O Anti-Cinema de Lars von Trier

07/10/2009 at 6:10

Anticristo_PosterAnticristo é o filme que marca a entrada de Lars von Trier na Opus Dei. Se Dogville já era uma apologia da misoginia, e Manderlay ultra-racista e tutelar, Anticristo consegue ser um filme de tese.

Tese: “Mantenha o celibato mesmo durante o casamento – senão seus filhos podem morrer”.

Corolário: “O feminicídio da Santa Inquisição foi o auge da civilização européia”.

E, do ponto de vista formal (que é onde ele se saia bem mesmo em Dogville e Manderlay. Isto é: a problematização brechtiana do cinema como ilusão e como realidade), não passa de uma longuíssima peça publicitária de desodorante masculino, para a televisão.

Que Lars von Trier sempre foi um cineasta católico, e que desde sua obra-prima Europa tem se tornado ainda mais, não é um problema. Carl Theodor Dreyer e Robert Bresson, dois de seus referidos mestres, também o são. E abordar a mística masoquista feminina do catolicismo não é, também, em si um problema. Trier tem duas vertentes de trabalho: a formalista (que chega ao auge em Europa) e a, digamos, de camera livre, onde prevalece o roteiro e a emotividade, e tem seu auge em Ondas do Destino. Ondas é exatamente um filme sobre a mística de Santa Teresa de Ávila: uma mulher que, para tornar-se santa, faz-se de prostituta para diversos homens por amor ao marido paraplégico que assim o pede; ela sustenta esta posição até enlouquecer.

Desde Jean-Luc Godard o mundo não via alguém tão capaz de articular teoria e prática fílmica. Godard afirmava que o cinema pornográfico precisa ser entendido como parte do cinema, e do cinema puro; Trier fez isso acontecer, ao fundar a Zentropa (que suspeito ter forçado o salto de qualidade na industria pornográfica européia como um todo, inclusive a comercial). Godard apontava para, se o diretor como autor foi um ganho da Nouvelle Vague, essa posição se exagerou ao limite do hermetismo; Trier foi lá e fundou o Dogma 95, que pregava a des-autoralidade (embora no Dogma ele só tenha filmado o mediano Os Idiotas. Os grandes filmes do Dogma seguem sendo Festa de Família, de Thomas Vinterberg, e Lovers, de Jean-Marc Baar).

A questão é que o discurso de Trier abriu mão da densa reflexão filosófica de que só o catolicismo é capaz (e que engendrou de São João da Cruz a Soren Kiekergaard, de Lúcio Cardoso a J. R. R. Tolkien), para enveredar pela pregação quase evangélica (que, mesmo quando travestida de boa literatura, gerou apenas curiosidades mórbidas como C. S. Lewis e suas péssimas Crônicas de Nárnia), algo entre a Renovação Carismática e a Canção Nova.

Contudo, mesmo nos seus filmes recentes, apelativos e fracos em termos de fábula (conteúdo), mantinha-se na estrutura a dicotomia de Bretold Brecht: a relação entre emoção (ilusória) e artifícios expostos em esqueleto de linguagem – esta ocilação marcou o melhor da obra de Lars von Trier em conjunto. Em Anticristo, o que em Europa era uma renovação de rigor visual com uso de tecnologia, sobreposição de cores e ângulos incomuns de câmera, virou um fetiche mercadológico: gotas de água caindo lentamente, ao som de Bach, enquanto um casal fode no chuveiro, em preto-e-branco. Pra quem já viu Europa, é de um simplismo muito grande.

Coroando esta obra-prima da porcaria, ao fim ele dedica o filme a Andrei Tarkovisky. Sinceramente: Tarkovisky, grande autor soviético de Soláris, merece mais respeito…

Anticristo acaba assim por ser uma mistureba de filmes de Stephen King com baixo orçamento, refugo de rascunhos de Walt Disney, e um programa matinal da Igreja Universal. E Trier entra assim para minha restrita lista de cineastas que jamais assistirei de novo. Ele que foi, de longe, o mais consistente diretor de cinema em muitas décadas.