A Canção-Samba

27/11/2009 at 7:47

kalu

O Clube da Canção – sem Malandragem…

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Thiago Kalu foi a entrevista mais relaxada, divertida, e racionalista. Cheia de referências teóricas, metódica até – e ainda assim permeada de canções improvisadas e novas mostradas no violão. Mais discreto do que Damm e Pondé, o líder da banda de samba-rock bahiana Clube da Malandragem vem de uma relação íntima com a canção desde adolescente, quando tocava na noite. E, por outro lado, além de exímio sambista, um crítico – dado a reflexões estéticas e formais.

Minha vontade, quando ouço Chico Buarque de Holanda dizendo que a canção acabou, é mandar ele fazer canção. Eu nem consigo entender de onde é que isso parte. Fica claro que é uma forçação de barra.
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LUCAS JERZY PORTELA: Nem toda música brasileira é canção…
THIAGO KALU: Pra mim, a distinção do que é e do que não é canção é uma coisa que ninguém conseguiu deixar claro. Falam da coisa da letra, da relação íntima entre letra e melodia. Mas a música instrumental também pode ser canção…
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Concordo. A canção nunca ficou bem estabelecida pelos teóricos. E os cancionistas velhos ficam dizendo que a canção morreu. Daí eu querer ouvir cancionistas jóvens.
Muito pelo contrário. Se pensarmos na indústria, o próprio mercado impôe a canção. Se você pegar as características da canção, por exemplo o refrão, o pegajoso, são exigências pra música ser vendável. Na Bahia, por exemplo, o axé-music é quem mais faz canção.
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Mas nem todo axé é canção.
Eu não me lembro de nenhuma que não seja.
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Dalila não é canção, e muita coisa da Timbalada não é canção.
Rapaz, a Timbalada tem muita coisa que é canção. Se você pega aquele disco, Cada Cabeça Um Mundo.
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Mas Timbalada não é axé.
Eu tô falando mais do mercado do axé, do que da estética. O axé, que representa o mercado na Bahia. Quando eu paro na frente do papel, com o violão na mão, tem uma série de implicações alí que me levam a pensar em canção. Sempre componho pensando no formato canção. Você deu um exemplo engraçado: Dalila. Por que não seria canção?
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Canção tem uma relação mais com o cantar junto, o assoviar, do que com o dançar, e tem a relação íntima entre letra e melodia.
Pra pular e dançar tem muita coisa. A trilha da paquera da juventude, que tocam em locais dançantes, tipo Trio Mocotó, Clube do Balanço, coisas do samba-rock. Coisas que não são influência minha originalmente, mas se tornaram por causa do Clube da Malandragem. São músicas dançantes, feitas para dançar, e são canções.
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Perguntei isso a Damm (Formidável Família Musical) e a Pedro Pondé (O Círculo): se duas músicas do Cheiro de Amor são canção: “Amor amor amor / tem cheiro de amor pelo país” e “Sim, é um jardim, mui delirante / cheiro de amor“. Que são frevos de rua, e são canção.
Tenho conversado com um amigo meu que há uma tendência atual muito grande nas coisas que surgem de 2000 pra cá, Dalila tem um pouco disso, que é a tecnologia em favor da sonoridade: a música de timbres. Poucas são as coisas que surgem hoje em timbres madeira. Quase tudo tende ao sintetizador eletrônico: teclado, sampler. Você não vê mais a canção mínima, que é a coisa com o violão, João Gilberto, Caimmy, Donga. Você não encontra mais hoje canção com essa característica: violão e voz, apenas. Até tem isso, mas com a aparelhagem eletrônica presente por trás.
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De fato, Pirigulino Babilake, que parece o Clube da Malandragem, usa muito de sintetização eletrônica mesmo ao vivo. E também o Preto Sábio, do bairro de Cosme de Farias, que fica sintetizando a voz, ao vivo – o que é excelente.
Tem essa coisa do cantar junto e do assoviar, mas pra mim não é o principal na canção. O que eu vejo como canção é uma coisa de coesão: a canção não exatamente se encerra, mas se resolve, se basta, se sustenta por si. E dentro disso, tem algumas coisas de formato, de métrica, nem entro na seara de arranjo ou direção musical. Estas características que observo, da consequência no mercado e do refrão, talvez não sejam necessárias para configurar a canção.
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O refrão talvez não, mas a resposta sim. Depois de Ver (de O Círculo), não tem refrão, mas uma frase melódica responde  e dá sequência a anterior. Ou como o Bela Mocidade (do Bumba-Boi de Axixá – Maranhão): “Quando eu me lembro“, e a frase seguinte responde “Da minha bela mocidade“.
Pra mim isso é uma leitura apenas. Isso não vai definir o fim da canção. É difícil falar da morte de uma coisa que a gente sabe que tá aqui ou ali, mas a gente não sabe definir direito.
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Você me falou que não consegue definir de vez a canção, mas por outro lado você diz que ela está viva e que é a via principal, senão única, para seu trabalho.
A coisa do transcender da música erudita, a canção quebra isso porque tem a presença do cantor. Se você pensar a canção com letra, o que é a voz? É alguém cantando. Você, humano, normal, poder se colocar naquilo ali. Todo mundo acha que sabe cantar. É a coisa da proximidade com o outro, com quem recebe aquilo ali, e essa é também uma característica forte da canção. Que não acontece com a canção instrumental. Um admirador de música brasileira, que tem a característica forte da letra, quando ouve música instrumental a princípio não vai entender como canção, ele não participa daquilo alí. Muita gente fala que música instrumental é egoísta, é música pra músicos. Eu não concordo: a comunicação da música instrumental é fortíssima, em mil exemplos. Mas o ouvinte não se sente parte daquilo alí, porque ele não sabe fazer nada, sem subestimar quem a está recebendo.
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Mas existe canção instrumental cantável. Chovendo na Roseira, de Tom Jobim, originalmente não tinha letra. E Maldito Mambo do Retrofoguetes, é possível cantá-la. A Formidável Família Musical tem canções inteiras só de onomatopéias, e no limite Chico Buarque com Partido Alto.
Como você falou: o lance de sair assoviando a melodia. Onde é que tá a diferença entre a música instrumental da fase mais complexa, de Hermeto Pascoal, que tem canção mas é tão dissonante que você não consegue assoviar; e um Kenny G, brega e aquele sax nojento dele, mas todo mundo sabe assoviar e é canção. Há casos na música instrumental em que voce pode cantarolar.
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Existe canção dissonante? Afinal, a canção prima pela simplicidade, ela tem de ser harmônica e melódica, e pelo atalho. Chovendo na Roseira, apesar de dissonante, ela soa quase como uma brisa, de tão suave.
A dissonância faz parte da canção. Mas a canção acaba buscando as soluções mais previsíveis historicamente, que soem com mais facilidade. A canção pode ter um pano de fundo complexo, mas aquilo que está no pedestal, o instrumento solo, pode ser simples demais e buscar justamente naquele universo de dissonância o caminho menos tenso. É disso que muitos músicos buscam fugir: da previsibilidade.
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A canção tem, pelo atalho, uma maior penetrabilidade subjetiva e social?
Concordo. Mas tem gente que consegue fazer canção fugindo da trilha, se jogando no mato, seguindo caminhos mais pedregosos. Minha maior referência mesmo é o sacana do Caetano. Tom Zé é uma referência, mas eu não sei o que é canção nele e o que não é.
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Eu queria pegar a referência de Tom Zé porque foi ele quem primeiro colocou a questão da morte da canção, sendo o mais teóricos dos compositores populares da Tropicália pra cá, tendo tido formação acadêmica com Smetak, Widmer, etc. No entanto uma parte de Tom Zé é radicalmente anti-canção, experimentalista e quase não é música; e outra que é canção pura, que geralmente ele compõe para outras pessoas cantarem.
Isso dentro de um mesmo disco. Eu não acho que a canção morreu. Tom Zé tá ficando é doido. Esse último disco dele é pura canção, Estudando a Bossa. Ele usa a tecnologia, a qual me referi, contra a canção – desconstruindo a canção. Ele rompe com a coisa do “vamos cantar juntos” da canção. O mais certinho e previsível de Tom Zé, quando ele é mais bonzinho, bom-moço, é a canção. Me veio um cara na cabeça sobre essa coisa da canção que é Ed Motta. Ele lançou um disco chamado Dwitza, que não tem letra e ele fica fazendo aqueles vocalizes dele o disco todo. Ele é complexo demais, mas fez Colombina, e Fora da Lei, que são canções pra dançar. Ele usa a boca como um instrumento mesmo. Fiz uma experiência desse disco com um amigo meu. Perguntei a esse amigo: “rapaz, essa música não é grudenta não?”. E ele disse: “pô, demais. Não saiu de minha cabeça a noite inteira”. Isso é quebrado, não tem atalho e não dá pra cantar junto. Mas o que é que é fácil? É gostoso o que ele faz com a voz. E isso não é canção! Ele repete os vocalizes como se fosse um refrão. Ele mantém a estrutura de momentos típica do samba e do chorinho, e da música popular em geral – ainda sem ser canção. Porque não é canção, eu não sei, mas eu não considero canção: não consegue me dar essa idéia de resolução, da música se bastar, que é da canção.
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A canção tem um caráter de fotografar um momento histórico e geográfico. Damm (Formidável) diz que essa história da morte da canção é parte da mitologia neoliberal. O que me leva a pensar que a canção surge na música popular do modernismo na costa das Américas: o jazz e o rock, a música caribenha, o tango, o bolero, o samba e o frevo em suas variantes.
Eu acho que isso ainda é ir no raso. Se você pensar nos cânticos de trabalho ou da religiosidade popular, isso já está a muito tempo atrás.
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Mas a canção começa com o rádio, não? A canção voa nas ondas do rádio. O auge da canção americana e brasileira foi o auge da era do rádio: década de 40.
Aí a gente vai cair na lógica de mercado que falei antes. Acho que pode existir canção sem rádio e anterior ao rádio. Me interessa mais a discussão da canção como música pura: o cântico. Trabalhadores rurais trabalhando e cantando. Pra mim isso já é canção, ainda que sejam só vozes, sem instrumento.
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É algo que não me tinha ocorrido, mas de fato a canção vem dos cânticos de trabalho. As canções praianas de Caimmy vem dos pescadores, e nos Estados Unidos os presidiários quebrando pedra dão origem ao blues.
Exato. O rádio formatou, deu lugar pra coisa acontecer, voar pelas ondas, mas não é pra mim o ponto principal da coisa. Mas se a gente pensar na música brasileira de hoje, na última década, o que tem de bacana que é canção. Los Hermanos seria canção? Pra mim, sempre! – porque, eu não sei. Paulinho Moska, não vejo porque não seja canção. Chico César é um mestre da canção – um mestre! Ele lançou a uns anos atrás um disco erudito, De Uns Tempos Pra Cá, com oQuinteto da Paraíba. É um disco que eu questionaria se é canção ou não – acho que não é canção, embora algumas coisas nele seja, mas não sei dizer porque seria ou não. Cordel do Fogo Encantado é um som que eu gosto muito, mas é muito declamado, não sei se é canção – e é muito “ao vivo”, de ver, e muito pouco melódico pra ser canção.
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Nem toda música popular é canção: Maracatu de Nação, mesmo os mais cantados, não é canção; os Bumba-Bois de Matraca, de São Luís, também não são canção – não tem a leveza que os Bumba-Boi de Orquestra tem. Existem diversas variantes do frevo, entre as quais frevo-canção; e dentro do samba, o samba-canção. Existe uma variante específica no samba e no frevo pra receber o adjetivo de “-canção”.
A canção se desprende da condição de gênero, incialmente, da prateleira da loja. O termo samba-canção é achar que o lado do samba mais melódico seria mais canção: uma coisa saudosista. Eu acho samba-de-roda tão canção quanto o samba-canção. Há uma coisa da música no samba-canção que o faz ser samba-canção, e não mais samba. O termo -canção pra determinar essa derivação não se justifica: poderia ser qualquer outro termo.
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Nem toda canção no samba é samba-canção, mas todo samba-canção é canção, não?
É, talvez.
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O Clube da Malandragem faz canção?
Sim. Não vejo nada do Clube que não seja canção.
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Blasfemia não é um atalho…
Blasfemia tem muito Tom Zé. Talvez seja a anti-canção do Clube. Mas as pessoas cantam errado, inclusive o refrão que é uma onomatopéia: “Blablablablablablablabla” – só que não fazem a melodia, que é muito dissonante. Você foi na pedra aí. Por outro lado, Monogamia chega a ser óbvia. É complicado pra mim pensar em samba sem ser canção. Samba-canção é redundâcia: até samba-duro é canção. O que eu enquadro ou não como canção é muito subjetivo – embora eu tenha estudado, não me apoio tanto em teorias.
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No atual processo de Retomada e pós-axezismo, ocorre principalmente uma reaproximação e um diálogo. Antes era a galera anti-axé de um lado, principalmente rockeiros, e do outro os axezeiros. Hoje você tem o Retrofoguetes tocando frevo elétrico, e Letieres Leite, um cara que vem de Ivete Sangalo, fazendo great-jazz. E o que eu penso é que a canção, como vem sendo feita em Salvador na atual Abertura, permitiu esse diálogo.
Acho que tem uma partilha, algo que algumas pessoas que são formadores de opinião têm chamado de Movimento Musicultural. Mas não é nem movimento, nem musical – é algo maior, de comportamento, de mudança da geografia da cidade: passa a ter rock na Barra, samba no Rio Vermelho – coisa que não tinha antes. A gente, que faz samba, frequentar o palco do Bahia de Todos os Sons, do Círculo que é rock. É o que se chamaria de “cenário alternativo”.
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Eu não gosto do termo “alternativo”. Acho que era válido quando havia uma oposição e uma resistência. Hoje, com diálogo e avanços, o termo é obsoleto.
Mas é uma coisa de comportamento, de partilha de idéias, uma coisa de pessoas que mais ou menos partilham algo da esquerda – embora não se declarem assim ou mesmo que se declarem de direita, como Kiko Lisboa (de A Volante do Sargento Bezerra). A canção tem uma função especial nisso pela penetração social que tem, causa um reflexo comportamental, uma partilha: as pessoas que gosta do Círculo vão encontrar manifestações de comportamentos e idéias similares que eles encontram no Círculo onde? No Clube que faz samba, na Volante que faz forró, no Preto Sábio.
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Isso já existia antes, mas dentro de um gueto. Você acha que isso saiu do gueto?
Não sei. Isso é papo pra outra conversa… bem longa…
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Eu costumo dizer que tivemos dois hinos do pós-axezismo: Depois de VerA Janela, de O Círculo. E de vocês do Clube da Malandragem, um hino do anti-axezismo, que é NuCuTurismo: me parece uma crítica à Era Paulo Gaudenzi, aquelas deformidades que se causava na cidade e no estado em nome de um pseudo-turismo e de uma pseudo-cultura.
É exatamente isso! Nada além disso. Aliás, pode ser além, mas eu senti isso quando escrevi.
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Esse verso, Chiclete com Banana não existe mais, me parece ambíguo. As pessoas cantam em êxtase porque o Chiclete “vai acabar”. Por outro lado, você lista o suposto fim do Chiclete entre as coisas que você não gostaria que acabasse: a lagoa do Abaeté, as pedras do Pelourinho.
É um lamento por ter acabado: por o Chiclete não fazer mais frevos e galopes, belíssimos, de dez ou vinte anos atrás. Quando o Chiclete chamava Traz Os Montes era um bandão! Uma coisa de uma qualidade que não existe mais na Bahia. Assim como na letra de NuCuTurismo falo de como seria se Timbalada e Olodum tocassem forró: o que teria se perdido!? Olodum e Timbalada, o samba-reggae, consegue ser produto e autêntico ao mesmo tempo – se eles não existissem com a música que fazem, a Bahia não existiria. Essas coisas, quem não conhece não percebe na minha letra; mas quem conhece deve ter mesmo a sensação de hino.