Lord Balthus na praia

23/08/2009 at 14:46

a-deriva-cinema-630-02Diz o Filmes do Chico que À Deriva, filme novo de Heitor Dhália, tem roteiro desencontrado, direção de atores leniente, e não convence. E que ele é, assim, um diretor ainda em busca de autoralidade. Pode ser, se se vê de um ponto de vista fílmico – isto é: focando-se na fábula, e não na história (que é como a fábula é contada) – e assim colocando o cinema próximo das artes que lhes são mais estranhas: o teatro e a literatura.

O cinema não é, jamais, salvo exceção, a arte do ator. Um ator não deve, na maioria dos casos, atuar e não difere, assim, de um utensílio de cenário. Robert Bresson chamava isso de “modelo”, e só fez direção de ator mesmo quando o papel principal do filme foi interpretado por um jumento, no magnífico O Burro Baltazar. Federico Fellini adorava trabalhar com Marcelo Mastroiani porque achava ele o pior, contudo mais obediente, ator do mundo. Se Fellini o mandava levantar-se, andar até uma porta, e voltar, ele fazia sem perguntar motivos. Voltava, sentava, e cochilava de novo. Fellini não gostava que a inteligencia dos atores pudesse vir a atrapalhar a captação das imagens.

Cinema é, assim, a arte da imagem em movimento. Tanto que se pode fazer cinema sem um único ator: chama-se cinema de animação – e não atoa um dos pais fundadores da linguagem do cinema como conhecemos foi Walter Elias Disney. Que aliás fez o que André Bazin chamaria do “mais puro dos filmes”: Fantasia – sem texto, sem diálogo, sem roteiro. Só argumento, imagens e som.

Donde, um cinema tem de ser anti-psicológico. Note-se que a tradição do teatro nunca rompeu com o psicologismo: Brecht critica tudo na escola real-naturalista, menos a psicologização; Becket também a mantém. É claro que o cinema pode, e deve, inquirir temas psíquicos (dos personagens) ou próprios do campo da psicologia e da psicanálise (como ciências). E pode mesmo, às vezes, usar de interpretações de atores majestosas para tal. Mas essa não deve, não pode, ser a regra.

Isso posto, digo que Heitor Dhália é o único cineasta brasileiro que merece a insígnia de “autor” (eu estou obviamente excluindo Walter Salles Jr., que ná não é mais um “cineasta brasileiro”, e é um dos autores mais importantes da sétima arte desde que fez Central do Brasil). Um autor é aquele que, nos seus filmes, relaga a fábula (a estória a ser contada) a segundo plano, e a usa como mero instrumento para, através do modo de contar, estabelecer uma teoria do cinema, uma teoria do mundo e uma teoria de uma época. A teoria pode se manter a mesma de um filme pra outro (Kubrick, Hitchcock) ou mudar (Trufaut, Ang Lee). Mas cada filme é, em si, uma mandala.

Dhália está entre os que ocilam de teoria, mas cada filme em si é uma, sólida. O que une então sua obra como autoralidade? O fato de, para estabelecer estas teorias do filme e do mundo (e de um momentum histórico-geográfico), usar-se de referências explícitas e não óbvias à autores de pintura. O recurso é velho conhecido, e seria clichê se não fosse magistral: aparece na obra do á citado Kubrick (Watteau e Fragonard em Barry Lyndon; Klimt e Seurat em Eyes Wide Shut), em Pasolini (Gioto, Rafael e o primeiro Michelangelo), Alain Resnais (Holbein, Arcimbaldo – não tanto visualmente, mas na lógica da construção de imagens superpostas), além de Carlos Saura com Velásquez e Akira Kurosawa com Van Gogh. Há grandes autores que não usam estes recursos: Trufaut, Hitchcock e o grande cineasta político que é Spielberg; há outros em que o recurso vira um fetiche e por isso, falha: Peter Greenaway, embora nem sempre.

Tereza Cochila, de Lord Balthus

Tereza Cochila, de Lord Balthus

Como disse, Dhália o usa de um modo não óbvio, pintores que não fazem parte do grande time. Em Nina, de trama dostoievskyana, não recorre ele aos expressionistas europeus de primeira hora, mas ao último dos expressionistas brasileiros: o excelente Oswaldo Goeldi. A atmosfera suburbana, como refugo de um neoliberalismo dessubjetivante, de Cheiro de Ralo encontra representação em Edward Hopper.

No universo inocentemente sacana dos pré-adolescentes de À Deriva, a escolha não poderia ser melhor: as provocações pedofílicas de Balthus.

Ao contrário do que se pode pensar, a trama alí em nada lembra Nabokov. Não é uma menina que, psicopaticamente, e ciente de sua sexualidade, a usa para ganhos pessoais. Antes, adolescentes perdidos num mundo que é também novo para os adultos (a possibilidade de divórcio e de falar às claras sobre a sexualidade das mulheres e a homossexualidade, que só aparece na abertura dos anos 80 com o fim da Ditadura Militar Brasileira), e é desse não-saber que o tesão que provocam entre si, nos adultos e nos espectadores advém.

Essa investigação da entrada, mais ou menos sem rumo, na adolescência é um tema trufautiano – e não atoa Dhália diz ter nele o grande mestre. Talvez possa-se daí fazer uma crítica válida: Dhália precisa aprender de Trufaut, ainda, a capacidade de contar histórias, de entreter – de não colocar tão em primeiro plano sua “teoria do cinema”.

Há também esta qualidade inolvidável em Dhália: ele aprendeu, talvez com Hitchcock, que o cinema deve vender entretenimento, mas entregar incômodo. Vender indústria, e entregar arte marginal. Isto é: que o cinema não deve ser a encenação de fantasias idílicas (embora haja bom cinema neste sentido), nem da realidade objetiva (documentário é filme, sem ser cinema); mas da realidade psíquica, sexualmente perversa e polimorfa (e nisso pode haver cinema sem haver filmes). Deve fazer o espectador torcer por e tornar-se cúmplice do criminoso; ter prazer na tortura abjeta (como em Laranja Mecânica ou em Saló – Os 120 Dias de Sodoma). Retirar a pequena-burguesia de sua anestesia televisiva. Heitor Dhália nos faz sair de À Deriva um pouquinho mais pedófilos…