da música instrumental atual, contudo, não passa apenas pela música dançante ou radiofônica (e cabe ainda ressaltar a importância tática do Festival de Música Instrumental na Bahia, levado adiante heroicamente por Fernando Marinho). Ela se manifesta na força renovada das sinfônicas nacionais: todos os louros a John Neschling e Ricardo Castro. Se manifesta também no surgimento potente de sinfônicas jovens como programas de estado e de governo, como o Neojibá (cujas versões para composições eruditas modernistas e pré-modernistas latino-americanas são totalmente canção, e daí sua opção recente por mergulhar nas obras de Gershwin e Bernstein), a Sinfônica de Heliópólis e as de Minas Gerais. Ainda na Bahia, a retomada das Jam Sessions de Jazz no Museu de Arte Moderna Solar do Unhão aos sábados é marca disso – inclusive porque o formato atual é muito mais cancioneiro do que o jazz fusion hermético do tempo de Heitor Reis.

Coisa pouco óbvia é que a força da música instrumental (aliada sempre ao retorno do formato canção) seja um vetor importante de descentralização da produção musical brasileira. Vem de Mato Grosso do Sul uma das principais sinfônicas do país, utilizando viola de coxo e outros instrumentos regionais em seus concertos. É assim que o Acre pode nos dar a excepcional banda de rock também instrumental Caldo de Piaba, o Amapá o Mini Box Lunar e o Mato Grosso a Vanguart (que não são instrumentais, mas onde o instrumental burilado é fator crucial de sustentação da canção), e o Pará o LaPupuña. Aliás, é embarcando nessa maré que o Programa de Fomento a Filarmônicas, recentemente lançado pelo Governo do Estado da Bahia, vem somar de modo perfeito.

Cabe aqui de novo menção especial ao Baiana System. No início deste texto, falamos que numa época em que a música eletrônica (bem mediocre, e aí está mais um sintoma do neoliberalismo nas artes e na estética) reinava de modo a sufocar a instrumental e a canção, o Retrofoguetes apostou nestas duas. Mas é só com o Baiana System que uma coisa se integra a outra: o Baiana System, abarcando tudo, inclui em suas músicas recursos da e-music sem deixar de fazer canção, ricamente instrumental explorando todas as potencialidades da guitarrinha-bahiana (e também nisso o Baiana System é o estado-da-arte no anti-axé/pós-axé, superando e reintegrando todas as contradições que se possa supor).

Uma nota contudo, que insisto em repetir como samba melancólico: falta o Maranhão! É no Bumba-Boi de Orquestra e de Matraca que os formatos canção (com rigores de cante ibérico, às vezes) e instrumental (inclusive filarmônico) vêm se juntar numa dupla-hélice há mais de século. E no entanto, São Luís segue injustamente isolada desse processo nacional em que ela tanto teria a contribuir…