A Canção em estado de Hino

23/10/2009 at 0:14

pondé

O ex-centro d’O Círculo

Da série de entrevistas e artigos que tenho publicado, sobre a perenidade da canção, esta foi de saída a mais difícil para ambos – e creio que a mais prazerosa. Pedro Pondé talvez tenha sido quem primeiro percebeu os primeiros laivos da abertura cultura que Salvador retomou, como fica claro nas linhas abaixo, e primeiro se engajou nela. Confiram.

Eu não penso o pós-axezismo como um movimento. Sei que Miguel Hoisel (do Clube da Malandragem) chama de Movimento Musicultural. Mas ele não é um movimento. Movimento é uma organização, e o que estamos vivendo é espontâneo. (…) Na eleição de Jaques Wagner, todo mundo escutava O Círculo. Junto com esse novo movimento, o pós-axezismo, está nascendo uma nova crítica cultural também.

LUCAS JERZY PORTELA: De fato, diferente de Recife, a Bahia não é dada a formalizar movimentos. Glauber Rocha, por exemplo, foi do Cinema Novo sem nunca aderir ao Cinema Novo. Mas vamos entrar propriamente na questão da canção…
PEDRO PONDÉ: O que é que caracteriza a canção?

O que você entende por canção, Pedro?
Uma música, cuja melodia é mais trabalhada, e de alguma forma conta uma história. Eu não sei bem, porque minha visão da música é muito intuitiva, já que eu vim do teatro… Eu até estranho minha relação com outros músicos do meio, me sinto um patinho feio. A canção é uma história. Diferente do Rap. O Rap não é canção. Por outro lado eu gosto do Rap por ter inserido mais teatro na música. Tipo, Racionais MCs te enquadra com a voz [faz gesto de quem segura um rifle], te coloca dentro da história.

Você tem uma proximidade com o Rap.
Algumas músicas de O Círculo lembram Rap (por exemplo, Quem?) ou têm momentos de Rap. Talvez seja esta tentativa de inserir mais teatro, e aí soa como Rap.

Chico Buarque diz que a canção morreu. A canção morreu?
Não. A canção muda, talvez ela tenha mudado. Nada que é bom morre. Pode se transformar, mas morrer acho que não. Você até falou: tem várias bandas aí que estão fazendo canção. Talvez ele precise se informar mais.

E como você entende que gente como um Bruno Tolentino, de extrema direita, até um Chico Buarque, a esquerda, dizerem no metier crítico e literário do sudeste “A canção morreu”? Inclusive Tom Zé diz isso.
Talvez até porque o Rap tá forte pacaralho na mídia. O Rap e o rock.

Mas o rock tem canção…
Mas acho que o Rap conseguiu um destaque agora, já tem um tempão que o pessoal tá trabalhando, e por ter sido reprimido por muito tempo, tá vindo com uma força assustadora pra quem é mais velho e tem dificuldade de se adaptar ao novo. O Rap assusta! Por ter ficado muito tempo escondido. Eu mesmo me assusto com o Emo.

Eu acho que o Emo é a canção empobrecida, moribunda…
Disseram que Emo é música sertaneja com guitarra – acho que foi Lulú Santos.

Mas Sertanejo é canção, e existe muito preconceito com o Sertanejo em estados litorâneos. Quando eu cheguei em Goiânia eu me apaixonei pelo Sertanejo, que é canção autêntica de lá. Não o sertanejo Bruno&Marrone. Mas o tradicional, tipo: “e aí / o que era alegre ficou tão triste / um pedacinho dela que existe / um fio de cabelo no meu paletó“. Que é canção, e é muito bonito!
Leandro&Leonardo tem algumas lindas também.

Você gosta de Tom Zé, né?
Gosto. Eu respeito muito, mas não ouço muito. Respeito porque ele nunca se vendeu.

Mas repare: Tom Zé diz que a canção morreu. Se morreu, ninguém contribuiu tanto quanto ele para que morresse, já que ele nega a canção sistematicamente. Da Tropicália, foi quem mais negou; e por outro lado ele é muito mais bem-sucedido quando ele faz canção…
A canção é o que atinge mais a população. Até quando vou sugerir algum solo eu pergunto: “a pessoa que vai escutar vai poder assoviar isso na rua?”. A canção você consegue carregar por aí. A canção é portátil. Eu brinco que existe a “Rádio Pedro Pondé”: sempre uma música rolando lá no fundo, dentro da minha cabeça – geralmente é uma canção. Uma coisa que eu sempre fiz questão é de manter a melodia vocal pra todo mundo poder cantar junto, quando eu faço uma versão; se eu mudasse a voz ninguém ia poder cantar junto, que nem alguns cantores de barzinho que muda o ritmo e a melodia pra ninguém poder cantar junto.

A canção é a música que é mais de cantar junto do que de ouvir ou de dançar.
Ah, a Formidável Família Musical é minha trilha-sonora do fim de semana. É tipo um clipe. Eu e minha esposa, a gente bota Formidável dia de domingo, fica cantarolando e arrumando a casa.

Você acha que a canção e a música popular são sinônimos?
Acho que sim. No RAP, por exemplo, eu gosto do Racionais MCs, mas não saberia cantar uma música deles – porque eu não lembraria da letra toda, são imensas.

Os bumba-bois do Maranhão tem me levado a questionar isso. Os Bois de Matraca, de São Luís, são fortes e dá vontade de cantar – mas não é canção. O Boi de Zabumba parece pagodão, dá vontade de sambar, mas não é canção. Mas Boi de Orquestra é canção! Eu saio às vezes cantarolando pela rua: “Quando eu me lembro / da minha bela mocidade / eu tinha tudo a vontade / brincando no Boi de Axixá“.
Uma coisa que eu adoro na música popular, especialmente na canção, é a resposta. Uma frase musical diz: “Quando eu me lembro” e a outra responde: “da minha bela mocidade”.

De fato, e tem o breque também. Ainda nessa toada do Axixá, tem uma hora que na versão original, mas não na de Maria Bethânia (em Âmbar), o cantor diz: “Morena vem ver a beleza / que eu trouxe pra te mostrar…”. Isso não está na letra, é improviso e fora do ritmo. Mas você acaba cantando junto…
A canção pega o atalho.

A canção faz companhia?
O nome desse violão aí é amigo. Foi quando eu fui pra São Paulo… apesar de estar sem corda, tá mudo. A canção é você ter milhões de salas a disposição: cada música é uma sala, que você pode entrar, e curtir um outro afeto, sempre diferente. A canção me transporta para outros pontos de vista, o que acaba ampliando meus conceitos – especialmente pela letra. Eu nunca cantei em inglês porque me sentiria uma fraude fazendo isso – eu preciso sentir a letra.

Formidável canta em inglês.
Damm falou uma coisa importante pra mim: que o mais importante é a melodia. Tem uma música no CD deles que é um reggae embromation total, de sacanagem, mas fica muito engraçado, e é uma música muito boa, e de repente você tá cantando junto numa língua que não existe…

Formidável consegue fazer canções inteiras de onomatopéia… e as pessoas cantam junto!
Isso é uma coisa muito do popular. Você pegar num refrão e colocar um “Laialaia”. A melodia é o sentimento em estado bruto.

Chico Buarque radicaliza isso em Partido Alto, pega uma onomatopéia e vira frase sintática: “Disque deu / disque dá”. E em Bumba-Boi de Orquestra é muito comum as pessoas imitarem o som da corneta e trombone de vara com onomatopéia.
Em Olinda, as pessoas imitando Vassourinhas com onomatopéia. Mas as palavras são limitadas para falar dos sentimentos, e o som tem essa vantagem: ele não explica nada. É como o cinema de Glauber Rocha: não existe para ser explicado ou entendido.

Você falou da letra: letra e música são indissociáveis na canção?
Acho que não. São duas linguagens diferentes. Embora se você for fazer um poema sem a música, um poema escrito, você precise ser mais detalhado, específico, claro. Na canção você pode pegar poucas palavras desse poema, e a música já tá dizendo muita coisa do que você queria passar – a música provoca os sentimentos nas pessoas, e a palavra que cair ali vai se juntar com esse sentimento. Tem uma canção de Milton Nascimento que é muito bacana: ele fez uma melodia extremamente meiga, e a melodia variava bastante, e a letra era uma palavra só, “Coração”. E isso levava as pessoas a um nível de emoção absurdo. Ele se comunicou alí com a letra sim, mas a letra foi a ponta da agulha alí pra música entrar.

Eu perguntei isso a Damm (Formidável). Seu público e o dele é a primeira geração que adolesceu no pós-axezismo, em que rock e axé não se opõem mais, momento de abertura inclusive política. Por exemplo, você olha seus fãs no Orkut embora gostem de rock eles têm fotos com abadá do Cheio de Amor. Não é do Chiclete nem do Asa, mas do Cheiro: uma banda que não caiu no axe-sistem, embora seja axé-music. Você falou de amor e o Cheiro tem duas músicas que me agradam muito: “Amor amor amor / tem cheiro de amor pelo país“, e outra que lembra as coisas da Formidável: “Sim, é um jardim, mui delirante / com mil e um lances de brilho e de cor“. O Cheiro de Amor fazia canção?
Sem dúvida! Você pode até não gostar, mas acaba cantando junto, fica na cabeça. Não é a mesma coisa de uma Dança da Tartaruga (Asa de Águia). Mas o Asa é honesto: Durval Lélis já disse no Domingão do Faustão que ele não faz música, e sim anima festas. Tem de ter uma parceria entre letra e melodia. O Chiclete por exemplo na maioria das vezes faz canção.

Chiclete com Banana já fez música com letra de Manuel Bandeira, que é o poema Redondilha. É canção?
Não sei… Não sei falar direito sobre música, como já disse sou mais intuitivo.

Você fazia canção n’ O Círculo?
Fazia também canção. Mas fazia antes música. A gente não tinha um programa prévio de respeitar as normas da canção. Até porque a criação era coletiva. Nem todas as letras eram minhas, e nem todas as melodias. A Janela, a letra é de Daniel Ragoni (bateria) e minha.

Ah, é?! Mas é muito parecido com Depois de Ver.
Taciano (guitarra) escreve bem pacaramba e não mostra. Daniel tem muitas músicas legais, que ele não acha boas o suficiente. Aí ele mostrou o começo de A Janela, e depois disse: não isso não serve pro Círculo não, a letra é muito triste. E aí eu disse: mas por que não serve? É só dar uma roupagem alegre na música, até pra letra comunicar mais fácil isso que ela quer comunicar que é difícil e doloroso.

Você diz que seu público rejeitaria se você cantasse por exemplo com Daniela Mercury. No entanto, você reconhece que seu público sai no Cheiro de Amor. Você acha então que o diálogo entre o axé-music e o rock não existe?
Existe diálogo porque O Círculo, por exemplo, consegue se comunicar bem com qualquer classe social, e o axé se comunica bem com a massa. E deixo claro que não tenho nada contra o axé-music, tenho contra seu sistema, contra a forma de se trabalhar com a arte: uma coisa é se comercializar a arte, outra é modificar a arte pra se comercializar. E geralmente se faz isso da forma mais fácil, que é a imitação. O público do que chamam de “alternativo” é uma minoria que sabe deste sistema, e que sabe da parte boa do axé, e é formadora de opinião.

Eu não gosto do termo “Alternativo” porque impede o diálogo. Acho que o termo valia no auge do axé-sistem; na atual abertura política e estética o termo não vale mais.
Tem uma música do Círculo que fala “Pare e veja / estamos em guerra / todo mundo quer chegar na frente”. O axé-music começou como uma coisa coperativista, antes de virar um sistema, há muito tempo atrás; e depois virou um “estou cuidando de mim, e se alguém aparecer também no mercado eu passo por cima”.

Ivete Sangalo é muito generosa: ela apoia o Neojibá, produz a Orkestra Rumpilezz… Aliás é uma marca da atual abertura: a generosidade, de todos os lados.
Ivete é muito generosa. Mas talvez ela faça axé por opção, porque gosta, e não como uma conhecida imitação dela, uma coisa mais mercadológica.

Você falou da penetração de O Círculo nas camadas populares. CH, do Retrofoguetes, fala disso com elogio, mas de um modo esculhambado. No show deles no TCA ele dizia: “Cajazeiras vai descer!”. Essa penetração se dá por ser canção?
Acho que sim. Pelo fato de ser canção, e das letras serem simples sem serem vulgares, você acaba atingindo o público. E no caso de O Círculo, a guitarra de Taciano consegue ser rock sem ser agressiva. A gente conseguia um equilíbrio entre o teclado e a guitarra mais suaves, balanceada com a bateria mais agressiva e com a voz variando bruscamente entre a suavidade e a intensidade. E a letra do rock é muito específica do rock; e a letra romântica é muito melosa. Mas pode ter rock na canção de amor, e amor nas canções de rock.

Os Beatles, que são rock, sempre fizeram canção. A Vanguardt (do Mato Grosso), toca Beatles e faz versões pra rock de modas de viola.
Lembrei de Joe, baixista do Inkoma (de Pitty). E pensei: o que é que esse cara escuta. Em São Paulo fiquei ouvindo a coleção dele, ele me mostrando. E ele me mostrou coisas que ele ouvia e que eu jamais imaginaria, tipo: lambada. Eu não via conexão entre isso e o trabalho dele com Pitty. Mas é aquela história: a canção entra na sua cabeça, mesmo que você não goste, porque revelam uma época e uma história.

No Baile Esquema Novo se considera lambadas em francês música brasileira, porque fazem parte da nossa cultura e não da Guiana por exemplo. O Baile Esquema Novo é uma festa de canção?
É sim, com certeza. O Baile tem o DJ alí, mas as pessoas são o show. Todos que estão na pista são os vocais. Você pode desligar o som às vezes, e a música continua. Antes de ir tocar lá (como DJ) eu me informei com Renata Bastos (da Muvida) do que se tratava: ela disse que era Música Brasileira. Mas cheguei lá e ouvi músicas que eu jamais imaginária que veria um lugar lotado com gente cantando e dançando elas em alto e bom som, desde Jingles de campanha política (Hilton 50, ACM meu amor) até Chico Buarque de Holanda.

A canção é uma forma de generosidade?
Acho que sim. Eu abdico de milhões de coisa pela canção. Me alimento principalmente de música, e dentro disso especialmente da canção. A canção tem a coisa mais simples e mais sofisticada do mundo, que é pegar-o-atalho: ela prescinde de explicação. Um dia estava muito mal em casa, e o vizinho colocou uma canção pra tocar, não lembro qual era, mas era de Cássia Eller, e de repente não me senti mais sozinho. A canção é uma forma de não estar sozinho.

Existe canção que não é romântica?
Claro. Cálice, de Chico Buarque, por exemplo. Canto de Ossanha, de Vinícius de Moraes. Sabe o que é romântico pra mim? Um dia disse pra minha mãe: você tá escolhendo os melhores produtos pra fazer a comida que a gente vai vender – você não vai ter lucro nenhum com isso. E ela me respondeu: “Porque é a minha arte. Eu já te pedi pra fazer música comercial algum dia, pra ganhar dinheiro?”.  Romântico pra mim é isso: não interessa se você vai ganhar dinheiro com isso ou se vai ser ruim – ser romântico é ser fiel a si mesmo. Eu entendo romantismo como Castro Alves: algo libertário.

O patamar máximo da canção é quando ela ganha a dimensão de Hino. Chame-gente é um hino: ela é um frevão (e portanto uma não-canção), uma canção e um hino, cívico até. Eu considero Depois de Ver e A Janela hinos, porque mostram que a Salvador do axezismo podia ser muito maior, que havia um outro mundo lá fora, e Salvador era “só um lado do mundo / era só esse que eu via”. Num artigo inédito meu eu digo que você, faminto de abertura, deu esta fome como alimento para as gerações mais novas que a podem viver. Depois de Ver é um hino?
Pra mim, é.

Você se sente sobrevalorizado com isso com a idéia de ter feito o hino involuntário da eleição de Jaques Wagner ao governo do estado?
Se a gente tivesse feito um hino para todos, sim. Mas a gente fez como um hino pessoal. O hino é acidental, e talvez com isso nós estivéssemos no mesmo ponto cego que Chico Buarque. E amanhã ou depois de amanhã pode deixar de ser um hino. Porque o hino não morre; e se o hino morrer? Eu não posso falar pra uma geração inteira…

Mas O Círculo fala pra uma geração inteira…
Eu não acredito nisso não. Existe uma vontade muito grande em mim disso, mas ainda me sinto um adolescente que tá chegando pra fazer, e na verdade uma banda fez isso por mim antes. Eu conheci essa banda e falei: é possível. Essa banda era a Diamba. Que na época de total fechamento da cidade, há 10 anos atrás, fazia já um trabalho duradouro e de excelente qualidade. E antes deles, Edson Gomes abriu caminho pra Diamba. Tem uma galera que vai abrindo caminho. Então de repente hoje a gente está na posição de abrir caminho, mas ainda não nos demos conta disso.

Os seus fãs são de uma geração mais nova do que você. São colegiais, geralmente. Você se sente responsável por eles?
Eu me preocupo com isso. Temo como eu posso influenciar eles. Eu sei da capacidade que tenho de influenciá-los, mesmo que indiretamente.

Do que você depende pra compor?
Sentimentos. Do amor ao ódio. E de café.

Como Nietzsche – ele fala do valor do ódio. Eu acho sua obra muito Nietzscheana.
Eu aprendi com o teatro a direcionar o ódio. Eu fiz Machado, que é muito nietzscheana, eu primeiro criei a música e só depois eu li Nietzsche. Eu não sei parar e escrever. Ela acontece.

Depois de Ver também. Parece Demian, de Herman Hesse.
Você ficou sabendo disso?! Eu fiz depois de ler Demian…

Não, isso só me ocorreu agora.
Pois foi. Fiz em São Paulo, depois de ler Demian e assistir o filme sobre Ray Charles.

A canção tem um caráter de legado às futuras gerações.
Deixa eu perguntar uma coisa nada a ver: Michael Jackson é canção?

Às vezes. Heal the World é canção. ABC é canção. Voltando, se a canção não vai acabar no mesmo sentido que o rádio não vai acabar, por que Chico Buarque diz que a canção acabou?
Vem cá, esses caras tão vivos, por que não continuam a fazer canção? Será que isso não é medo de se extinguir – e aí pra se proteger ele projeta isso na canção? É que nem quando você termina um CD: você passou um tempão criando e põe todas as músicas alí. E você pensa: e agora? vai haver um próximo? Seu Jorge faz canção. Ana Carolina faz canção – eu não gosto dela porque acho que todas as músicas parecem que são a mesma.

Fora que ela destrói a metáfora: ela faz a metáfora num verso, e desfaz no seguinte. De modo que a canção se esvazia. Não sei se ela faz canção porque ela elimina a metáfora, e a canção se sustenta na metáfora: é a metáfora que voa.
Velho, eu detesto explicar letra…

Você disse que a idéia de morte da canção em Chico Buarque é um medo instintivo de se extinguir. Mas a canção pereniza. Você acha que a canção vence o autor?
Por exemplo, Muito Romântico, de Caetano. O público do Círculo não conhecia. Várias pessoas cairam no erro – aliás, no acerto – de dizer: “essa música de vocês é linda!”. E eu ter de dizer: “velho, essa música não é nossa, é de Caetano!”. Vou chegar no ponto chave da questão da canção: eu mantenho a melodia vocal, só o instrumental é diferente. A melodia vocal tem muito a ver com o lance da canção, da música popular e com o fato de não morrer. Eu posso fazer milhões de arranjos diferentes em cima da mesma melodia vocal. E se você chegar só com a voz e cantar, a música pode ser registrada: você tem a melodia alí e a letra – que é o básico para uma música ser registrada. E esse lance da melodia vocal se mantem com muito mais vigor do que o instrumental. O instrumental se modifica e se moderniza, tem muita tecnologia. Mas a melodia vocal é humana, é feita por uma pessoa, e daí uma coisa mais antiga chega até hoje pela voz. Veja por exemplo a tradição do candomblé… Eu sou muito fã do Chico Science: ele amou o mundo todo e amou a terra dele e conseguiu mostrar quem ele era, sintetizando uma geração inteira. Chico Science conseguiu juntar o tecnológico com o regional, a divisão quadrada dos tambores de maracatu com o sincopado do psicodélico, o erudito com o popular. Eu admiro muito o regional, mas eu jamais faria um trabalho puramente regional. Eu faria Mangue Beat apenas se eu fosse recifense. Em Salvador o grande ritmo tão forte quanto o maracatu é o ijexá. Se um adolescente amanhã for cantarolar no ônibus Muito Romântico, um corôa pode chegar junto e perguntar “Essa música é do Caetano?”, e o guri responder “Não, é do Círculo”. Mas vai ser a mesma canção!

A canção mata o autor?
Ao contrário: eterniza.

Você falou do palco, mas o palco não é o lugar da canção: o rádio, o disco, são mais aprópriados para a canção.
Concordo. É como a ação interna, no teatro. O ator não precisa fazer gestos largos para se mostrar ansioso, por exemplo, se houver ação interna. E a canção é como a ação interna. Quando você vai pra rua, a letra perde importância: você quer se movimentar. Daí o pagode e o axé-music têm seu espaço. A canção, ao contrário, dá o contato interno – que talvez não se sinta tanto nas festas de rua.

A canção tem um caráter visual: descreve, conta histórias. Especialmente as suas canções. Como você entende isso?
A visão é a comunicação mais imediata. Tanto quanto a canção. É o lance de misturar a palavra com a visão. Você cria paisagens imediatas. Antes de Daniel criar A Janela eu dizia: é muito bom olhar, mas é melhor olhar andando. E a canção é muito de andar na rua. A canção é um video-clip. Por exemplo, em Amor de Graça: “Fila na sombra do poste no ponto”.

Sobre essa idéia de que Chico Buarque diz que a canção morreu como uma projeção para se preteger de sua própria extinção pessoal.
Que eu acho uma besteira. Se eu pudesse tomaria a liberdade de dizer: “Deixe de besteira, Chico”. Talvez ele não reconheça a grandiosidade dele e o quanto ele lega pras próximas gerações.

Minha idéia é a seguinte: a canção nasceu com e no Modernismo. Damm (da Formidável) concorda comigo, tanto que diz que a morte da canção é um correlato do fim-da-história, de Fukuyama. Hoje vivemos um momento de neo-modernismo, de retorno da importância do Estado e dos projetos de longo prazo, o fim da pós-modernidade e do neo-liberalismo. Daí a retomada da canção. François Miterrand foi o último dos grandes estadistas modernistas, e como último golpe contra o neo-liberalismo ele deixa um vaticínio ególatra que na verdade acelera e acirra o neoliberalismo que ele tentava evitar: “Depois de mim, não haverá estadistas – só administradores”. Você acha que quando Chico Buarque diz que a canção morreu, ele tá dando uma de Miterrand?
[suspiro] Sim. [suspiro] A canção vai continuar por outras gerações, mas quantas? É como o Sol: ele vai brilhar amanhã e depois e depois, mas até quando? Acho que a canção vai continuar com a mesma certeza que tenho de que meus genes continuam em minha filha. Um cara um dia na Concha Acústica disse: “velho, eu preciso te agradecer. A música é minha vida, e foram vocês que me fizeram descobrir isso”. Outro episódio foi um gurizinho que morava no meu prédio e eu ensinei ele os primeiros acordes de violão. Anos depois eu encontrei ele num ensaio, e ele fazia pagodão – mas nesse cara ficou o estímulo de fazer a música. Aí ele me abraçou e me agradeceu muito. A canção não ficou talvez, mas a vontade de fazê-la sim.

Você falou de pagode e uma coisa que eu gosto muito em você é o seu sotaque bahiano. Por exemplo, “Pare com isso, vá!“. É muito bahiano de um modo não óbvio.
É bem Itapoã, né? Mas eu não tinha essa preocupação com o sotaque. Eu tinha perdido meu sotaque, por que fiz teatro e tal. As pessoas pediam pra eu tirar o sotaque. Ao mesmo tempo, havia trabalhos que me pediam pra eu carregar no sotaque. Eu fazia teatro de rua, popular, bem puxado. Acho que ninguém em Salvador fez teatro de rua como esse grupo, que era do SESI Rio Vermelho antes de aquele casarão ser teatro. Tem mais de dez anos. Quando fui pra São Paulo, me senti mais bahiano do que aqui, e minha saudade acabou resgatando meu orgulho retado, da porra, de ser bahiano – inclusive meu sotaque.