Jornal A Tarde faz apologia ao crime

28/09/2009 at 7:23

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O jornal Já Vai Tarde (aquele que um dia foi anti-carlista, e hoje é apenas anti-carlista pras negas dele) publicou matéria em seu suplemento cultural (?) de domingo, o Muito (Ruim ou Louco), sobre o Dia Mundial Sem Carro.

A (anti-)matéria não poderia ser pior. Primeiro, é preguiçosa: só entrevistaram usuários de bike que trabalham no próprio jornal. Dia 22 de setembro, eu fiz uma palestra no Planserv, onde trabalho, sobre o tema. Toda a imprensa bahiana recebeu press-release, mas só compareceu a Tribuna da Bahia – que, justiça seja feita, fez excelente matéria de capa de caderno, página inteira. E foi o único jornal que, na véspera reproduziu a nota como chamada e convite.

Um dos entrevistados do Já Vai Tarde diz, orgulhosamente, que pedala na Avenida Tancredo Neves pela contramão e em cima das calçadas. O que é ilegal, segundo o Código Brasileiro de Trânsito (CBT). E que, se alguém lhe pergunta como aderir ao auto-transporte, ele desestimula porque “a pessoa corre risco de vida”.

Não me admira que ele tenha tido acidente: a maior parte dos acidentes ocorre em colisão frontal, e são os mais letais. O que, já disse, me parece merecido para quem descumpre a lei – razoável! – de andar sempre como veículo, na mão da via.

Que o A Tarde publique estas asneiras, não é problema. Que ele não publique junto (como fez o Tribuna) um quadro explicando simplificadamente o CBT para bicicletas, é esdrúxulo e cabotino. Mais: que ele não tenha feito uma pesquisa elementar para entender que quanto mais ciclistas, mais seguras as pistas, é de uma leniência que mereceria a demissão sumária, fosse eu o chefe da redação.

É isso: como comemoração ao Dia Mundial Sem Carro o jornal A Tarde promove terrorismo automobilístico e incentiva a criminalização da bicicleta. Vale lembrar que vai nisso também uma apologia ao uso de drogas, se pensarmos que a carrodependência também é tomada hoje como uma drogadição.

* * *

Mas, não se pense que o Tribuna da Bahia é só maravilhas. Que tem melhorado, não há dúvidas, seguindo a tendência de que os únicos jornais que crescem hoje no Brasil são os populares (Classe C) que investem em qualidade investigativa. Assim tem ocorrido com o Extra e O Dia, no Rio de Janeiro.

Não obstante, o colonista (no dizer de Paulo Henrique Amorim) Alex Ferraz repete o vício profissional de falar sobre tudo, sem saber de nada. Sabemos que a definição de jornalista é: alguém que exerce diligentemente a função de desinformar. Por isso que este blog defende o anti-jornalismo, no sentido psicanalítico do termo – o que será tema de um artigo, em breve. Todo mundo sabe que eu não gosto do Ministro (?) Supremo Gilmar Dantas, digo, Mendes. Mas ele comparar jornalistas e cozinheiros, no seu voto pela extinção do diploma, é uma ofensa… aos cozinheiros!

Se alguém cozinhasse como a maioria dos jornalistas escrevem, haveria pandemia de infecção intestinal.

O cara escreve sobre auto-transporte, ignorando a reportagem (de capa de caderno, página inteira), do próprio jornal em que trabalha. Preguiça pouca é pinto. Senão vejamos, e rebatamos, ponto por ponto, o FEBEAPÁ deste senhor senil:

Bicicleta?

Fui obrigado a ouvir e ver em rádios e TVs de todo o País, no Dia Mundial Sem Meu Carro, incentivo ao uso de bicicletas para nos livrarmos dos engarrafamentos nas grandes cidades brasileiras. Alices, pelo amor de Deus, em que país vocês vivem? Tentem comprar uma bicicleta e sair pedalando por Rio, Salvador, Recife, São Paulo… Você receberá um murro pelo meio da cara e vão tomar sua bicicleta e ainda vão lhe dar uns chutes na barriga porque você foi otário demais.

1) O Rio de Janeiro é hoje referência mundial em uso de bicicleta em metrópoles – tanto quanto Paris. Tem um dos melhores sistemas de bicicletas públicas do continente, o SAMBA. E pistas ostensivamente compartilhadas em todo o bairro de Copacabana – do Cantagalo ao Leme;

2) A maior parte dos usuários de bicicleta são pobres e pretos. São, portanto, os “potenciais assaltantes” que ele teme. Vão roubar a si próprios? É isso? Aliás, bicicleta é o meio de transporte preferencial na África sub-saariana – segundo o senhor Ferraz dá a entender, o lugar do mundo mais parecido com o Brasil. Se lá dá, por que aqui não dá?;

3) Todas as pesquisas indicam que o usuário de bicicleta está muito menos exposto a assaltos do que o usuário de carro e do que o pedestre, por exemplo. Qualquer ciclista lhe diria isso, e mostraria porque.

Este é o velho pânico burguês às cidades, que leva ao erigimento de uma aberração como Brasília, aos condomínios fechados (hoje tidos como “bairro projetado” – bairro, como?!) com 50 ítens de lazer, de onde o sujeito só sai (ainda, por enquanto) para nascer e morrer (em breve, nem isso).

Pela lógica fóbica do Sr. Ferraz, carro é perigoso e não deve ser usado. Andar a pé na rua pode também levar a você “levar um murro e ser roubado”. Melhor ficar em casa. Discussão sobre direito a cidades? Passou longe, e deu adeus…

Bicicleta é para lá…

A agenda internacional 2009, que a Holanda deu de brinde a jornalistas de todo o mundo, mostra a rainha do país indo de bicicleta para a abertura anual do Parlamento. Mostra artistas, empresários, políticos e donas-de-casa indo de bicicleta para o trabalho e o lazer. Sim, a Holanda é um país todo plano. A renda per capita ultrapassa o equivalente a 70 mil reais (a da Bahia é de menos de 7 mil reais). Lá ninguém rouba bicicletas. Ponto final.

4) Rouba, sim! Em Copenhagen, os roubos de bicicleta (aliás o ítem mais roubado, entre todos, na Holanda) são frequentes. Rouba-se como aqui: se e quando estão estacionadas. E daí? E daí, nada. Como diz o Prefeito da capital dinamarquesa: “ninguém liga! Bicicleta é tão barato que você vai e compra outra. E de resto, a bike roubada continua no sistema, então não implica numa perda real. É diferente do carro roubado, que vai a desmanche e vira contrabando”;

5) Este argumento é uma profecia auto-realizada, a partir do complexo de vira-lata. O Brasil não presta. Não importa que seja hoje o maior player diplomático do mundo, como mostra a crise em Honduras. Não importa que seja a 6ª economia do planeta, e que tenha trazido pra classe média a maior parte da população. O Brasil, por principio, não presta. O Rio de Janeiro é pior do que a Faixa da Gaza. Aí, como o Brasil não presta, não pode ter bike; e como não tem bike, não presta; e se não presta, não pode; e se não pode, não presta.

É um círculo vicioso. Ou melhor, seria, se o Brasil não tivesse já hoje e desde sempre um enorme (embora desregulado e pouco educado) tráfego cicloviário em cidades. Que o Sr. Ferraz não enxerga. Mas aí não é um problema de deficit intelectual ou de mau-caratismo moral, nem mesmo de racismo implícito. É um problema oftalmológico, de foro íntimo.

O carro da Big

Minha assessora para assuntos de mobilidade, diante da realidade cruel da Bahia, deu um aviso aos “ecochatos” e aos “especialistas” em trânsito (kkkkkkk): “Olhe, seu Alex, no ano que vem comemorarei o Dia Mundial Sem Meu Carro comprando um tanque de guerra igual àquele da modelo lourésima do programa “Brazilian Next Top Model”. E me deixem, viu?!”

Para a informação de Alex Ferraz, a maior parte dos usuários de bike não o faz por motivos nobres: “ecologia”, por exemplo. Fazem porque é mais rápido do que o carro, e mais barato do que o ônibus. Fazem por puro egoísmo. Eu, inclusive.

Viva a carrodependência!, a falta de sofisticação nos métodos do argumento!, e a ignorância (que é, como se sabe, o desconhecimento-ao-quadrado)! Depois reclamem que extinguiram o diploma de jornalismo. Não é pra menos, e ainda bem: hoje ninguém sai da faculdade com uma outorga para dizer besteira com ares de coisa séria.

É como dizer que o Bolsa-Família é uma “modinha de dar esmola a pobre” – e não o mais sério programa de imposto negativo do planeta, desde Charles DeGaulle.

Pra aliviar, belo vídeo da Transporte Ativo mostrando como, além de seguro, é ágil andar em grandes avenidas (no caso a Niemeyer, debaixo da Rocinha, Rio de Janeiro) de bicicleta: