Do Retrocesso ao largo da des-Ordem

13/05/2010 at 21:44

Calado, ele é um grande pensador...

Caetano Veloso é um cara que se sacrifica todo dia em nome da liberdade de expressão no Brasil – provando com a própria imagem pública que democracia é, no limite e radicalmente, o livre direito de dizer besteira com ar de coisa séria. Esta semana, cometeu em O Globo um artigo de des-opinião (no qual ele não é contra nem a favor de nada, muito pelo contário. Ou não? – Ainda assim mente, deturpa, e age de modo totalmente inconsequente do ponto de vista político e cívico) que é um verdadeiro desastre ferroviário, sem sobreviventes (porque o trem estava vazio de idéias que pudessem vir a ser mortas).

Comentemos aqui, então, por mor & míster jogar luz na barafunda pseudo-barroca de ascrânios & edimônios que o mui dileto filho da Purificação de Santo Amaro oblou. (Porque, como se verá, Caetano Veloso escreve em prosa tão bem quanto fala em entrevistas. O texto é bloated, para lhe ser gentil. Ao golpe de olhos, parece um jogador de futebol de terceira divisão recitando Padre Antônio Vieira, em Latim, a respeito de neuroquímica).

Prepare-se, leitor – é cansativo como só Caetano Veloso sabe ser:

Quando disse a Leminski, no começo dos anos 70, que me encantava a recuperação do Largo da Ordem, no centro de Curitiba, ele riu: “Você adora enganações feitas para a classe média.” Respondi que adorava mesmo. Sempre à esquerda, Leminski via limpeza, iluminação, policiamento e restauração de prédios como maquiagem – e olhava com desconfiança meu interesse por Jaime Lerner, o então prefeito da cidade que fora indicado pelo governo militar. Eu odiava o regime – e desprezava os que chegavam ao poder em acordo com ele. Mas não via o Largo da Ordem como enganação. Bem, talvez se pudesse dizer que aquilo se dirigia à classe média. Mas eu ri ao dizer diante da cara do poeta: “Eu sou classe média.” O que de fato pensei foi: se se fizesse algo assim com o Pelourinho, o Brasil decolaria – ou estaria mostrando que já decolara. Era sonhar demais.

Ou seja: segundo Caetano, ACM foi o homem que conduziria, como conduziu, o Brasil e a Bahia ao paraíso da equidade e da civilidade.

Ainda nos 70, os sobrados da área estrita do Largo do Pelourinho foram restaurados. Lembro duas reações negativas: Candice Bergen e Décio Pignatari. Em ocasiões diferentes, ouvi de ambos: “Parece a Disneylândia.” Eu próprio, diante das tintas plásticas usadas, apelidei o novo Pelourinho de Giovanna Baby. Mas a verdade é que, tendo crescido em Santo Amaro, eu não achava artificial uma rua com casas antigas pintadas com tintas novas: era o que acontecia ali a cada fevereiro, mês de Nossa Senhora da Purificação. Achei que Candice e Décio pensavam que casa velha tem que ter limo e reboco caindo. Décio, de Sampa, queria velharia mais “autêntica”. Candice, de Los Angeles, reviu o que expõe a artificialidade de sua terra natal: Disneylândia. Já eu só via o esboço de realização da promessa do Largo da Ordem.

Aqui, Caetano confunde as duas tentativas de Revitalização do Maciel de Cima (como então era chamado o Pelourinho) por Lina Bo Bardi – uma antes e outra logo depois da Ditadura -, com a realizada no e pelo carlismo, que era uma mera Reforma des-ocupacional, criando como efeito colateral mais notório o bairro de Coutos, no Subúrbio Ferroviário, que mais parece um ensaio-geral do pós-apocalipse ou um esboço de cenário de um filme de Kurosawa sobre a Terceira Bomba Nuclear.

Foi nesta reforma que o Pelourinho passou a ser chamado Pelourinho. Pra quem não lembra, pelourinho (como diz o próprio Caetano em um de seus últimos lampejos de contribuição cultural a nação – lá se vão 10 anos) é o nome do lugar “onde os escravos eram castigados” – e onde, na época em que a Reforma de ACM “dava certo”, uma fila de soldados, quase todos pretos, dava porrada na nuca de malandros pretos, e de outros quase brancos tratados como pretos (só pra mostrar aos outros quase pretos que são quase todos pretos).

“Confunde” é bondade minha. Caetano conhecia Lina Bardi pessoalmente. Viveu, de perto e de longe, ambas as tentativas de restauro. Ele quer é confundir o leitor! Um leitor provavelmente carioca, e do Leblon, um vizinho seu que talvez nunca tenha aqui vindo! Decidam se ele faz isso por preguiça mental ou por mau-caratismo intelectual. Pelo respeito que tenho ao Caetano de Circuladô, omito-me.

Nos anos 90, toda a região do Pelourinho ganhou o tratamento que eu imaginara utópico em 1972. Há queixas contra os métodos usados para a retirada dos moradores. Há a frase bonita de Verger: “Devia se erguer no Pelourinho um monumento às putas.” Elas é que mantiveram de pé esse pedaço da cidade. Em 1960, vendo a harmonia de formas exibida em matéria deteriorada, eu me sentia fascinado também pela degradação dos habitantes. A prostituição mais anti-higiênica manteve os sobrados de pé. Casas sem moradores caem. As do Pelô exibiam as marcas da decadência da humanidade que as povoava e as mantinha erguidas.

Aqui, peço ajuda aos universitários: eu não entendi nada!

  1. ou bem Caetano acha que um bairro histórico se mantem vivo por seus habitantes também históricos – e aí ele tem, por necessidade lógica, de achar a Reforma de ACM uma merda total;
  2. ou ele acha que tem de ser de modo higiênico e autoritário que se retire pobre de bairros que foram ricos a 5 séculos atrás – e ele assuma de uma vez que é carlista.

Esse meio termo, novamente, é ou covardia moral ou desonestidade lógica. Decidam aí.

ACM é um nome que se evita – a não ser que se queira xingá-lo ou adulá-lo. Medir objetivamente seu legado é anátema. Tou fora.

“Tou fora”. “Tou” fora! – poderia haver um modo pior de usar a variante oral na escrita?!

E “Tou fora” se refere a que? Que período? Que termo da oração anterior? Ou seria a subsequente?

Neste trecho, Caetano parece estar transcrevendo (mal!) uma entrevista gravada de si próprio consigo mesmo ainda em formato K7.

(…)

A essa altura, ele [ACM] já tinha feito as avenidas de vale (um projeto de 1942), ligando entre si partes distantes da cidade (outrora com tráfego apenas nas cumeadas).

De novo, Caetano mente e sabe que mente. As Avenidas de Vale são de Mario Leal Ferreira (o Vale de Nazare e a Centenário, traçado de Diógenes Rebouças), executadas em sua maioria durante o nascimento da Avant Gard no Governo Octávio Mangabeira, e depois na sua continuação com Antonio Balbino e no ocaso desta era com Luiz Vianna Filho. ACM só assumiu o governo em 1970; em 1967 era apenas prefeito. Das avenidas de vale ACM só fez a Mario Leal Ferreira (a última a ser executada) – nome que ele escondeu sob o apelido de Bonocô, já que fazia parte da metodologia carlista soterrar a história pregressa. A avenida Luís Vianna Filho, que ACM escondeu sob o nome de Paralela, não é uma avenida de vale, muito ao contrário do que se diz, e por motivos auto-evidentes.

De resto, se apropriar de idéias de adversários, concretizadas anteriormente, e vender como suas também era um artifício carlista (que Caetano parece exercitar em O Globo). ACM fez isso com o Pólo Petroquímico de Camaçari (projeto de seu arqui-inimigo Rômulo Almeida), faria também com Mario Leal Ferreira.

O que ACM fez foi expandir Salvador ao norte criando a patologia que o Pelourinho se tornou: um Centro de Capital que não é centro e onde nenhum político transita no dia a dia. ACM fez isso criando o Centro Administrativo da Bahia: a pedra angular da feira-de-santanização de Salvador, fazendo com que a Capital perdesse sua identidade com o Recôncavo Histórico – de onde Caetano Veloso vem e a que ele diz (não sei se alguém acredita depois dessa) amar.

E atraído quadros de alto nível técnico. Na sua volta, retomou os trabalhos do Pelourinho, que floresceu. O escolhido para dirigir o projeto foi o antropólogo Vivaldo da Costa Lima. Vivaldo, cujo amor pela cultura do povo baiano não pode ser superestimado, não acolheria decisões malévolas.

Caetano, quem acolhe decisões e as sustenta é o Governador e o Prefeito – ACM, no caso – e não um técnico por ele escolhido, como Vivaldo…

(de resto, achar que em pleno carlismo quem quer que seja pudesse contestar, em algum grau, a decisão soberana do Tirano é um delírio salvacionista deste senhor).

Seja como for, a restauração, com os atrativos para quem quisesse estabelecer negócios ali, mudou a cara da cidade.

Maquiou. A mudança veio depois, com o esvaziamento do Pelourinho, seus arrabaldes virando cracolândia, e o Maciel de Cima se configurando como a máxima expressão do turismo prostituto e predatório.

Jovens que até os anos 80 nunca tinham ido ao centro histórico lotavam os bares do Pelourinho. Isso deu ao baiano uma nova auto-imagem.

Eu só conseguia frequentar o Pelô logo antes, durante, e logo depois da Reforma de ACM. De lá pra cá, foram mais de 10 anos que ir ao Pelô era pra mim um transtorno a ser feito uma ou duas vezes no ano, e bastava!

Hoje, com a Revitalização liderada por Marcio Meirelles e Beatriz Lima, premiada pela Caixa Econômica (o que Caetano omite por ignorar), vou ao Pelô duas ou três vezes… por semana, e muito satisfeito! Se puder, vou mais vezes. Porque não há uma atração axezeira ou turistoide lá. Porque o bairro está vivo e bem cuidado. Porque a Sinfônica da Bahia toca em alguma igreja lá uma vez por mês (e com ACM isso nunca aconteceu); porque Armandinho Macedo têm um palco permanente, e sempre cheio, lá às quartas-feiras. Entre outras coisas.

E mais: os jóvens a que Caetano se refere são os que vêm de fora da cidade, ou da burguesia soteropolitana que odeia Salvador. Que aprendeu com o carlismo a odiar Salvador. Os jovens de classe média baixa estavam alijados do Pelô. E os que lá nasceram e se criaram estavam em uma das duas drogas, efeitos da reforma carlista: Coutos, que era a oficial, ou o crack mesmo.

O atual governo do PT precisaria se posicionar de forma clara face ao legado de ACM. Sentir que talvez haja desprezo pelo Pelourinho deprime.

Desprezo pelo Pelourinho quem tinha era ACM, que, como dissemos acima, fez a cidade crescer para fora de seus centros antigo e expandido, esvaziando-os ao criar bairros como a Pituba e o Imbuí. ACM detestava o Pelourinho porque detestava povo, gente, pessoas – daí gostar de Brasília e querer governar desde uma “Brasília bahiana” como é o CAB

A explicação dada é que as facilitações oferecidas aos negociantes que ali se estabeleceram são artificiosas. O secretário de Cultura, meu amigo Márcio Meirelles, é o responsável pelo destino da área. Diretor do Bando de Teatro Olodum, Márcio nos deu “Ó paí, ó!”. O elenco que ele reuniu é um espanto de vitalidade. Mas, nesse e em outros espetáculos do grupo, o sarcasmo relativo à reforma do Pelourinho vinha colorir o ódio a ACM.

Depois de invadir a UFBA com as tropas da PM em 2001, e espancar adolescentes, o que ACM conseguiu para sua memória foi isso: ódio. “Ódio e Nojo”, só para nos darmos ao luxo de parafrasearmos presidente da última Assembléia Nacional Constituinte.

Provocou tanto ódio que o seu amigo Heonir de Jesus Pereira Rocha, então reitor da UFBA, teve de romper com ele publicamente no dia seguinte. Não seria mais óbvio constatar o contrário: que a crítica a reforma carlista do Pelô não é para “colorir o ódio a Ele”, e sim a causa (justificável!) deste mesmo ódio? Por que Caetano acha que pode deslegitimar desta forma tão simplória os sujeitos de um discurso aliás vitorioso?

Se ACM atraiu para si “bons quadros de esquerda”, também soube no fim da vida e do carlismo fazer com que todos se afastassem dele. Até seu próprio filho, Luís Eduardo; até o ex-governador Paulo Souto.

Neste parágrafo, Caetano revela outro ranço carlista: o que ser amigo ou não de Marcio muda o que ele diz? Nada. Eu elogio Márcio Meirelles 90% do tempo, e não tenho maiores proximidades com ele, nem ele comigo. Nossa admiração se formou nos últimos 3 anos, porque espontaneamente, cada um de um lado, unimos força pela Reforma Cultural Bahiana (e claro que não fomos os únicos, e este espaço não tem um-décimo de importância que outros atos e outros sujeitos desta reforma tiveram em seus efeitos e causas). Mesmo isso não me impede de criticar, quando precisa – aliás é esta a função que eu me incumbi, e que o Secretário me agradece por cumprir: ser crítico sistemático e orgânico. “Uma nova crítica, que surge com a nova canção” como me disse uma vez Pedro Pondé.

Ser amigo (ou assim declarar-se) de alguém sobre quem se diz bobagem não é um modo de autorizar-se a bobagem dita. Muito ao contrário. Dona Canô não te ensinou estes bons modos elementares?

Eu adorava a peça assim mesmo. Arte é coisa séria. Aquelas pessoas falando e se movendo daquela maneira estão, na verdade, mais sintonizadas com as forças que fizeram possível a recuperação do Pelourinho do que com a demagogia que por vezes se comprazem em veicular contra ela.

A desconexão frasal que Caetano consegue provocar dentro de um mesmo parágrafo me fascina & embevece…

Depois vieram o Recife Velho, o Centro de São Luís, algo do Centro de São Paulo – e sobretudo veio vindo a Lapa.

Comparação esdrúxula em U, onde cujo faz a curva. Nenhum destes centros tem 450 anos de idade (350 para Sampa e Rio, 200 para os outros dois; onde Recife tem prédios de 400 anos é na Boa Vista, Aurora e em Olinda). Nenhum deles foi projetado para ser a Capital Ultramarina Portuguesa, em forma de fortaleza; nenhum ocupa um terreno tão acidentado; nenhum recebeu tantos escravos negros por tanto tempo.

E mais: no caso de Recife e principalmente de São Luís (e Rio de Janeiro, mais recentemente), a reforma do Centro Histórico não foi, como a de ACM no Pelourinho, esvaziante. São Luís criou habitação lá, para funcionários públicos especialmente, e o governador governa de dentro da Praia Grande.

O que só agora se faz pelo Pelô: programa habitacional, e o retorno do Governo do Estado (ao menos a parte política e de gestão cultural) para dentro dos Portões da Ajuda. Mas Caetano acha que certo estava ACM, que fez tudo ao contrário dos centros antigos de que Caetano gosta. É o quereres e o estares sempre a fim do que em mim é de mim tão desigual de um não menos eterno insatisfeito e menino mimado que tem de, aos 60 anos de idade, se submeter a esporro público da mãe.

A iniciativa privada se achegou, a Sala Cecília Meireles dera a largada, o Estado entrou com o trato dos arcos, iluminação, policiamento – e temos uma mostra de como nos vemos nestes anos FH-Lula.

Só na gestão atual se conseguiu abrir o Espaço Unibanco de Cinema dentro do Centro Antigo de Salvador, e re-viabilizar o Cine XIV do Grupo SalaDeArte. Se o critério é atrair capital privado de cultura, aí está: hoje atrái, e com ACM não atraia – atraia só o capital especulativo.

O governo petista da Bahia deveria tomar o Pelourinho como uma joia a ser cuidada. Aproveitar o aproveitável de ACM — e fazer melhor.

É precisamente o que vem sendo feito.

Próximo queixume?

Não é saudável fazer com os benefícios aos negociantes aderentes o que Ipojuca Pontes fez com o cinema ao acabar com a Embrafilme.

Não citai o santo nome de Glauber Rocha em vão – especialmente se não ireis dizer que é dele a idéia que roubaste para colocardes fora de lugar aqui, oh Caetano.

Esse privatismo repentino soa suspeito.

De que “privatismo repentino” ele está falando? Alguém entendeu essa parte, ou foi só mais uma caetanice?

O abandono do centro histórico tem parte no aumento da criminalidade.

É das poucas áreas da cidade em que a criminalidade vem caindo sensivelmente…

Política para mim é isso. Capturar as forças regenerativas da sociedade e trabalhar a partir delas. Não se atar a facções ideológicas como a torcidas de futebol – nem, muito menos, a grupos de interesses inescrupulosos.

Para nossa sorte, diferentemente de Gilberto Gil, Caetano nunca foi gestor; e diferentemente de Chico Buarque, nunca se meteu em política de verdade.

Caetano é o que, mesmo? Nada – só um filho de Dona Canô. (Lembrando que Sérgio Buarque de Holanda dizia de si mesmo ao fim da vida, quando perguntavam quem era ele: “eu sou o pai do Chico”. E olhe que era Sérgio!)