Pólis: o Locus do Poder

18/04/2010 at 23:39

a cidade sem povo de um povo sem cidades

Quando Lula sair do Planalto, o título de “figuraça latino-americana” vai ficar para o novo Presidente do Uruguai, Pepe Mujica. O cara tem um senso de humor eu diria juceliniano – tipo, para dizer que deixou de fato o extremismo de guerrilheiro Tupamaro de lado ele me sai com essa frase: “Politicamente, virei vegetariano!”. Parece personagem de Machado de Assis!

E mantém hábitos bem humorados, como nos relata Victor Hugo Soares:

“Diga ao mundo que somos diferentes”, disse nesta segunda-feira o presidente uruguaio José Mujica à agência AFP, ao ser fotografado enquanto almoçava em um bar de Montevidéu, algo que fez ao menos três vezes desde que assumiu a presidência, no último dia 1°.

Com essa frase, Mujica quis dizer que, no Uruguai, diferentemente da maioria dos países do mundo, os presidentes andam livremente sem necessidade de muitas medidas de segurança.

Mujica, 74 anos, ex-líder tupamaro, almoçou um “bife com purê”, disse à AFP a caixa do Bar Madison, no centro da capital, a duas quadras da Torre Executiva, onde o presidente tem seu escritório e onde, nesta manhã, manteve diversos encontros com membros do gabinete.

“Almoçou tranquilo com alguns colaboradores, só algumas crianças entraram para cumprimentá-lo”, disse a caixa. Ele sentou-se à mesa, próximo à janela, e comeu enquanto conversava com seus acompanhantes.

Um dia depois de assumir a Presidência uruguaia, Mujica surpreendeu a todos quando decidiu parar em um velho bar na rua Camino Maldonado, na periferia norte de Montevidéu, para tomar café da manhã que incluiu um café com leite, biscoitos feitos de farinha e água mineral.

Alguns dias depois, Mujica almoçou no tradicional bar “A casa do uísque”. “Os presidentes também almoçam”, respondeu Mujica entre risadas, quando lhe perguntaram o que fazia o presidente em um bar.

François Miterrand, nos últimos dias de seu último mandato como Presidente da França, e já com cancer avançado, saia do Palácio dos Inválidos, atravessava a rua e ia comprar livros num sebo, todo fim de tarde de sexta-feira. Ia com seguranças, é verdade, visado que era por atentados já que tinha ajudado a terminar de vez com a Guerra Fria.

O Imperador D. Pedro II ia a Ópera no Largo da Carioca, e quando do governo de verão em Petrópolis, passeava pelas belíssimas aléias. Ia andando para a missa de domingo com seus filhos e netos, e sentava-se em banco comum,

Oswaldo Aranha, homem forte do governo provisório de Vargas, constumava almoçar em botequins de Niterói, que acabaram criando um prato que leva seu nome: Bife a Oswaldo Aranha. O Marquês de Souza-Leão, em Pernambuco, também acabou batizando um bolo, que ia comer, a pé, nas boulangeries do Cais da Aurora. Pinheiro Machado, Rio Branco, e outros, se encontravam na Colombo para tomar chá às quintas-feiras. A vetusta doceria art-nouveau, rigorosamente portuguesa, foi bastidor público (adorável paradoxo…) dos melhores momentos da República Velha.

Octávio Mangabeira ia ao Terreiro da Casa Branca, que ainda batia na Barroquinha, ao sair do Palácio Rio Branco, e antes de ir para a então residência oficial no Passeio Público, o Palácio da Aclamação.

João Paulo, ex-prefeito de Recife, mantinha uma troça, um bloco de frevo de rua, no qual tocava mesmo enquanto era prefeito. E Célio de Castro, o “Doutor BeAgá”, ia para a preifeitura muitas vezes de bicicleta – enquanto era prefeito, e bem antes da bike-hype atual.

Ainda hoje (mas por pouco tempo, infelizmente) o Governador de Minas despacha de um lado da Praça da Liberdade; do outro lado, em frente, está o coração da vida boêmia belo-horizontina, a Savassi. Ao fim do expediente, é possível ouvir já barulho de música, e parte dos funcionários atravessam a praça do serviço público até uma cerveja.

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Nenhuma destas cenas é possível no Brasil há quarenta anos. E não apenas por causa de Brasília, em si; muito mais pelo “efeito Brasília”, que causou deformidades urbanas como o Centro Administrativo da Bahia (e não cessa de causar, já que Aécio Neves comete o erro de fazer igual este ano, com a Cidade Administrativa de Minas Gerais). O fato de que a política e o poder no Brasil a rigor saiu das cidades – e justo na época em que as cidades cresceram vertiginosamente em tamanho, gentes, economia e problemas – é apenas mais um sintoma de nossa desgraça urbana.

Cenas como as que tínhamos até 1960 no Rio de Janeiro, ou em Salvador até 1970, ainda são possíveis nos nossos países vizinhos: Mães da Praça de Maio em Buenos Aires, Mujica atravessando a rua para almoçar, protestos de estudantes em frente ao La Moneda no Chile, e a defesa pública de Hugo Chavez quando da tentativa de golpe ao Miraflores. Nestes países não só o poder está no centro das cidades – a população e os políticos não são separados por abismos, carros oficiais, e outros modos de cercear a cidade. Não se encastelaram, e arquitetonicamente nem tem como fazê-lo. A política, afinal, é a prática da cidade, da pólis.

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Na semana em que a única des-cidade do mundo faz 50 anos (Brasília não é uma cidade no mesmo sentido em que uma maçã não é uma cadeira), não se quer dizer com isso que a Nova Capital, feita para “desenvolver o Centro-Oeste”, foi inútil, ou de si um erro, ou uma preparação para a ditadura militar. Alguém que adorava o conviver com seus súditos no Rio de Janeiro, como JK, não cometeria intencionalmente nada disso. Todos os nossos vizinhos tiveram ditaduras militares em suas capitais altamente urbanas e pedestres; e o Rio sediou duas ditaduras antes: a do Marechal Floriano Peixoto (o grande artífice do golpe anti-constitucional de 15 de novembro de 1889, que na escola se ensina como “Proclamação da República”) e o Estado Novo.

O que se quer dizer é que no Brasil o Regime Militar legou esta chaga a mais: aproveitando-se da expansão excludente e carrocêntrica anterior a ele, nos deixou de herança uma classe política que mais parece a aristocracia da Baviera de Guilherme II. Uma classe que não convive com seu povo por uma impossibilidade espacial, física, urbana – o que não ocorreu nem durante o Império, nem durante o Estado Novo – e nem em boa parte do Regime de 1964.

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Nisso reside talvez o grande legado de Jaques Wagner: o próximo governador da Bahia, seja quem for, despachará do Palácio Rio Branco – em frente aliás da Prefeitura e ao lado do terminal superior do mais característico transporte de massas da Bahia, o Elevador Lacerda. Tendo, ao lado, prédios restaurados que servirão de residência estudantil – com alunos do interior – num Centro Antigo redivivo.

Isto torna o erro de Aécio Neves ainda mais gritante. Belo Horizonte foi construída, no Segundo Império e inaugurada em 1890 já na República, para ser Capital de Minas. Aí se projeta uma capital dentro da capital, mas fora. Qual o sentido disso?

A retomada do direito a cidade (o direito democrático mais radical, o de ir e vir – afinal, não seria cidadania justamente a capacidade que o cidadão tem de usar suas cidades?) não passa apenas por mudar a lógica de ocupação do solo e de mobilidade. Enquanto a classe política não voltar a usufruir dela como cidadão, tampouco o cidadão agirá e refletirá politicamente no seu dia a dia. É na pólis que o poder deve circular, não em planaltos e palácios. Não foi isso que se fundou em Atenas (uma cidade! e aliás, projetada) no século IV a.C., muito antes inclusive do advento do voto (já que a democracia nasce da e na tirania esclarecida de Péricles)?

A Bahia aliás, apesar do encastelamento CABiano, é pródiga nisso: é no meio do povo, na Lavagem do Bonfim ou no Cortejo Cívico ao Dois de Julho, que os políticos são mais políticos – porque na rua, sem intermediários entre eles e os cidadãos, mas também sem palanque. Não pode isso ser feito todos os dias? No Rio de Janeiro até os anos 1950 podia; e em Montevideo parece que ainda pode…