O efeito Ocelot

22/12/2009 at 23:08

Um desenho-animado que se passa em pleno Carnaval

Um desenho-animado que se passa em pleno Carnaval

A Princesa E O Sapo tem tudo o que você esperaria de um filme que se passe em New Orleans na década de 1920: pintura art-decô, bondes, palacetes art-nouveau, jazz de rua, gospel, culinária creole desde as primeiras cenas, ball-masqué – e até um Mardi-Grass – tendo em vista que o filme se passa todo durante as festividades do Carnaval (naquele momento, os dois maiores carnavais do mundo eram o de Recife e o de New Orleans).

Aliás, vale lembrar que as bandas de jazz de rua retratadas trazem sempre passistas de sapateado (como as de Recife tem os de frevo) que portam pequenas sombrinhas coloridas muito elevadas acima da cabeça, e sempre em movimento frenético. Qualquer semelhança não é mera coincidência: o jazz está para os pântanos do Mississipi como as diversas variedades do frevo está para os mangues do Capibaribe – como insiste em lembrar Maestro Spok, criador do frevo-de-palco, uma fusão do frevo com o crooning-jazz.

(Exceção: quando o frevo e o jazz passam a usar a guitarra elétrica. O frevo em Salvador, anos 1950, com Dodô & Osmar; o jazz, na mesma época, depois que os gringos plagiaram a invenção do pau-elétrico/guitarra-bahiana, em Nova York e SanFrancisco, especialmente por Gille Gillespie).

No entanto, o que não parece óbvio é o que teria causado esta inflexão na Disney: priorizar uma personagem feminina bastante independente, negra, ligada a culinária yorubá (confesso que eu babava a cada Jambalaya cozinhado no desenho animado, e me lembrava do nosso carurú de preceito. New Orleans não é apenas a Recife americana: se fosse possível fazer a cruza perfeita entre Recife e Salvador, seria algo muito parecido com Nova Orleãs), com vodus, numa cidade pobre (e é incrível como o Furacão Katrina fez o mundo redescobrir o Delta do Mississipi, e tornar Nova Orleãs uma das cidades mais amadas do planeta – algo como Barcelona), ao mesmo tempo que retoma o conto de fada mais encantatório.

Meu palpite: a obra de Michel Ocelot. Pela primeira vez a Europa tem um produtor de desenhos de animação pra tela grande nos moldes Disney: inovação tecnológica, roteiro inteligente (em tempo: o de A Princesa E O Sapo fica a desejar por vezes), esmero visual artesanal.

Os herdeiros de Disney até agora focaram muito o caráter “cinema de adulto” do mestre. Ao ponto de desenvolverem verdadeiras teses sociais (Spielberg em AntZ e Príncipe Do Egito) ou filosóficas (Haiayo Miasaky, em toda a sua magnífica obra; seguramente a maior contribuição que o oriente já deu ao cinema – e eu estou levando em conta Akira Kurosawa). Mas deixaram de lado o caráter linear, singelo, moralizante, didático e infantil no melhor sentido do termo – que também compunha a obra de Walter Elias Disney.

É nisso que Ocelot entra. Sua principal obra até agora, a série Kiriku (Kiriku E A Feiticeira e Kiriku E Os Animais Selvagens), é um desenho claramente desenvolvido para crianças de 3 ou 4 anos de idade. Sem ser idiota nem mal-feito. E com uma inflexão: todo calcado numa imagética e narrativa africana, não há nenhum personagem que não seja negro.

Ocelot parece se fazer presente em A Princesa E O Sapo até mesmo pelo afrancesamento que Nova Orleãs exige ao ser retratada – uma cidade em que até hoje se fala francês em alguns bairros, e que tem um dialeto próprio, mistura de nagô, francês, espanhol e inglês.

Há qualquer coisa também no novo filme da Disney que remete a mais experimental película do cineasta francês: Príncipes & Princesas. Filmado em teatro de sombras (um recurso típico do Antigo Regime rococó de Versalhes, século XVIII), retrata príncipes e princesas atípicos, como no episódio final com personagens futuristas e intergalácticos. Ou que nada têm de nobreza e realeza, como o trecho em que uma velha poetisa haikaista é carregada por um lutador de sumô – trecho totalmente baseado na tradição nipônica do século XVII, de Bashô Matsuo e Sento Sei Shonagon.

Ocelot abriu a possibilidade de a Disney migrar para estas caminhos mais diversos e ainda inexplorados. E, parece, consegue pressionar a mega-corporação hollywoodiana, embora com baixo orçamento e quase sem divulgação ou distribuição. Sinal dos tempos.