Por uma política de cinema, com dendê

15/10/2009 at 13:15

glauber

Quando a revista Bravo! pertencia a D’Ávilla editora, era altamente plural (tinha como ensaístas desde Olavo de Carvalho, na ponta direita, a Ariano Suassuna, na ponta esquerda), e assim se configurava como a melhor publicação mensal regular em lusa língua – isto é: antes de a editora (1º de) Abril (de 1964) comprar a Bravo! e transformá-la na “Revista Cláudia” das artes, que é o que ela é hoje – Sérgio Augusto de Andrade escreveu nela o mais seminal e enxuto texto sobre cinema brasileiro que já li desde a morte de Glauber Rocha. No subtítulo, ele já vaticinava:

“O cinema brasileiro é pior do que ruim: não existe!”

O leitor deve achar estranho: como?! nunca produzimos tantos e tão bons filmes!

De fato: para uma classe média que torce o nariz para eles (para os bons, pelo menos, enquanto aplaude coisas como Se Eu Fosse Você, da Globo Filmes), que mora em grandes cidades, e que não sabe que Nelson Pereira dos Santos está vivo.

Ter cinema nada tem a ver com fazer filmes, como demonstra Jean-Luc Godard no excelso Capítulo IV de Historia(s) Do Cinema, sobre o Realismo Social Italiano (que alguns chamam, erradamente, de neo-realismo). Diz ele: durante a 2ª Guerra, houve paises que fizeram filmes sem fazer cinema (Inglaterra – é justo os anos que Hitchcock se muda pra Hollywood e vira Hitchcock de verdade); outros, faziam cinema durante a resistência, sem ser na resistência (Hollywood); outros, fizeram cinema na resistência (a França, tendo o mais heróico exemplo no sublime díptico de Marcel Carné: Boulevard do Crime / As Crianças do Paraíso); e a Itália, que sem fazer um filme sequer, fez não apenas cinema na resistência, durante a resistência, mas sobretudo de resistência.

O Cinema no início dos anos 1940 na itália foi a grande arma de desconstrução mental do facismo. Indo de cidade em cidade como mascates circenses, Vitorio de Sica, Roberto Rosselini, e outros, exibiam filmes. Qualquer filme. De Hollywood, da Pathé, da Itália pré-guerra, do expressionismo alemão e de propaganda nazi-facista. Não importa. O importante era, como diria mais tarde o patrono esquecido do Cinema Novo, Dr. Walter da Silveira, ver filmes em película – e discutí-los sem preconceito.

Foi assim que a mentalidade “de esquerda” foi gestada e que levaria, no final dos anos 50, a ascenção do Partido Comunista Italiano. O método caixeiro-viajante não se extinguiu quando a produção filmica retornou, no fim dos 40. Ele só se arrefeceu na segunda geração do Realismo, com Visconti, Antonioni, Felinni e Bertolucci. Mas aí porque o hábito na população já existia. E mais importante: salas de cinema, aos montes, pelo interior do país.

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Glauber Rocha viveu e morreu dizendo que o problema do cinema brasileiro era um problema de financiamento. Não tanto de financiamento de obras, mas do ingresso. Glauber lembrava que, diferente das outras artes, o cinema é antes industria, e como tal seu primeiro foco é dar lucro. Lucro através do patrocínio e da venda de bilhetes. E que assim o cinema era um paradoxo: arte cara de ser produzida, mas reprodutível ad infinitum torna-se barata de ser consumida.

Por outro lado, Glauber tentou baratear a produção. E criou, no Governo Geisel, talvez o melhor modelo de financiamento de produção cinematográfica que o mundo já viu: a Embrafilmes. Glauber partia do seguinte princípio: o cinema puramente privado, como Hollywood, gerava lixo demais para produzir obras-primas; o cinema estatal, modelo europeu, produz praticamente apenas bons filmes, quase sem fazer lixo, mas sob tutela ideológica, e com linguagem elitista e excludente do povo (embora o próprio cinema de Glauber seja hermético, ele admirava as chanchadas da Atlântida por sua capacidade de penetração popular). O cinema independente americano era muito irregular e não profissionalizava.

A Embrafilmes se configurou como uma empresa estatal de capital misto. O estado garantiria prejuizos eventuais, minimizando a produção de filmes irrelevantes; por outro lado, os acionistas privados impulsionariam o lucro. Tal como é a Petrobrás de Lula, a CEMIG de Aécio Neves, e como deveria ter sido a Vale se Fernando Henrique não se apequenasse.

Não por acaso, é com Ernesto Geisel que a Embrafilmes emplaca: foi o último governante que tivemos com visão estratégica ampla da nação. E o único assim entre os militares. Desde entao, a Embrafilmes foi desconstruída e virou a ANCINE: uma agência reguladora (ruim como só agências reguladoras sabem ser) que é capaz de indicar Salve Geral, um filme superficial e mal-feito, pra concorrer ao Oscar – num ano que temos À Deriva. Isso sim mereceria o nome de esquerdopatologia.

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Contudo, a outra ponta nunca foi resolvida: como dar acesso às salas de exibição a milhões de brasileiros? O Brasil tem atualmente três modelos de sala: os multiplexes (holdings), as salas de arte de iniciativa privada (que se configuram como micro e pequenas empresas), e as salas estatais (como a Walter da Silveira, em Salvador). Em algumas cidades, as salas de arte conseguem fazer frente aos multiplexes, e as salas estatais servem como boas reguladoras. Salvador é historicamente exemplar nisso, mesmo no derrisório (des)Governo César Borges.

Só que mesmo aqui a iniciativa é tímida. A Walter vive, e vivia, às moscas. Durante alguns anos encheu, mas justamente os anos de pareceria com a SalaDeArte e o Multiplex Iguatemi, e com a Casa D’Itália / Instituto Dante Alighieri. Ou seja: quando esteve numa parceria público-privada não-oficial. E o Grupo SalaDeArte não recebe mais do que incentivos de praxe do governo de plantão (qualquer que seja ele: mais no atual, menos no anterior). Não toma-se esta empresa como parceiro preferencial, e agente de mudança psicossocial importante que é.

Dentro dos multiplexes, é preciso diferenciar os chamados ArtPlex. Do ponto de vista financeiro, a lógica é a mesma: grandes empresas dominadoras de mercado, ligadas a banco. Mas na prática, é diferente: os clientes do banco pagam meia (e no caso do Espaço Unibanco, o mesmo vale para Clientes Hipercard, talvez o cartão de crédito mais “de pobre” do país, com uma estrondosa penetração no Nordeste, especialmente nas pequenas cidades do interior e nos subúrbios de capitais); e sua programação é menos plutocrática, mais autoral.

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A própria lógica de salas de exibição estatais é questionável. A idéia vem das salas de teatro estatais. Ora, teatro é uma atividade artesanal (mesmo se tem dimensões de ópera), de baixa reprodutibilidade, e de orçamento naturalmente deficitário. Isso o Secretário de Cultura do Estado da Bahia faz questão de lembrar sempre, homem de teatro que é. O cinema não: ao contrário, é industrial e lucrativa.

Pra não ficar só em divagação teórica, o que eu proponho? Duas coisas:

  1. Privatize-se a Sala Walter. Não digo vender. Digo ceder em concessão ou comodato para o Grupo SalaDeArte (sem licitação, por atribuição de Notório Saber), que pode administrá-la e divulgá-la melhor. A concessão incluiria o Estado subsidiar parte dos ingressos, para manter o preço mais baixo do que nas outras salas (e que, sendo do Circuito SalaDeArte, ampliaria o acesso também a estas salas, já que o canhoto de uma inteira vale, no Circuito, meia-entrada). Na prática, o Estado já subsidia, desde que a Walter vive vazia mas tem custos. Este subsidio poderia vir burocraticamente de forma simples: na prática, as contas de água, luz e telefone continuariam vindo em nome da Biblioteca Dos Barris, onde fica a sala;
  2. Incentivo a interiorização do Espaço Unibanco. Talvez com algum estímulo fiscal. Nas grandes cidades do interior, como Artplex; nas pequenas, como salas individuais. É absurdo que cidades como Cachoeira e Santo Amaro da Purificação, que tinham cinema, não tenham mais.

A Bahia, por sua íntima relação com o cinema, e pela infraestrutura deste enquanto exibição que herdou (benditamente) do carlismo e do anti-carlismo, está em posição de, mais uma vez, propor uma mudança radical na produção e recepção fílmica no país. Basta ter coragem.

Aproveito para lembrar que a extinção das salas de bairro foi a pior desgraça que já ocorreu ao cinema no Brasil, e ocorreu justamente nos anos da dita Retomada Fílmica (retomada como, se foi quando se extinguiu a Embrafilmes?). E que interiorizar e aumentar a frequência ao cinema é a melhor forma de combater a mídia televisiva, melhor do que a internet até. Assistir a filmes em sala de exibição (multiplexes parcialmente excluídos) requer um isolamento físico que propicia um estado mental mais dado a reflexão e a crítica, com uma linguagem tão acessível quanto a da TV, só que mais rica e sofisticada. Cinema para todos é sobretudo uma pratica de pedagogia política – de novo, como a paupérrima Itália da Resistência mostrou.